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Por que a filantropia importa

Força complementar na busca por soluções inovadoras e sustentáveis para o financiamento de alguns dos mais complexos desafios dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, o capital filantrópico se mostra cada vez mais relevante na promoção de políticas públicas e no estímulo a negócios sociais e projetos socioambientais

Por Pietro Rodrigues e Felipe Jukemura

O déficit de recursos para financiar as metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) até 2030 em países em desenvolvimento ultrapassa os US$ 4 trilhões. Quase duas vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, a soma representa um desafio monumental e inatingível para o orçamento público de países emergentes, onde são insuficientes os recursos para as necessidades socioambientais urgentes, como habitação digna, transição para uma economia de baixo carbono, equidade racial, preservação de mananciais, garantia de alimentação em quantidade e qualidade adequadas e acesso à educação e saúde. Diante da magnitude das demandas globais, a contribuição de empresas, filantropos e organizações da sociedade civil passa a desempenhar um papel estratégico.

A desastrosa combinação de recursos escassos dos Estados, de crescimento econômico instável e de distribuição desigual de renda nos países e entre eles gera um cenário de impasse, no qual fontes complementares de financiamento aos projetos de desenvolvimento se tornam essenciais. Somado a recursos de outras origens, o capital filantrópico pode fazer a diferença para viabilizar soluções inovadoras, como negócios de impacto e projetos de inovação social que possam contribuir para a melhora dos indicadores de desenvolvimento sustentável.

Historicamente envolvida na promoção de bens públicos, a filantropia sempre atuou fortemente em setores como saúde e educação, nos quais teve participação decisiva ao construir e manter hospitais e escolas de referência. A ação filantrópica por si só está longe de ser suficiente para suprir a lacuna no financiamento dos 17 ODSs estabelecidos em 2015, e, embora ainda produza serviços sociais de qualidade em pequena escala, fatores como o crescimento populacional e a persistência de diferentes tipos de desigualdade tornaram mais complexa a situação e mais urgente a necessidade de encontrar soluções escaláveis.

A contribuição total da filantropia é difícil de contabilizar. A falta de dados representativos em escala nacional e internacional e a variedade de atores e modos de doação resultam em estimativas sempre parciais. Estudo realizado pelo banco Citi em 2021, por exemplo, estima que o volume de doações chegue aos 2 trilhões de dólares anuais, incluídas as horas de voluntariado. Já um levantamento realizado em 47 países pela Indiana University Lilly Family School of Philanthropy, que busca avaliar a contribuição filantrópica aos recursos destinados à cooperação internacional da Assistência Oficial ao Desenvolvimento (ODA, na sigla em inglês), aponta que, em 2020, a filantropia contribuiu com US$ 70 bilhões do total de US$ 841 bilhões de ajuda internacional daquele ano. Outra sondagem, realizada pela Organização para a Cooperação e DesenvolvimentoEconômico (OCDE), avalia que, entre 2016 a 2019, apenas US$ 42 bilhões foram mobilizados por fundações filantrópicas nos países da organização, que representa uma média anual de pouco mais de US$ 10 bilhões, e que se concentraram principalmente nos Estados Unidos. Esses valores são certamente subestimados, mas as perspectivas das cifras reais não são animadoras.

 

O capital filantrópico tem beneficiado projetos conduzidos por organizações da sociedade civil e empreendedores sociais. A filantropia tem atuado como estratégia de investimento por meio do capital catalítico, como viabilizadora de inovações em gestão de ativos financeiros nos fundos filantrópicos e como filosofia de investimento

 

No Brasil, os números são tímidos. Em 2022, estimativas do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis) indicam que doações individuais totalizarampouco mais de US$ 2,4 bilhões. A avaliação mais otimista é do Instituto Beja, que, a partir dos dados do censo do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife) de 2020 como parâmetro, avalia que a contribuição das fundações filantrópicas em 2020 foi de aproximadamente US$ 4 bilhões. A grande variação do cômputode doações anuais realizadas por entidades filantrópicas denota não só a dificuldade de estimar o nível das doações no Brasil, mas revela também a ainda pequena contribuição da filantropia corporativa e familiar junto aos investimentos públicos.

