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O Iminente Conflito Sobre Como Disponibilizamos Nossos Dados

Temos diante de nós dois modelos a seguir para tratamento de dados: um dirigido por empresas e outro determinado por ações de ativistas. O vencedor definirá quanto controle teremos sobre nossas informações digitais.

Por Lucy Bernholz e Brigitte Pawliw-Fry

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Ilustração por the Project Twins

Quando as vacinas contra a Covid-19 ficaram disponíveis nos Estados Unidos, a demanda superou largamente a oferta. Sites relacionados à saúde pública eram difíceis de acessar, variavam de acordo com o município e não ofereciam a facilidade de uso característica dos sites de comércio eletrônico. Em todo o país, logo surgiram pessoas com habilidades em coleta de dados formatando maneiras mais fáceis para a população saber onde havia vacina e como agendar horários para tomar uma dose. Elas se denominaram “caçadores de vacinas”.

Em março de 2021, esforços similares estavam sendo feitos no Canadá e em outros países. Um desenvolvedor de websites chamado Andrew Young deu início a um movimento caça-vacinas em Toronto, após dificuldades em agendar um horário para seu pai ser vacinado. Ao lado de outros colegas, ele então lançou o Vaccine Hunters Canada (VHC), ou Caçadores de Vacinas Canadá. O projeto nasceu apenas com uma conta no Twitter e um servidor no Discord que hospedava informações sobre a disponibilidade de vacinas.1 Com essas duas ferramentas e uma equipe de dedicados voluntários, o VHC rapidamente criou uma maneira de organizar informações atualizadas sobre onde, como e quando se vacinar. Os voluntários usaram dados encontrados em sites de farmácias e de saúde pública e também informações que pessoas em sites de vacinação forneciam ao VHC por meio do Twitter, seja por mensagens ou marcando-os com tags em postagens. Esse esforço coletivo permitiu informar sobre a falta de vacinas nos postos e sobre os tipos de vacinas disponíveis, quais idiomas eram falados e também fazer atualizações sobre quem tinha direito a ser vacinado em cada posto. Os vacinados reportavam sobre as novas regras nos postos de vacinação, por vezes incluindo informações e mudanças sobre as quais nem mesmo o poder público tinha conhecimento.2

O VHC representa um exemplo de pessoas usando dados para reforçar uma ação coletiva. Ele se baseia em informações de diversas fontes — entre as quais empresas como o Walmart e a rede de mercados Sobeys — que hospedam postos de vacinação, agentes de saúde pública e pessoas que enviam informações atualizadas baseadas em suas próprias experiências. Esse conjunto de fontes de dados é integrado para facilitar seu uso, e observações das pessoas que estiveram nos postos de vacinação individuais os mantêm atualizados. A equipe do VHC é extremamente cuidadosa quanto ao tipo de informação que coleta e usa. Seu foco está na disponibilidade e acesso coletivos, não em qualquer ação particular e individual.

Ações coletivas baseadas em dados são uma prática crescente e comum, com exemplos nas áreas de ciência civil, pesquisas médicas, arte e cultura, defesa do consumidor e em outros domínios. O que caracteriza essas diversas iniciativas é a ideia de que as pessoas podem deliberadamente contribuir com dados digitais para uma causa maior que elas próprias, da mesma forma que, há tempos, doam tempo e dinheiro. Já existem leis e normas para a doação de tempo e dinheiro, como as que regulamentam doações a associações sem fins lucrativos, doações de caridade e ações de voluntariado. Entre outras considerações, a legislação deve ser redigida com distinções claras entre as doações intencionais de tempo e as práticas baseadas em exploração do trabalho e entre as contribuições financeiras e a extorsão ou fraude. Ambas instâncias decorrem da tomada de decisões deliberadas do doador. Indivíduos têm controle entre doar ou não tempo e dinheiro para uma causa, e há um elenco de cláusulas que protegem tanto o doador quanto a organização destinatária. Regras sobre doar tempo e dinheiro existem há tanto tempo que muitas pessoas não lhes dão muita atenção, exceto defensores de políticas públicas e acadêmicos. Porém, quando se trata de fornecer dados, a discussão está sendo inaugurada, e as decisões que tomarmos terão importância para todos nós. O conflito sobre se e como compartilhamos nossos dados está apenas começando.

Dois futuros bem distintos são possíveis. Um deles se assemelha a iniciativas como o VHC, em que pessoas buscam informações de difícil acesso ou ocultas atrás de barreiras proprietárias. Vamos examinar um leque de casos, de pessoas que compartilham fotografias de pássaros até faturas de TV a cabo ou dados sobre saúde. Em cada um desses exemplos, comunidades estão implementando regras sobre o uso de dados, lidando com a tecnologia e provendo novos serviços ou análises. Essa abordagem é “baseada em pessoas”: decisões sobre quais dados coletar, sob quais condições e com quais proteções geralmente são feitas por indivíduos que têm seus próprios dados envolvidos. O código de software por trás de tudo isso é comumente de fonte aberta, e seus curadores prestam bastante atenção ao que pode ou não ser feito com os dados.

O outro futuro já começou a ficar evidente há mais de uma década. É um processo de cima para baixo, orientado por um modelo corporativo de filantropia de dados, um termo criado pela Organização das Nações Unidas (ONU). No jargão da ONU, a filantropia envolvendo dados é quando “o setor privado compartilha dados para apoiar ações políticas mais pontuais e seletivas”.3 Nessa abordagem, companhias com grandes conjuntos de dados (quase todas, nos dias atuais) permitem que pesquisadores buscando enfrentar determinado problema tenham acesso aos mesmos. Exemplos, aqui, incluem empresas de telecomunicações que analisam dados agregados sobre localização de celulares para rastrear os movimentos das pessoas durante uma pandemia ou analisar mensagens em redes sociais para prover ajuda humanitária. Essa atuação assegura o total controle das empresas sobre seu fluxo de dados e permite que se beneficiem da boa vontade dos usuários para realizar pesquisas sobre alguma questão definida externamente. As pessoas cujos dados entram nesse fluxo não têm qualquer poder decisório sobre o que ocorre com os mesmos, raramente há qualquer revisão externa sobre a análise ou envolvendo os dados de referência, e os próprios termos de serviço das companhias se apropriam do processo de tomada de decisões.