Embora a necessidade de financiamento de iniciativas socioambientais esteja além da capacidade de suprimento filantrópico, alternativas financeiras são bem-vindas como fontes complementares aos esforços públicos e à disponibilidade de capital privado. No entanto, a contribuição da filantropia vai além do apoio financeiro, e, ao assumir diferentes papéis, o capital filantrópico tem beneficiado projetos conduzidos por organizações da sociedade civil e empreendedores sociais. A filantropia tem atuado como estratégia de investimento por meio do capital catalítico, como viabilizadora de inovações em gestão de ativos financeiros nos fundos filantrópicos e como filosofia de investimento por meio de abordagens como a venture philanthropy. No geral, esses papéis buscam apoiar negócios e organizações da sociedade civil comprometidas com causas sociais e ambientais, sem perder de vista sua sustentabilidade financeira e fortalecimento institucional.

 

A chegada da filantropia ao ecossistema de impacto 

 

O campo dos investimentos de impacto reúne atores de diversos setores com a finalidade  de estimular projetos com impactos positivos sobre o desenvolvimento. Um relatório da Bain & Company produzido para avaliaro crescimento do investimento de impacto na América Latina aponta que os principais impulsionadores desse tipo de investimento eram estrangeiros, sobretudo dos Estados Unidos e da Europa. Investidores locais sóassumiram a liderança em relação ao volume de instituições apoiadas depois de 2013. De lá para cá, a região ganhou destaque no cenário internacional. Segundo levantamento da Aspen Network of Development Entrepreneurs com base em informações de mais de 90 investidores, estima-se que o volume de estoque de investimentos na América Latina mobilizado para projetos endereçados para causas socioambientais tenha ultrapassado em 2021 a cifra de US$ 1,96 bilhão.

No Brasil, a evolução do campo deinvestimentos de impacto é recente, mas tem crescido de maneira sustentada. Os primeiros projetos identificados tiveram início em 2003, com a chegada de investidores sociais internacionais como a OikoCredit, cooperativa holandesa especializada em gerir recursos de microcrédito para projetos com impacto socioambiental em comunidades em todo o mundo, e a LGT Venture Philanthropy, uma fundação financiada pela família real de Liechtenstein. Em 2008, os primeiros investidores nacionais ingressaram nesse mercado, e organizações como Sitawi Finanças do Bem, MOV Investimentos e Vox Capital tornaram-se referência nacional na expansão de capital e soluções financeiras voltadas para o desenvolvimento dos negócios sociais no Brasil. Anos depois, surgiram iniciativas multistakeholder com atuação local como a Aliança pelo Impacto, promovida pelo Instituto de Cidadania Empresarial (ICE) e pela Aliança pelos Investimentos e Negócios de Impacto, que logo se tornaram agentes de destaque na criação de sinergias para o estímulo e difusão de conhecimento sobre os investimentos socialmente orientados.

 

A filantropia também se tornou um ponto de apoio para o desenvolvimento de negócios de impacto e investimentos em infraestrutura pública em períodos recentes. Essa mudança foi crucial, uma vez que passou a abranger projetos e organizações que não eram puramente sem fins lucrativos (…) nem buscavam apenas o lucro, desconsiderando as questões socioambientais

 

Se, historicamente, a filantropia desempenhou um papel importante na suplementação de bens públicos essenciais, ela também se tornou um ponto de apoio para o desenvolvimento de negócios de impacto e investimentos em infraestrutura pública em períodos recentes. Essa mudança foi crucial, uma vez que passou a abranger projetos e organizações que não eram puramente sem fins lucrativos (em geral apoiados pela filantropia tradicional) nem buscavam apenas o lucro, desconsiderando as questões socioambientais.

O que começou como um movimento modesto cresceu em complexidade, com diversos arranjos financeiros, fontes de capital, instrumentos operacionais e tipos de investidor. Mais recentemente, um conjunto de atores filantrópicos, como fundações e institutos familiares e empresariais, passou a colaborar com outros atores do ecossistema de impacto no financiamento de soluções para problemas de desenvolvimento. Por esse motivo, são cada vez mais frequentes as discussões sobre o potencial colaborativo da participação filantrópica em estruturas de blended finance, arranjos mistos de financiamento de projetos com o potencial de envolvimento de atores de mercado, sociais e bancos públicos e multilaterais de desenvolvimento.

A filantropia exerce papéis cada vez mais cruciais na promoção do desenvolvimento sustentável em níveis local, regional e global. No entanto, há uma variedade de atribuições e uma confusão entre elas. Avaliamos três das mais relevantes: a filantropia como abordagem da venture philanthropy (VP), a filantropia como estratégia no capital catalítico e a filantropia como ativo financeiro nos fundos filantrópicos. Essas diferentes formas de pensar e operacionalizar a filantropia destacam que a sustentação do financiamento de projetos de impacto pode ter origens muito diversas das tradicionais. No entanto, alguns desafios permanecem. Como exemplo, pode-se citar que a criatividade na combinação de recursos de diferentes origens é grande e ainda pouco compreendida por potenciais contribuintes, como filantropos, bancos públicos e investidores privados. Também não é claro o impacto desses arranjos financeiros sobre a governança e a natureza das iniciativas de impacto.

Ainda assim, essas abordagens, tipos de capital e formas de financiamento estão desempenhando papéis relevantes na promoção do desenvolvimento sustentável. Elas oferecem uma visão mais holística e integrada para enfrentar os desafios complexos relacionados aos ODSs. Alguns exemplos ajudam a elucidar o potencial da filantropia em contribuir para o financiamento de iniciativas que impactam  os indicadores dos ODSs. A seguir, analisamos três das principais formas e refletimos sobre elas à luz da experiência recente brasileira.

 

A filantropia como abordagem: venture philanthropy 

 

A ideia de venture philanthropy (VP) tem história longa e já em 1969 era enfatizada por John D. Rockefeller III, filantropo e empresário estadunidense. Nos Estados Unidos, o envolvimento de grandes industriais com a prática filantrópica favoreceu a aproximação das ideias de mercado à forma como a filantropia era exercida. Desde então,  mesmo sem uma definição consensual, o conceito de VP tem carregado consigo a ideia de que os princípios de venture capital podem fortalecer organizações sociais. Esses  princípios foram sistematizados pela primeira vez em 1984, em publicação realizada pela Peninsula Community Foundation. Desde então, a abordagem de VP passou a  compreender práticas como investimento de longo prazo, parceria robusta entre doador e beneficiário, corresponsabilidade  pelos resultados, provisão de recursos financeiros e capacitação à organização beneficiária e elaboração de estratégia e plano de saída do financiador.

 

O envolvimento de três das maiores fundações americanas – Rockefeller, MacArthur e Omydiar – na criação do Consórcio de Capital Catalítico (C3) impulsionou um grande debate sobre o papel da filantropia na construção de alternativas ao uso do capital convencional no financiamento de projetos que endereçam os ODS com potencial de escala

 

Apesar do histórico, o termo ganhou proeminência e legitimidade acadêmica com a publicação de Virtuous Capital: What Foundations Can Learn from Venture Capitalists, na Harvard Business Review, em 1997. O artigo promove um debate sobre a aplicação de práticas de venture capital na filantropia e demonstra como esse tipo de abordagem pode representar uma mudança sensível em relação à filantropia tradicional. Essa aproximação fez com que conceitos e práticas como gestão de risco, devida diligência, mensuração de performance, estratégia de saída, entre outros,  se tornassem amplamente reconhecidos no ambiente filantrópico. No entendimento de Letts, Ryan e Grosmann, a novidade trazida pela VP reside no fato de que um dos objetivos dos projetos financiados sob essa abordagem  é o de aprimorar e capacitar as organizações financiadas, garantindo maior sustentabilidade organizacional e as competências adequadas  para enfrentar desafios sociais em escala mais ampla. Assim, a abordagem da VP se diferenciaria da filantropia tradicional, por muito  tempo associada à caridade.

Nos anos 2000, a evolução do conceito de  VP expandiu-se globalmente, impulsionada  por organizações especializadas em diferentes continentes, como a Latimpacto, na América  Latina, a Asian VP Network, a African VenturePhilanthropy Association, a European Venture Philanthropy Association (EVPA) – recentemente rebatizada Impact Europe –, e até mesmo a OCDE, que começou a produzir relatórios  sobre o tema. No entendimento contemporâneo trazido por essas organizações, o conceito de VP exige, para além dos princípios clássicos, um compromisso profissional de engajamento da organização financiadora, que deve estar atenta à promoção do investimento customizado, suporte organizacional e mensuração de resultados.