Deixar que as corporações decidam como os dados serão usados suprime o elemento de livre escolha das doações. Isso também se contrapõe aos interesses democráticos, pois abre brechas para as empresas evitarem responsabilização pública e restringirem iniciativas da sociedade. Só no ano de 2021, o Facebook encerrou pesquisas acadêmicas na New York University (NYU) e em organizações sociais civis (AlgorithmWatch) simplesmente impedindo o acesso a dados que elas estavam usando. O Facebook, hoje Meta, passou a limitar o acesso ao CrowdTangle, uma ferramenta que acadêmicos usam amplamente para estudar redes sociais. Ainda mais preocupante, a empresa anunciou aos pesquisadores, em setembro do mesmo ano, que os dados que compartilhou sobre estudos das eleições continham erros. Essa revelação levantou questões sobre as conclusões dos pesquisadores e evidenciou apenas uma das muitas maneiras que a companhia tem de influir sobre as iniciativas de supervisão externa.4 Pelo fato de o Facebook,  Google, Amazon, Apple, Twitter, entre outros, controlarem os próprios dados, eles têm demasiado poder decisório sobre pesquisas e fiscalização externa. Além disso, dispõem de meios para bloquear uma pesquisa que não desejam. Por controlar quais dados ficam disponíveis para estudo (se restar algum), as companhias podem influenciar quais perguntas serão feitas e respondidas. Para evitar restrições desse tipo, devemos separar a necessidade de responsabilização pública e a integridade das pesquisas do domínio da filantropia e assegurar que companhias não tenham oportunidades nem incentivos para confundir os dois.

O que está em jogo no conflito entre esses dois futuros é se teremos a capacidade de fazer escolhas intencionais sobre o uso de nossos dados em defesa de uma causa pública. O primeiro caminho, de modelos implementados pela comunidade para “doação” de dados, dispõe de muitas maneiras de concretizá-los. Eles ainda não estão visíveis nem são consistentes, e as proteções contra uso indevido ou fraude são pequenas. Esse espaço é fragmentado e difícil de navegar, mas contém uma enorme quantidade de energia criativa – e todo tipo de possibilidades para se tornar fácil, mais comum e mais consistente. Apesar de as maneiras pelas quais[como] os indivíduos podem doar dados estejam apenas surgindo, uma coisa que todos eles compartilham é um engajamento de caráter intencional. Os participantes que desenvolvem métodos e regras querem deixar o mais claro possível que qualquer participação é voluntária e deliberada – que você, e só você, é quem decide contribuir com seus dados. Assim como as regras de voluntariado previnem a exploração de tempo do voluntário, regras sobre fornecimento de dados também precisarão impedir a extração adicional de dados.

Existem muitas possibilidades para uso de dados digitalizados em benefício público e para solicitar doações de dados. Os caçadores de vacinas, por exemplo, demonstram como podem ser criados conjuntos de dados agregando informações de bases de dados tanto de empresas como de indivíduos. Esses diferentes dados são, então, selecionados e submetidos a uma curadoria para ajudar as pessoas a agir. Outros exemplos ilustram problemas alternativos, questões e respostas que valem a pena ser consideradas em algum detalhe. Embora se baseiem em diferentes tipos de dados, envolvam comunidades distintas e abordem problemas muito diversos, eles exploram algumas questões transversais.  Em primeiro lugar, é preciso encontrar maneiras de convidar à participação. Além disso, é essencial compreender os detalhes dos próprios dados, a gama de preocupações das pessoas sobre sua privacidade e muitas questões de controle. Dados digitais frequentemente representam muito mais relações entre pessoas do que comportamento individual. E-mails têm remetente e destinatário; DNA representa indivíduos ao longo de gerações – como essas relações serão protegidas? Quais tipos de mecanismo de consentimento ou de adesão as pessoas entendem e nos quais confiam? Que proteções e promessas podem ser feitas sobre segurança, uso secundário ou eliminação de dados? Como poderemos criar processos que contribuam com dados que respeitem os interesses individuais das pessoas e a privacidade coletiva? Os exemplos que seguem vêm do iNaturalist, Consumer Report e de pesquisadores médicos. Os processos que eles estão desenvolvendo podem informar o que precisa ser decidido coletivamente para criar de maneira segura e equânime os meios para contribuir com dados.

 

Doação de fotografias para salvar o planeta

 

Cat Chang começou a usar o aplicativo de celular iNaturalist porque os guias sobre cogumelos são pesados. Nativa do Havaí, Cat carrega dois universos distintos de conhecimento em sua cabeça. Ela se recorda das caminhadas com sua avó na área comunitária em que sua família viveu por gerações, como também de como conversavam, tocando e inspecionando cada planta. A família mudou-se para o norte da Califórnia quando ela estava no ensino médio. Na faculdade, passou a dedicar-se à botânica e à horticultura – mais uma vez aprendendo sobre plantas, mas dessa vez através das lentes da ciência ocidental e de taxonomias latinas.5 Como arquiteta paisagista, Cat ficou fascinada com a saúde do solo e com os  cogumelos, que ela investiga em longas caminhadas por bosques, sempre com a mochila repleta de manuais. Por isso, quando soube do iNaturalist por uma amiga, ficou muito interessada. “Não conheço muito do mundo tecnológico, mas esse aplicativo era para mim.” Os manuais passaram então a ficar em casa.