Embora possa haver variações nas definições adotadas, a essência da VP é compartilhada: basicamente, refere-se a organizações que investem em iniciativas socioambientais de terceiros, aplicando esses recursos em diversos setores, com objetivos sempre alinhados com a estratégia da organização doadora. Para viabilizar esses investimentos, as organizações de VP utilizam uma ampla gama de instrumentos financeiros, como doações, dívida, equity e abordagens híbridas. A escolha do instrumento financeiro é adaptada de acordo com as necessidades das organizações beneficiárias e sua maturidade. Já o portfólio das práticas de apoio não financeiras abrange o suporte a áreas como estratégia, operações, governança e treinamento técnico. Independentemente do instrumento e da área apoiada pela abordagem da VP, a mensuração do impacto das ações é uma característica fundamental que permite qualificar o alcance dos objetivos e a eficácia das iniciativas.

A Fundação Arymax no Brasil oferece um exemplo interessante de venture philanthropy. Criada em 1990 por Max Feffer e seu pai, Leon Feffer, a fundação inicialmente buscava organizar a atuação filantrópica da própria família. Após 30 anos de atuação no financiamento de iniciativas sociais, a fundação se tornou referência nacional na prática. Nos últimos anos, a atuação da Arymax tem se concentrado no setor de inclusão produtiva, e suas escolhas têm se baseado em estudos estratégicos que buscam garantir a relevância, a efetividade e o alinhamento dos projetos financiados com os princípios e interesses da organização. Um aspecto distintivo da abordagem de VP da organização é sua ênfase em modelos colaborativos de coinvestimento e mobilização de recursos junto a stakeholders de diferentes naturezas, como empresas, fundações, entidades governamentais e instituições financeiras. O último relatório bianual da Arymax mostra que, apenas entre 2021 e 2022, a fundação conseguiu atuar em mais de 13 estados brasileiros e alavancar cerca de US$ 4,5 milhões em recursos com outros parceiros. Exemplo desse esforço colaborativo é a participação da fundação na Aliança de Inclusão Produtiva (Aipê), uma iniciativa multi-stakeholder voltada ao fortalecimento do potencial de geração de renda e emprego de empreendedores e negócios de impacto socioambiental por meio de apoio técnico e financeiro de longo prazo. A Aliança conta com parceiros como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o banco Santander, a Fundação Tide Setubal e os institutos Humanize, Heineken e Votorantim.

 

O capital catalítico tem se transformado em uma alternativa viável a projetos voltados para soluções de problemas sociais amplos e cujo impacto pode ser sentido em toda comunidade. Trata-se de um modelo colaborativo de financiamento que incorpora as partes interessadas no processo de viabilização das iniciativas e no qual a responsabilidade pelo sucesso é compartilhada

 

Além do apoio financeiro de longo prazo, a Arymax também fornece apoio não financeiro, ao construir redes de relacionamento, alavancar recursos e garantir a sustentabilidade operacional das organizações beneficiárias. O impacto potencial do apoio não financeiro pode abrir caminhos para outras formas de colaboração. É o caso das iniciativas Emperifa e Projeto Casulo,20 que entraram em contato com a Arymax em busca de apoio estratégico por meio das mentorias do programa de aceleração Modela – programa de apoio a micro e pequenos empreendedores no setor da moda na Zona Leste de São Paulo. Após o início das mentorias, a Arymax identificou a oportunidade de articulação de novos parceiros para o programa, os quais, por sua vez, puderam contribuir com o refino metodológico das iniciativas. Como consequência, ambas as iniciativas puderam aperfeiçoar seus modelos de gestão para alcançar resultados mais escaláveis, além de se tornar aptas para receber apoio financeiro para as iniciativas mentoradas. De maneira semelhante, mais de 30 outras iniciativas e negócios sociais foram impactados pelo programa da Arymax, sendo que 12 deles foram acelerados e viram o crescimento de mais de 150% em suas receitas.

A Fundação Arymax exemplifica como a abordagem de VP pode ser implementada de maneira estratégica, com a utilização de evidências empíricas para orientar escolhas de investimento e promover impacto social significativo. A sua abordagem, centrada na inclusão produtiva, destaca a importância de uma filosofia de investimento filantrópico com base em resultados, o que contribui para o desenvolvimento de iniciativas com impacto sobre o desenvolvimento sustentável em diferentes regiões do Brasil.

 

A filantropia como estratégia: capital catalítico 

 

O envolvimento de três das maiores fundações americanas – Rockefeller, MacArthur e Omydiar – na criação do Consórcio de Capital Catalítico (C3) impulsionou um grande debate sobre o papel da filantropia na construção de alternativas ao uso do capital convencional no financiamento de projetos que endereçam os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável com potencial de escala. O consórcio prevê a destinação de recursos para a realização de projetos com impacto social, além de promover a disseminação de estratégias de capital catalítico por meio de doações a organizações que desenvolvem evidências, ferramentas e treinamentos sobre o tema, como a Latimpacto. De acordo com o entendimento do consórcio, o capital catalítico é complementar a outras formas de financiamento e se caracteriza por ser paciente, tolerante ao risco, flexível e orientado à ampliação do impacto socioambiental de projetos.

O programa de doações do C3 surge como uma resposta concreta à necessidade de liberar mais capital impulsionador de projetos de maneira eficiente. Para isso, busca capacitar a comunidade de investidores, ao fornecer conhecimento e realizar avaliações que testam o quadro conceitual e pressuposto dos modelos de intervenções do projeto. O trabalho promovido pela iniciativa conta com framework próprio, em que são estabelecidas  diretrizes para a coleta e sistematização de evidências sobre o desempenho socioambiental dos projetos, e estimula o uso racional de recursos e inteligência organizacional para a execução das iniciativas.

 

Fundos filantrópicos correspondem a um conjunto de ativos financeiros sob gestão de uma organização da sociedade civil e são cada vez mais importantes para o financiamento de causas sociais em todo o mundo. No Brasil, os mais comuns são os Fundos Patrimoniais Filantrópicos regidos pela Lei nº 13.800 de 2019

 

Apesar da crescente atenção quanto à novidade do capital catalítico, a adoção do termo remonta ao final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Um dos casos precursores da prática foi o apoio da MacArthur Foundation, em 1999, para o início das operações do Sustainable Jobs Fund (SJF), hoje SJF Ventures. Pioneiro na prática, o SJF criou um fundo de investimentos pautado em critérios de sustentabilidade, orientado para o fornecimento de capital de crescimento (growth capital) a empresas com foco em sustentabilidade que gerassem empregos e que conseguissem prover retornos competitivos a seus investidores. O aporte de US$ 1 milhão da MacArthur Foundation serviu de garantia para a mitigação de riscos financeiros dos investimentos realizados pelo fundo. Como consequência, a SJF atraiu investidores e captou cerca de US$ 17 milhões em sua primeira rodada de investimentos. Em 2024, a SJF Ventures conta com um portfólio de mais de 85 empresas comprometidas com a causa socioambiental, tendo gerado mais de 13 mil empregos e mitigando a emissão de mais de 3 milhões de toneladas métricas de CO2.

A história do C3 se entrelaça com os esforços internacionais de reunir investidores de impacto para a realização dos ODSs da Organização das Nações Unidas (ONU). A iniciativa visa não apenas fornecer financiamento, mas também estimular a aprendizagem sobre o papel do capital catalítico na comunidade de investimentos de impacto. Em 2023, o  conjunto de fundos e organizações selecionadas para receber investimentos totalizou mais de US$ 100 milhões, o que exemplificaa abordagem pragmática, destinada a reduzir riscos, construir históricos e ampliar o número de fundos promissores orientados para o campo social.

O capital catalítico demonstra ter flexibilidade para atender às necessidades dos beneficiários. De maneira geral, esse tipo de capital tem se caracterizado por ser remunerado com taxas de retorno abaixo das expectativas de mercado, por auxiliar organizações a obter crédito ao servir como meio de garantias para investidores externos, por fortalecer a capacidade de tomada de crédito, aceitar períodos de retorno mais longos e demonstrar alinhamento com propósitos mais amplos e difusos. A reputação das instituições envolvidas também parece contar muito para a mobilização de recursos de outros investidores sociais. Organizações bem renomadas reduzem os riscos percebidos por outros investidores, que veem ambiente seguro para a realização de seus próprios desembolsos.

 

A filantropia tem um longo caminho para compreender seu papel como apoiadora de boas políticas públicas, sejam promovidas pelo Estado ou por meio de outros atores da sociedade civil. Os gestores devem ser mais bem qualificados, o arcabouço legal deve ser mais receptivo e seguro e o diálogo com a comunidade de base e empresarial deve ser mais desenvolvido

 

A inovação que salta à visão de avaliadores é a de que o capital catalítico tem se transformadoem uma alternativa viável a projetos voltados para soluções de problemas sociais amplos e cujo impacto pode ser sentido em toda comunidade. Trata-se de um modelo colaborativo de financiamento que incorpora as partes interessadas no processo de viabilizaçãodas iniciativas e no qual a responsabilidade pelo sucesso é compartilhada.