Cat usa o aplicativo iNaturalist quase diariamente. Ela posta fotos tanto de alta qualidade como também desfocadas. Quando pode, inclui seus melhores palpites em busca de identificar o que está examinando. “Mas isso é apenas o começo”, diz ela. “Depois que as fotos são postadas, a comunidade on-line as verifica. Eles sugerem identificações. Se um número suficiente de usuários concordar, a foto é marcada como identificada. Uma imagem em alta resolução e adequadamente identificada é marcada como sendo em ‘nível de pesquisa’. Essas fotos são então assinaladas na base de dados do iNaturalist para que cientistas possam usá-las. Mesmo que uma fotografia não esteja em nível de pesquisa, Cat muito provavelmente aprenderá algo.

Toda foto é uma doação de dados digitais. Em julho de 2021, o iNaturalist tinha um arquivo de dados contendo mais de 78 milhões de fotos, vídeos e gravações de áudio. O aplicativo, o banco de dados que o alimenta e a comunidade de quatro milhões de usuários têm pessoas especializadas ou amadores em todos os ramos das ciências naturais. As imagens postadas são organizadas por metadados (informações sobre local, hora e data) que as câmeras dos celulares automaticamente inserem nas fotos.

Cientistas usam o banco de dados do iNaturalist para identificar mudanças que acontecem com o passar do tempo em ecossistemas de todo o mundo. Amadores usam o iNaturalist para identificar rapidamente o nome de algo que tenham visto, compartilhar o que aprenderam e ajudar a responder perguntas. As fotos são, todas, doadas; o tempo usado pelas por cada participante para responder às perguntas é voluntário. Os resultados são extraordinários: milhões de pessoas têm sua curiosidade saciada, um incomparável banco de dados de biodiversidade cresce devido à doação de fotos e comunidades de indivíduos que pensam de modo semelhante conectam-se na internet e fora dela. Os dados do iNaturalist têm contribuído também para avanços científicos. Outras comunidades, como as que usam o eBird – um aplicativo semelhante ao iNaturalist –, têm ajudado a montar um banco de dados em que muitos artigos científicos revisados por colegas são publicados de maneira independente. Quando se trata de doações de dados, pequenas contribuições têm um grande impacto.

Os usuários do iNaturalist estão lá porque querem. Para participar, é preciso baixar um aplicativo ou pesquisar o website. A equipe do aplicativo precisa ser a mais clara possível sobre o que acontece com as fotos e deve dar às pessoas uma opção, a cada passo na adesão à plataforma, sobre como remover alguma informação sobre as fotos ou criar uma conta. Para cada uma dessas decisões a equipe pondera o que seria melhor para a ciência e o que seria melhor para os membros da comunidade. Por exemplo, se você postar uma foto para obter uma identificação, mas não quiser compartilhar sua localização com o site, isso pode ser feito. No entanto, isso rebaixa a pontuação da foto para fins de pesquisa, mas confirma que o fotógrafo controla os dados. Usuários do iNaturalist participam de um relacionamento recíproco. Eles postam fotos para terem suas questões respondidas e suas contribuições de dados ajudam cientistas a estudar o mundo à nossa volta.

 

ConsumerReports e contas de internet a cabo

 

Um exemplo adicional de doações de dados centradas em pessoas vem do ConsumerReports (CR), um grupo americano de proteção ao consumidor, conhecido por seus testes rigorosos realizados com eletrodomésticos e carros. Em julho de 2021, o CR lançou uma campanha chamada Fight For Fair Internet (Lutemos por uma internet justa). O objetivo é aprender sobre os serviços via cabo em diferentes partes do país conforme vivenciado pelos consumidores, e não segundo a propaganda das companhias operadoras via cabo. Para atingir esse objetivo, o CR os incentivou a contribuir com dados de suas contas de internet a cabo. Então, a equipe do CR analisou as contas, buscando identificar tarifas ocultas e diferenciais de preços baseados em localização. Trabalhando com uma dúzia de parceiros organizacionais, o CR desenvolveu um processo de inclusão de dados das contas dos contribuintes  que protege a privacidade dos mesmos e ainda criou um questionário opcional para que participantes forneçam informações adicionais sobre renda, perfil demográfico e identificação política (para testar a hipótese de que o acesso teria uma característica bipartidária). Mais de 36 mil pessoas participaram. O CR agradeceu a doação de seus dados e deu a elas acesso gratuito ao grupo.

Para criar essa pesquisa, o CR apoiou-se em algumas das práticas da ciência cidadã e de pesquisas médicas. A participação é inteiramente voluntária. Declarações claras explicam quais dados estão sendo coletados, como estão sendo usados e o que resultará de uma pesquisa. Os fornecedores de dados são respeitados e recebem um brinde. Seus dados – que podem ser úteis para o CR de muitas formas – são usados apenas para os fins da pesquisa. A equipe do laboratório digital do CR, que comanda a pesquisa, têm trabalhado com marketing, admissão de membros e pessoal de pesquisas de toda a organização para proteger a integridade da relação entre os fornecedores de dados e o estudo.

O CR incorporou reciprocidade a seu estudo sobre as contas pagas às companhias de serviços via cabo em troca dos dados, mas também respondendo a questões de interesse da sociedade como um todo que interessam aos participantes individuais. Como o trabalho do iNaturalist, a investigação da variedade de preços teve a intenção de beneficiar a sociedade. Reciprocidade também é parte do poder do Worker Info Exchange (Intercâmbio de Informações de Trabalhadores), um grupo londrino que usa dados de motoristas que fazem corridas compartilhadas, para ajudar a compreender a dinâmica de poder entre aplicativos de trabalho tipo Uber e seus motoristas. Essas são iniciativas nas quais o uso de dados pode estabelecer condições justas entre empresas e pessoas.