A filantropia catalítica – capital catalítico de origem filantrópica – destaca a potencialidade desse mecanismo em gerar impactos significativos a partir de inovações que, muitas vezes,não encontram espaço nos setores empresarial e governamental. Como destaca Kramer, esse tipo de capital apresenta características específicas que o diferenciam do capital deoutras origens:

As características do capital catalítico de origem filantrópica dão indicativos das afinidades da estratégia com a filosofia do venture philanthropy. Embora as abordagens de VP sejam mais frequentemente adotadas pela filantropia orientada ao suporte financeiro de projetos sociais executados por organizações da sociedade civil, não são raros os casos nos quais a  abordagem é associada ao capital catalítico. A primeira e mais evidente das afinidades reside na baixa expectativa de retorno e na perspectiva de longo prazo, o que faz com que esse tipo de capital esteja adaptado para o financiamento de negócios de impacto socioambiental. Parte das ações do consórcio C3, por exemplo, corresponde a doações  orientadas para o aprimoramento das competências institucionais das organizações receptoras. Esse aprimoramento é necessário para cumprir os requisitos exigidos por outros financiadores, que muitas vezes atraídos pela legitimidade e intencionalidade dos investidores catalíticos também decidem pela disponibilização de recursos. Essas sinergias refletem o potencial trazido pelo envolvimento filantrópico, independentemente do conceito empregado, para abordar os desafios sociais de maneira colaborativa.

 

A filantropia dos ativos financeiros: os fundos filantrópicos

 

Desde 2019, a filantropa estadunidense Mackenzie Scott doou mais de US$ 14 bilhões para mais de 1.600 organizações em todo o mundo. No Brasil, 16 organizações sociais foram beneficiadas em rodadas de investimento sem contrapartidas, totalizando mais de US$ 17 milhões. Entre as organizações que receberam recursos de Scott estão fundos  patrimoniais filantrópicos orientados para atuar em diferentes frentes da defesa dos direitos humanos, como Fundo Baobá, Fundo Brasil de Direitos Humanos, Fundo Casa Socioambiental e Fundo Elas.

Fundos filantrópicos correspondem a um conjunto de ativos financeiros sob gestão de uma organização da sociedade civil e são cada  vez mais importantes para o financiamento de causas sociais em todo o mundo. No Brasil, os maiscomuns são os Fundos Patrimoniais Filantrópicos, regidos pela Lei nº 13.800 de 2019,  que os define como estruturas financeiras criadas com propósito de assegurar a estabilidade financeira de uma entidade sem fins lucrativos e garantir que as doações sejam preservadas de forma contínua, empregando os retornos gerados exclusivamente para sustentar as atividades da organização. Também conhecidos como endowments, os fundos filantrópicos tornaram-se instrumentos importantes para o recente florescimento de organizações da sociedade civil capazes de financiar atividades socioambientais, realizar  parcerias com a administração pública e atrair investimentos privados para suas causas.

A popularização dos fundos filantrópicos fez com que organizações e movimentos sociais passassem a utilizá-los amplamente. Em 2023, mais de cem fundos estiveram ativos no Brasil, representando cerca de US$ 24 bilhões em patrimônio imobilizado.32 Fundos filantrópicos não são novidade. Um exemplo notável é o Fundo Patrimonial da Fundação Bradesco, criado em 1956 e que conta atualmente com mais de US$ 13 bilhões em patrimônio. Outro fundo pioneiro é o da Fundação Antonio e Helena Zerrenner INB, criado em  1936 e que atualmente desenvolve iniciativas voltadas para a promoção da saúde e educação de funcionários da Ambev, empresa da qual é acionista e conveniado.33 Apesar dos exemplos históricos e da grande mobilização de recursos (mesmo que com alguns poucos fundos representando a maior parte desses recursos), a maioria dos fundos patrimoniais ativos no Brasil é recente e data do início dos anos 2000. O grande salto é ainda mais atual e começou a ser delineado a partir de 2015.