Como acontece frequentemente, novas regulamentações são tanto causa quanto resultado desse ativismo. O General Data Protection Regulation (GDPR), ou Regulamentação Geral de Proteção de Dados, uma norma da União Europeia sobre dados, está dando às pessoas o direito de demandar cópias de seus dados. O California Consumer Privacy Act (CCPA), ou Lei de Privacidade do Consumidor da Califórnia, está fazendo o mesmo. Ambas as leis criam novas práticas para que as pessoas solicitem dados às companhias ou deleguem o encaminhamento desses pedidos a um intermediário. Um relatório de 2020 elaborado por dois pesquisadores da União Europeia encontrou dezenas de exemplos de agregadores de dados empregados como instrumento de criação de instâncias comunitárias e criação de novos conjuntos de dados.6 À medida que iniciativas de pesquisa e defesa dos consumidores como o CR e o Worker Info Exchange crescerem, provavelmente veremos essas relações intermediárias terem cada vez mais importância como instrumentos de agregação de dados. Elas poderão até mesmo tornar-se tão importantes para esse tipo de pesquisa quanto os documentos do Freedom of Information Act (Lei de Liberdade de Informação) são para pesquisadores e jornalistas.

O surgimento de intermediários como instrumento de agregação de dados é uma das maneiras pelas quais as organizações civis estão reagindo às novas regras referentes a dados. Líderes comunitários, organizações sem fins lucrativos e entidades filantrópicas são bem adaptados para pensar essas dinâmicas porque eles priorizam relações confiáveis e operam sob normas a favor de mobilizar pessoas por decisão voluntária delas mesmas. Numa ironia algo estranha, as regras que asseguram privacidade financeira, opções e influência dos provedores poderão proporcionar um modelo para balizar como as organizações sem fins lucrativos consideram os doadores de dados. A tradução de práticas não é, porém, direta, porque os dados digitais não funcionam como o dinheiro, e os danos decorrentes de mau uso podem incluir bem mais do que simples fraudes. Um dos princípios mais importantes que norteiam a elaboração de normas e mecanismos para contribuição com dados deveriam ser regras comprometidas em reduzir danos.

Dados de deslocamentos e pesquisas médicas

 

Embora a ubiquidade de dados digitais seja recente, pesquisas médicas são um campo que depende, há muito tempo, do compartilhamento de dados. A história da coleta de dados em medicina é plena de horrores, especialmente aqueles que se perpetuam contra populações racialmente identificadas e contra as mulheres, sendo apenas alguns capturados em livros como A vida imortal de Henrietta Lacks, de Rebeca Skloot. Foi somente na metade do século passado que vimos esforços deliberados e estruturados com o intuito de proteger os mais básicos direitos das pessoas que interagem com o sistema médico em geral ou, em especial, que participam de pesquisas. Essas estruturas incluem juramentos profissionais, conselhos de avaliação ética, licenciamentos e normas de atuação profissional e aplicação da legislação. Elas são falíveis, porém existem, o que é mais do que se pode afirmar sobre outras áreas. A comunidade envolvida em pesquisas médicas vem, em geral, recebendo bem a proliferação de dados digitais autogerados como uma bênção em potencial para avanços – desde que eles possam ser coletados, usados, protegidos e resguardados de maneiras que protejam o indivíduo que contribui com a disponibilização das informações.

Uma grande comunidade de pessoas está focada na criação de novos tipos de instituições nas quais possamos confiar seguramente nossos dados e nos permitir determinar como eles serão usados. Tal iniciativa inclui essas novas organizações, como cooperativas de dados, serviços civis confiáveis de dados e os chamados coletivos abertos, grupos com uma missão compartilhada que funciona com total transparência, onde todos podem ver como recebem ou gastam dinheiro. Essas organizações hoje são incomuns, mas algumas delas estão destinadas a ser bem-sucedidas e tornarem-se tão familiares quanto as organizações sem fins lucrativos atuais. Pense nisso: empresas sem fins lucrativos proliferaram nos Estados Unidos como instituições confiáveis que investem tempo e dinheiro doados para trabalhar produzindo mudanças. Estamos agora vendo grandes esforços de criação de novas formas de estruturas institucionais criadas com o propósito de permitir doações seguras e confiáveis de dados digitais.

Em 2015, por exemplo, a Apple introduziu o ResearchKit, (Kit de Pesquisa), uma plataforma de software que permite às pessoas compartilhar, caso queiram, dados de seus celulares com pesquisadores médicos. O mPower, um estudo recente sobre a doença de Parkinson, envolveu uma equipe de pesquisadores de uma organização sem fins lucrativos em Seattle, a Sage Bionetworks. Eles queriam coletar dados de mobilidade – quanto uma pessoa se move por dia – para ver como os tremores que caracterizam a doença mudam ao longo do dia e se existe uma relação entre os tremores e o nível de exercício.