Em um primeiro momento, a criação desse tipo de arranjo foi impulsionada pela constituição  de fundos ligados a universidades e orientados para o financiamento de pesquisa, bolsas de estudo e investimentos complementares em infraestrutura dentro dos espaços universitários. A partir da regulamentação em 2019, o crescimento da modalidade de financiamento filantrópico ganhou novo ciclo de vitalidade, chegando a diversas áreas. A inovação trazida pela instituição de fundos patrimoniais é melhor compreendida quando se observa o amplo espectro de subfinanciamento de algumas causas sociais, sobretudo que tratam de direitos de minorias, mas que encontraram na modalidade uma maneira sustentável de garantir os recursos fundamentais para a sobrevivência da organização e, ao mesmo tempo, estimular outros agentes no desenvolvimento de pessoas, negócios e ações sociais.

O surgimento de fundos criados exclusivamente para o financiamento de projetos e causas raciais, como o Fundo Baobá, estabeleceu exemplos e parâmetros para a constituição de novos projetos. Entre eles está o fundo Casa Chama, orientado para o apoio a projetos socioculturais da população transvestigênere de São Paulo e que conta com o apoio de entidades gestoras profissionais como a Sitawi. O Fundo Agbara, por sua vez, tem se destacado na promoção de capacitação para a inclusão socioprodutiva de mulheres negraspor meio de aportes financeiros, mentorias, capacitação, produção de conhecimento e promoção de eventos voltados ao fortalecimento e valorização da cultura negra. Dez anos atrás, a independência financeira de organizações sociais orientadas para causas públicas como essas dificilmente seria encontrada.

A evolução recente dos números de fundos filantrópicos foi acompanhada pela crescente profissionalização e modernização de organizações dedicadas a seu apoio e gestão. Organizações como Sitawi, Gife, Idis e Latimpacto contribuíram para a popularização de modalidades alternativas de captação e gestão de recursos dentro do contínuo de capital. Compartilhando grande parte dos desafios enfrentados pelas organizações da sociedade civil, os fundos filantrópicos também têm como prioridadea formação de lideranças, a profissionalização dos sistemas de gestão e a disposição de recursos adequados para a manutenção institucional das organizações. Um desafio particular para a gestão transparente dos fundos tem sido a criação de mecanismos deliberativos, como conselhos consultivos e de administração, importantes para melhorar os indicadores de governança. A avaliação das contas por meio de auditorias independentes e o estabelecimento de instrumentos de compliance também configuram preocupações cada vez mais importantes para a manutenção da legitimidade da atuação e crescimento dos fundos.

Comparativamente às abordagens de investimento filantrópico como venture philanthropy e capital catalítico, realizadas sobretudo por investidores sociaiscomo fundações e institutos,  a instauração de fundos patrimoniaistraz complexidade à relação entre financiador e projeto financiado. Fundos orientados para causas, por exemplo, são muitas vezes constituídos por doações de fundações e institutos tradicionais, tornando-se, eles mesmos, organizações  filantrópicas. A garantia do respeito a princípiosde boa governança é, por esse motivo, um imperativo. Isso inclui a ênfase em responsabilidade fiduciária, transparência de gestão e boas práticas de prestação de contas. Por essa razão, a governança desempenha um papel fundamental na garantia da eficácia desses fundos, o que assegura a continuidade e o impacto das iniciativas filantrópicas, ao mesmo tempo que proporciona uma base sólida para a tomada de decisões. Garantir a profissionalização da gestão mantendo a flexibilidade é o desafio presente e futuro dessesnovos fundos filantrópicos.

 

Quando a filantropia importa?

 

Nos últimos anos, a filantropia emergiu como força complementar na busca por soluções inovadoras e sustentáveis para o financiamento de alguns dos mais complexos desafios dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs). A capacidade de mobilização de capital para iniciativas de impacto, a estruturação de diferentes instrumentos financeiros, apoio institucional e capacidade de adaptação à ação em territórios específicos são aspectos que ressaltam a relevância do envolvimento filantrópico na promoção de políticas públicas e no estímulo a negócios sociais e projetos socioambientais de caráter civil ou misto.

A filantropia desempenha um papel suplementara os Estados e iniciativas privadas no apoio financeiro e institucional para o desenvolvimento de organizações sociais com competências importantes para o alcance dos ODSs. As abordagens, tipo de capital e modelos de gestão filantrópicos atenuam os riscos percebidos pelo capital privado justamente por operar em uma lógica paciente e menos interessada no retorno financeiro. As transformações no interior do universo filantrópico estão em sintonia com as mudanças no setor privado e em organizações do terceiro setor e trazem contribuições significativas ao garantir estabilidade para organizações sociais e ao estimular inovações que orientam e inspiram novas atitudes e projetos de interesse público.