Hoje, a equipe da Sage Bionetworks dedica-se à elaboração de formas de criar confiança, respeito e proteção nos processos de pesquisa. Isso já é bastante difícil mesmo quando pesquisadores e participantes do estudo têm um relacionamento presencial. Mas fazer isso com centenas de pessoas mediante um aplicativo cria um outro nível de dificuldade. Essa tarefa é o trabalho de Vanessa Barone, uma cientista pesquisadora na área de divulgação e engajamento na Sage Bionetworks. Ela é mestre em saúde pública e esteve sempre envolvida com pesquisas clínicas. Antes de entrar na Sage, a experiência profissional de Barone era apenas com ensaios clínicos nos quais ela podia desenvolver “uma relação bem pessoal com os participantes da pesquisa”. Seu trabalho era estimular as pessoas a se envolverem, seja pessoalmente, por e-mail ou mediante acompanhamento via telefonemas. Ela passava o tempo escutando as preocupações dos pacientes, conversando com eles sobre os protocolos e respondendo a suas perguntas. Ela se interessou pelo trabalho na Sage, pois sabia que mHealth, ou “saúde móvel”, seria “uma forma interessante de se engajar com as pessoas em um nível diferente”. Ela queria também enfrentar alguns dos problemas envolvidos no recrutamento de pesquisadores, “sejam obstáculos éticos ou simplesmente dificuldades de recrutamento em geral e a retenção de talentos, o que já é em si mesma uma questão que ninguém consegue resolver completamente”.

Barone, uma mulher negra, conhece a história dessa área, repleta de violência, e dedicou sua carreira a tentar desenvolver uma maneira confiável de diversificar a participação em pesquisas. A mHealth não resolve o problema da confiança nem da diversidade. Na realidade, as dificuldades conhecidas persistem e assumem novas formas. O recrutamento digital e em escala nacional significa que Barone não pode mais alcançar as pessoas pessoalmente. A Sage poderia usar as mesmas ferramentas de marketing digital que anunciantes usam para tentar atingir seus alvos específicos de recrutamento. Mas o foco da Sage em proteção de privacidade e consentimento individual torna essas ferramentas suspeitas para fins de pesquisa.

Tecnologias e dados digitais criam e complicam a promessa da mHealth. Eles também geram novos problemas. Nem todos têm um celular e, por isso, recrutar participantes através de aplicativos cria uma nova forma de discriminação. Práticas contemporâneas disseminadas de processamento de dados e uso de inteligência artificial estão profundamente interligados à supremacia branca, e pesquisas médicas já têm seu próprio passado irreparável nesse âmbito. Os vínculos entre a supremacia branca e a inteligência artificial têm sido documentados pelos acadêmicos Safiya Noble, Ruha Benjamin e Timnit Gebru, entre outros, e a história da ética médica inclui histórias de horror de violência racial e de gênero que persistem nos dias atuais.7 Aplicar esses sistemas tais como eles existem à mHealth causaria danos, não produziria progresso.

Nós podemos aprender muito com o campo de pesquisas médicas, mas queremos colocar parte dele de lado. Tanto a experiência de Barone no recrutamento de pessoas negras para os estudos da mHealth quanto o trabalho dos Caçadores de Vacinas nos relembram que relações humanas são críticas. Dados digitais poderiam intensificar essas relações, facilitando que netos ajudem seus avós a encontrar acesso a vacinas ou que potenciais participantes céticos em um estudo de pesquisa tenham suas perguntas respondidas. Mas as redes de relacionamentos e as decisões de não usar determinados dados em seu trabalho foram o que mais contribuiu para o sucesso de Barone.

 

Protegendo as pessoas em primeiro lugar

 

Os exemplos que examinamos vêm de diferentes áreas, usam tipos de dados extremamente distintos e são estruturados segundo uma gama de opções organizacionais. Mas todos eles colocam as pessoas em primeiro lugar. As questões sobre governança de dados – quais dados estão sendo usados, o que será feito com eles, como as pessoas poderão mudar de ideia – são essenciais para as escolhas que esses grupos fazem, mas estão, todas, a serviço de criar algo que as pessoas optarão por usar. Dados não são tomados das pessoas, ninguém se registra automaticamente e os sinais de desistência são claros – você pode decidir sair a qualquer momento. Esses passos podem parecer pequenos, mas são o que diferencia uma contribuição voluntária de uma prática abusiva – e você não os verá na maioria das interações envolvendo dados em sites de empresas ou do governo. A ideia de consentimento consciente é complicada, e o mundo digital a torna ainda mais complexa. Porém todos os nossos exemplos, do VHC à Sage Bionetworks, mostram que a resposta à pergunta “Como as pessoas confiariam no nosso projeto a ponto de participar?” direciona as respostas a questões mais recentes sobre governança de dados.

Importantes características de dados digitais em rede os distinguem de tempo e dinheiro como algo passível de ser doado. Em primeiro lugar, dados são relacionais – não apenas seu DNA digitalizado, mas também suas mensagens de texto, e-mails e lista de contatos. Eles podem existir em vários lugares ao mesmo tempo, algo que acontece quando você envia cópias de fotos digitais de um celular para seus amigos. Elas podem ser armazenadas em grande quantidade em vários lugares e mescladas e combinadas a outros tipos de dados. Atualmente é muito difícil saber quem tem acesso a qual dado, onde eles estão e o que cada pessoa está fazendo com eles. Essa dificuldade é criada intencionalmente por aqueles que coletam dados digitalizados. Essas características significam que “doar” significa, na realidade, garantir acesso a eles, e não renunciar a seu domínio sobre eles. Essa ideia é contrária a nossas premissas sobre propriedade – e também a nossas premissas sobre filantropia, doação e controle. Compartilhar dados é comumente fácil, sem complicação – e essa é precisamente a razão pela qual as pessoas têm receio do que está sendo feito com seus dados e porque isso não é como compartilhar tempo ou dinheiro.

Por essas razões, a questão envolvendo dados digitais tem revitalizado discussões sobre a governança de um território compartilhado e o gerenciamento de dados nesse território. Tendo em vista a dificuldade em definir quem é dono dos dados, o que aconteceria se considerarmos essa questão de maneira distinta? Ir contra tradições de propriedade intelectual e propriedade individual, práticas de governança de territórios compartilhados e propriedades públicas pode inspirar alternativas de governança de dados digitais. Ao imaginarmos maneiras pelas quais poderemos compartilhar nossos dados para identificar novas perspectivas, poderemos também imaginar novas maneiras de praticar uma governança de dados – não como algo sobre o que uma pessoa tenha poder e outra não, mas, possivelmente, como algo a que ambas tenham acesso de comum acordo e com regras sustentáveis.

Um contexto mais amplo sobre dados e poder nos confronta quando analisamos como abordar a doação de dados. Diariamente vivenciamos os prejuízos – para indivíduos, comunidades, para a governança democrática e para a saúde do planeta – decorrentes da concentração de poder e riqueza resultante de políticas empresariais envolvendo dados digitais. Danos coletivos – aquecimento mundial, pandemias virais, crescente autoritarismo, declínio de verdades compartilhadas – podem abrir nossos olhos e ampliar nossa imaginação de formas que nos inspirem a buscar abordagens alternativas para tratar de governança, conhecimento, finanças e poder. A necessidade de definir e impor regras para doação de dados cria uma rara oportunidade para imaginar e implementar novos sistemas em uma escala mundial. Nós podemos aplicar a sabedoria de algumas tradições do conhecimento indígena centradas em relacionamentos e reciprocidade, dois valores que podem ser aplicados mais facilmente a dados em rede do que a modelos de propriedade privada.8 Criar sistemas para facilitar a doação de dados faz parte de esforços no sentido do desenvolvimento de processos de governança de dados visando ao interesse público de forma mais ampla – especialmente na medida em que tais sistemas privilegiem pessoas e comunidades, e não empresas privadas.9 Nós podemos unir esforços para corrigir danos passados e buscar concretizar futuros equânimes com desafios, envolvendo decidir se, quando e como viabilizar, permitir, incentivar ou evitar doações de dados, e quando não fazê-lo, bem como decidir, em primeiro lugar, quais dados doar. Pessoas que têm sofrido os maiores danos resultantes de nossas atuais práticas de poder econômico, político e social deveriam ter um papel de liderança na concepção e modelagem de sistemas para doação de dados,  pois as pessoas mais afetadas negativamente são as que têm maior clareza sobre soluções alternativas.

A doação de dados envolve inúmeras questões morais e consequências intergeracionais. Isso levanta imediatamente problemas de equidade no longo prazo. Nós podemos observar esse dilema em debates sobre tecnologias que vêm sendo construídas sobre dados treinados para discriminar racialmente. Aperfeiçoar a capacidade de reconhecimento facial dos sistemas visando identificar igualitariamente todas as pessoas poderia “solucionar” o aspecto de curto prazo da discriminação racial desses sistemas, mas isso também incorporará o racismo mais profundamente nos aparelhos de segurança de governos e empresas. Se aspiramos a criar sistemas de doação de dados – especialmente se contemplamos o uso dessas doações como passos destinados a remediar danos compartilhados –, o primeiro passo deve ser partir do princípio de que sistemas já opressivos não têm a resposta. Estruturas para facilitar doações de dados consolidariam relacionamentos de extração abusiva já poderosos e perigosos, a menos que sejam intencionalmente concebidas de modo a combater as dinâmicas raciais, de gênero e discriminação a elas incorporadas e que definem nossas atuais relações econômicas envolvendo dados.

Há outras razões para focar pessoas que sofreram prejuízos em decorrência das relações econômicas envolvendo dados num planejamento para esse tipo de doação. Temos conhecimento de alguns usos de dados digitalizados que causam danos. Esses usos devem ser proibidos, como está começando a ocorrer com o reconhecimento facial e com a coleta e uso de dados para policiamento preditivo. Entidades filantrópicas e a sociedade assumem que as pessoas têm opções de escolha, que a participação delas nessas atividades é algo que elas controlam. Precisamos trazer essa mentalidade de escolha cuidadosa – em vez de extração forçada – à consideração de se e como doamos nossos dados. Precisaremos considerar linhas de tempo e usos para as doações, bem como graus de controles e escolhas atribuídas a diferentes ações. Felizmente, muitas dessas questões já foram respondidas no âmbito de sistemas de filantropia financeira. Quando se trata de doar dinheiro a organizações sem fins lucrativos ou criar entidades filantrópicas, os doadores decidem quando, o que e quanto doar; por quais razões e durante quanto tempo; e se eles querem se identificar ou não. Eles também dispõem de numerosas opções às quais podem recorrer quando ficam insatisfeitos com os resultados. É um tanto surpreendente que essas regras sobre doações de dinheiro (desenvolvidas predominantemente para beneficiar os ricos) nos ofereçam um balizamento para pensar doações de dados (que poderiam beneficiar todos).

Precisamos reimaginar muitos aspectos sobre nossos atuais sistemas de filantropia e potenciais reformas que podem afetar muito mais do que códigos tributários. Os interessados em estabelecer uma sociedade mais justa, como também os interessados em usar a filantropia para esse fim, podem valer-se da oportunidade criada pelas doações de dados para privilegiar radicalmente diferentes dinâmicas filantrópicas. Como indivíduos, somos todos ricos no que diz respeito a dados digitalizados – nós os geramos em cada interação com nossos celulares ou tablets e quando dirigimos nossos carros, lemos nossos e-books e nos movimentamos nas cidades. Porém, como sociedade, nos faltam estruturas para balizar se, quando e como as doações de dados devem operar. Precisamos criar novos requisitos, responsabilidades e leis organizacionais para orientar os processos de doação de dados. Na medida em que essas questões se enraizarem numa imaginação moldada pela filantropia financeira contemporânea, nós nos limitaremos. Podemos expandir nossos horizontes de opções considerando as tradições de cuidado comunitário, compreensão relacional sobre informação e conhecimento e líderes e comunidades mais familiarizados com ambas.