Existe uma percepção presente e ainda a ser avaliada no campo social de que, nos  últimos anos, os incentivos privados e filantrópicos têm contribuído para o crescimento das organizações e dos negócios de impacto social. Esse fenômeno e o aumento do volume de financiadores e recursos mobilizados têm criado pressão pela profissionalização da gestão, o que implica a observação de processos decisórios e gerenciais mais próximos dos realizados no setor privado. A filantropia que apoia a inovação social é uma fonte importante para a popularização e experimentação de projetos que contribuem para o cumprimento dos ODSs. Seja como estratégia, filosofia ou recursos para a constituição de fundos patrimoniais, a filantropia tem auxiliado nesse processo.

A atuação da filantropia na venture philanthropy, no capital catalítico e nos fundos filantrópicos ilustra como é possível integrar estratégias financeiras, operacionais e de impacto para abordar questões sociais de maneira colaborativa. A prática aponta caminhos de como ajustar abordagens de investimento e suporte com base nas necessidades específicas de cada beneficiário, ao  reconhecer suas particularidades e os envolver no processo de desenvolvimento e implementação de projetos.

Por outro lado, nota-se que a abordagem da filantropia, tal qual a do capital tradicional, precisa considerar os diversos estágios de maturidade das organizações beneficiárias e se adaptar a eles. Bons exemplos disso são as práticas adotadas pela abordagem de VP, em que a flexibilidade prevista permite intervenções personalizadas em organizações que variam das mais incipientes às mais consolidadas. Venture philanthropy, capital catalítico e fundos filantrópicos são resultado das transformações que ocorrem no campo filantrópico e do investimento social em todo o mundo. São instrumentos e abordagens complementares a outras fontes de recursos de financiamento de projetos orientados às questões do desenvolvimento sustentável, adaptados a contextos e atores sociais específicos.

Os diferentes mecanismos e casos explorados convergem no entendimento de que a filantropia estratégica não somente fornece recursos financeiros, mas também promove a integração e colaboração com as comunidades e agentes locais. A capacidade de entender as nuances do território e trabalhar em conjunto com organizações locais reforça o impacto positivo e sustentável das iniciativas filantrópicas. Essa não é, no entanto, tarefa para toda e qualquer organização  financiadora. Existem movimentos e atores preparados para realizar essas conexões. Como foi visto, a profusão das contribuições da filantropia não ocorreria se não fosse pela existência de intermediários importantes para a popularização e profissionalização do campo. A combinação de estratégias, instrumentos e atores é crucial para garantir a identificação e aceleração de novos  modelos e ideias de negócios sociais, a fim de que a escala desejada das soluções para os problemas do desenvolvimento seja alcançada. Nesse sentido, mais pesquisa é necessária.

Seja qual for o instrumento ou abordagem filantrópica de financiamento, o desafio da governança está presente. Articular atores com capacidades, maturidades e de contextos distintos não é tarefa trivial. A filantropia tem um longo caminho para compreender seu papel como apoiadora de boas políticas públicas, sejam promovidas pelo Estado ou por meio de outros atores da sociedade civil. Os gestores  devem ser mais bem qualificados, o arcabouço legal deve ser mais receptivo e seguro e o diálogo com a comunidade de base e empresarial deve ser mais desenvolvido. O papel esperado da filantropia não é apenas contribuir financeiramente para os ODSs, mas sobretudo moldar um paradigma de desenvolvimento sustentável baseado na colaboração, transparência e impacto positivo duradouro.

 

OS AUTORES

Pietro Rodrigues é pesquisador principal do Departamento de Pesquisa Filantropia da Fundação José Luiz Egydio Setúbal, professor titular e coordenador do Curso de Relações Internacionais do Ibmec SP. Doutor em relações internacionais pela Universidade de São Paulo (USP) e pelo King’s College London e mestre em Ciência Política pela USP. Foi coordenador de política internacional da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência  da República do Brasil e trabalhou como consultor de advocacy e relações Internacionais para diversas organizações.

Felipe Jukemura é mestre em desenvolvimento internacional pela SciencesPo de Paris e graduado em relações internacionais pela PUC-SP. Tem experiência em finanças sustentáveis, cooperação e desenvolvimento internacional e atua como pesquisador da Fundação José Luiz Egydio Setúbal e como assessor de finanças verdes no Iclei.



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