Há muitas coisas que desconhecemos envolvendo a doação de dados, mas estamos familiarizados com os danos das relações de obtenção de dados.  Deveríamos assumir que esses danos persistirão – ou, no melhor dos casos, assumirão outras formas – se nos basearmos em sistemas e estruturas que criaram nosso ecossistema de dados atual, para moldar um novo ecossistema. Portanto o primeiro passo para imaginar sistemas para doações de dados é colocar pessoas diferentes no comando. Movimentos sociais, história, teoria e até mesmo as melhores práticas de filantropia financeira nos ensinam que as pessoas mais próximas dos problemas são aquelas para as quais é mais crucial encontrar soluções. São as pessoas mais prejudicadas pelos atuais relacionamentos econômicos envolvendo dados que deveriam nos liderar para conseguirmos criar novos sistemas. Essa iniciativa deveria ser centrada em pessoas negras, comunidades indígenas, minorias raciais, mulheres, a comunidade LGBT+, pessoas com deficiências, refugiados, pessoas de baixa renda e também pessoas de uma diversidade de tradições religiosas.

Imagine uma iniciativa realmente mundial para o desenvolvimento de novas práticas para uso de dados digitais visando enfrentar problemas sociais que compartilhamos. Plena compreensão envolvendo consentimento, atuação, controle, caráter relacional e representação criados por acadêmicos por meio de disciplinas tão diversas quanto comunicações, estudos afro-americanos, estudos indígenas e engenharia assumiriam aplicações práticas.10 Táticas protetivas desenvolvidas por organizadores que combatem discriminação de castas, abusos contra mão de obra, privação de direitos ou injustiças ambientais poderiam servir como base para a formulação de protocolos de segurança. Estruturas organizacionais como coletivos abertos, associações de ajuda mútua, cooperativas e instituições cívicas produziriam uma nova ressonância. Responsabilização poderia assumir novos sentidos, à medida que linhas de relacionamentos se desenvolvam horizontalmente e através do tempo, em vez de simplesmente seguir um modelo hierárquico. E o poder de práticas pluralistas – para diferentes pessoas, diferentes dados, diferentes comunidades e diferentes propósitos públicos – ganharia reconhecimento como uma forma de proteger pessoas e viabilizar opções.11

 

Escrever novas regras para doação de dados

 

Em nossa era de dados digitais universalizados, definir como deveríamos decidir doá-los deveria interessar a todos nós. Doar dados exigirá que desenvolvamos novas regras para filantropia. Apenas um século atrás, durante a reação da Era Progressista aos excessos da Era Dourada, os Estados Unidos criaram novas regras para a filantropia e estabeleceram sua fundação moderna. Nós enfrentamos um desafio similar nos dias atuais, com pessoas de toda parte procurando maneiras de contribuir com dados digitais de forma segura e voluntária para finalidades públicas.

A estrutura e prática do que alguns agora denominam filantropia de dados distorce algumas das mais básicas premissas de uma doação. Na visão atual das Nações Unidas sobre filantropia de dados, grandes companhias controlam tudo: a finalidade para a qual os dados serão usados, o que é incluído no conjunto de dados, quem tem acesso a eles e quais iniciativas ou conclusões ficarão disponíveis a parceiros e ao público. Essa abordagem não dá às pessoas nenhuma opção quanto aos objetivos, nenhum recurso sobre a doação de dados e nenhuma ideia ou mesmo uma sensação de satisfação por ter ajudado de alguma forma. A mesma dinâmica coercitiva que as companhias exercem sobre as pessoas que usam seus serviços se estende à filantropia de dados. O fato, então, de que as companhias reivindiquem crédito por sua generosidade apenas agrava as coisas.

Um importante passo para nos distanciarmos desse modelo é transferir o poder de decisão das companhias para as pessoas e comunidades, tanto doadores como usuários de dados. Essa postura cria, para a sociedade, uma oportunidade de liderança na era digital, estabelecendo práticas seguras e igualitárias que podem trazer uma mudança real para as comunidades. Descobrir onde estão os limites, quais dados não deveriam ser doáveis e quais danos previsíveis devemos prevenir é um trabalho que está sendo feito por pessoas que usam o iNaturalist, pelos participantes na Sage Bionetworks e por aqueles no comando dos Caçadores de Vacinas. Outras organizações sem fins lucrativos, pessoas e grupos comunitários podem dar um passo à frente com suas próprias contribuições para definir a doação de dados  – não apenas porque as regras para isso remodelarão suas próprias áreas, mas porque fazer isso pode abrir nossos olhos para práticas mais igualitárias e filantrópicas em geral. A Fundação Mozzila introduziu recentemente uma nova ferramenta para websites chamada Rally, que proporciona às pessoas uma maneira de fazer doações para estudos baseados em pesquisa que as interessem, diretamente pelo navegador Firefox. A escolha e o controle por parte dos doadores são os recursos centrais.

Assim como em toda ação filantrópica, a maneira como modelamos a filantropia de dados dirá muito sobre a sociedade que queremos como um todo. Nos Estados Unidos, por exemplo, os privilégios concedidos a grandes fundações privadas refletem a codificação de preferências para ações privadas. Intencionalmente ou não, esses privilégios permitem àqueles que deixariam os cofres públicos à míngua minimizar as responsabilidades tributárias dos mais ricos para materializar a preferência por escolhas privadas, em vez de ações públicas democráticas. Se permitimos que empresas comerciais ditem as regras sobre filantropia de dados, deveríamos prever a mesma dinâmica. Deixar para as companhias a decisão sobre o compartilhamento de dados para fins públicos solidificará ainda mais os privilégios das empresas em detrimento da necessidade pública. Adicionalmente, isso enfraquecerá os nascentes esforços de sociedades em todo o mundo de impor controles públicos necessários sobre companhias que tenham causado danos ao discurso público, à participação democrática e à própria vida de indivíduos e comunidades. Alternativamente, contar com a sociedade para moldar os limites da filantropia de dados, especialmente por parte de associações de pessoas ameaçadas por interesses comerciais centrados na extração de dados, revela um comprometimento para com a liberdade e as ações de pessoas e comunidades.

As possibilidades para usar dados digitalizados em benefício público estão repletas de questões políticas e morais, problemas de equanimidade em curto e longo prazos e oportunidades de solidificar ainda mais relações extrativas já poderosas e perigosas. Elas também oferecem a chance de imaginar dois futuros bem distintos, com potencial positivo para abordagens mais igualitárias no tratamento de dados digitais em todas as esferas da vida. Pessoas e comunidades interessadas em sistemas econômicos que privilegiem o valor da saúde coletiva em detrimento de avanços individualistas detêm a experiência no uso de dados digitais para melhoramento humano. Para que qualquer um de nós seja capaz de decidir como nossos dados digitais podem ser usados, todos nós devemos reconhecer a importância dessa oportunidade. Um passo em direção a práticas envolvendo dados que respeitem as pessoas como pessoas é que cada um de nós perceba que temos, todos nós, interesses envolvidos na participação da definição sobre como doamos dados.

 

Notas

 

1 Discord é um aplicativo que permite a comunicação entre pessoas sobre problemas específicos usando servidores dedicados. As pessoas podem se comunicar por meio do aplicativo tanto por voz quanto por mensagens de texto. Sua intenção era originalmente ajudar gamers na internet a se comunicarem; hoje, ele é amplamente usado para hospedar discussões de variados tipos, moderadas e organizadas por comunidades. Os “lugares” onde são hospedadas essas discussões e os dados em que elas se baseiam denominam-se servidores do Discord.

2 Courtney Shea, “‘At This Point, We’ve Probably Helped Thousands of People Book Shots’: Q&A with Joshua Kalpin of Vaccine Hunters Canada, the Viral Website for Vaccine Appointment Intel” (“Neste momento, nós provavelmente já ajudamos milhares de pessoas a marcar horários de vacinação”). Entrevista com Joshua Kalpin, do Caçadores de Vacinas Canadá, o website viral para informações de vacinação, Toronto Life, 15 de abril de 2021.

3 Anoush Rima Tatevossian, “Data Philanthropy: Public & Private Sector Data Sharing for Global Resilience” (“Filantropia de dados: compartilhamento de dados entre os setores público & privado para resiliência global”). Global Pulse das Nações Unidas, 16 de setembro de 2011.

4 Davey Alba, (Facebook enviou dados errôneos para  desinformação de Pesquisadores). The New York Times, 10 de setembro de 2021.

5 Shea, “A esse ponto”.

6 Para uma lista crescente de exemplos, ver o anexo ao artigo “Recognising and Enabling the Collective Dimension of the GDPR and the Right of Access, de René Mahieu e Jef Ausloos (“Reconhecendo e colocando em prática a dimensão coletiva do GDPR e os direitos de acesso”). LawArXiv, 2 de julho de 2020.

7 Ver também Yarden Katz, Artificial Whiteness: Politics and Ideology of Artificial Intelligence (Branqueza artificial: política e ideologia da inteligência artificial), Nova York: Columbia University Press, 2020; Jesse Daniels, “The Manifest Destiny of Computing” (O destino manifesto da computação), Public Books, 27 de julho de 2021; e Harriet A. Washington, Medical Apartheid: The Dark History of Medical Experimentation on Black Americans from Colonial Times to the Present (Apartheid médico: a sombria história dos experimentos médicos em americanos negros dos tempos coloniais aos dias atuais), Nova York: Doubleday, 2007.

8 Aaron Perzanowskl e Jason Schultz, “The End of Ownership: Personal Property in the Digital Economy” (O fim da propriedade na economia digital), Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2016.

9 Jathan Sadowski, Salomé Viljoen e Meredith Whitaker, Everyone Should Decide How Their Digital Data Are Used — not Just Tech Companies (Todos deveriam decidir como seus dados são usados – Não apenas as companhias de tecnologia), Nature, 1º de julho de 2021.

10 Por exemplo, ver o trabalho de Ruha Benjamin, Safiya Noble, Marissa Duarte, Joy Boulamwini, Deb Raji, Sabelo Mlhambi e Jasmine McNealy. Esse programa de estudos do Center for Critical Race and Digital Studies, NYU (Centro para Estudos Raciais e Digitais Críticos são provedores de recursos adicionais: CriticalRaceDigitalStudies.com/syllabus.

11 Ver Matt Prewitt, “A View of the Future of Our Data” (Uma visão do futuro de nossos dados), Noe ̄ma, 23 de fevereiro de 2021.

 

AS AUTORAS

 

Lucy Bernholz (@p2173) é pesquisadora sênior e diretora do Digital Civil Society Lab, no Stanford Center on Philanthropy and Civil Society. Seu livro mais recente, How We Give Now: A Philanthropic Guide for the Rest of Us (Como doamos hoje: um guia filantrópico para o resto de nós), discute a doação de dados de uma forma mais aprofundada.

Brigitte Pawliw-Fry (@brigittepfry) trabalha como pesquisadora no Digital Civil Society Lab at the Stanford Center on Philanthropy and Civil Society  (Laboratório da Sociedade Digital do Centro de Filantropia e Sociedade Civil de Stanford e comanda o podcast Queer Devotions (Devoções LGBT+).



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