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A filantropia negra e o enfrentamento do racismo no Brasil

Viabilizar projetos sociais voltados para negros e negras nas mais diversas áreas é inovar na ampliação do capital social em que essas entidades têm historicamente aportado para a sua sobrevivência no país.

Por Isabel Clavelin

Angela Davis fez o alerta mundial: “Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. Ou seja, é preciso agir obstinadamente para acabar com o racismo por meio de ações concretas. Nesse sentido, mobilizar recursos técnicos e financeiros para a filantropia negra, aquela cujas instituições filantrópicas são fundadas e lideradas por pessoas negras, é uma das ações estratégicas a serem incorporadas por investimentos sociais privados.

Em uma agenda filantrópica, isso implica impulsioná-la a partir do lugar de cada ente comprometido ou comprometida com o fim do racismo, não somente pela visibilidade da agenda, mas com doações e captação de recursos destinados à filantropia negra.

O Mês da Filantropia Negra, celebrado anualmente em agosto, traz a oportunidade de reavivar a pauta sobre enfrentamento do racismo e defesa dos direitos da população negra pela renovação de compromissos que sejam efetivos para além dos posicionamentos públicos antirracistas. À medida que o debate sobre filantropia negra ressoa no Brasil, a diáspora negra cria um círculo virtuoso de troca de conhecimentos e estratégias para o investimento em instituições negras filantrópicas a partir de modelos existentes e consolidados não somente nos Estados Unidos e no Brasil, mas também no continente africano – a exemplo dos fundos geridos por mulheres africanas em que raça e gênero estão atrelados em uma agenda de filantropia decolonial. Esse crescimento possibilita o agendamento político de intercâmbio de iniciativas bem-sucedidas e desafios alinhados à diáspora negra para a superação de lacunas e obstáculos ao desenvolvimento socioeconômico da população negra diante do legado da escravização africana no mundo.

No Brasil, país estruturado pela inequidade racial, os engajamentos filantrópicos antirracistas exigem protagonismo de negras e negros da concepção à execução dos projetos; assertividade de resposta de ações diante da complexidade do racismo; escala para maior alcance de público negro atendido e sustentabilidade dos projetos, tendo em vista a produção de resultados mais substantivos em ciclos de médio e longo prazo. Esta é a dinâmica mais efetiva no enfrentamento do racismo contra a população negra.

No âmbito da filantropia negra, agir de forma decolonial significa estabelecer novos paradigmas de confiança e democratização dos recursos; que estes sejam da mesma escala aos destinados aos grandes “players” e que sejam destinados a projetos sem intervenção da fonte financiadora, com mais autonomia para que a sociedade civil os aplique de acordo com as próprias prioridades institucionais, em consonância com as demandas do público beneficiado e do território. Urge, assim, estabelecer tais diretrizes antirracistas no ecossistema filantrópico no Brasil.

Viabilizar projetos sociais voltados para jovens, mulheres e homens negras e negros, quilombolas e comunidades de terreiro em áreas como trabalho e renda, educação, saúde, tecnologia, acesso à justiça, entre outros, é inovar na ampliação do capital social que entidades negras têm historicamente aportado para a sobrevivência dessa população no país.

Historicamente, negras e negros articularam a filantropia negra para enfrentar o sistema escravocrata, o qual viabilizou ciclos econômicos, produção de riquezas, povoamento, enfim, o Brasil em sua pujança, a partir do sequestro, e trabalho escravizado de milhões de africanas e africanos e sua descendência por quase quatro séculos. O legado da escravidão para a população negra, passados 135 anos da abolição, se mantém pelo racismo e pela exclusão socioeconômica de 56% da população brasileira. Essa exclusão se caracteriza pela baixa representatividade de postos de tomada de decisão executiva nas empresas, menor remuneração e reduzidas oportunidades de ascensão profissional no mercado de trabalho formal, concentração na economia informal, desvantagens decorrentes do racismo no empreendedorismo e acentuada presença em novos fenômenos socioeconômicos já reportados por estudos estatísticos oficiais – a exemplo da “geração nem-nem” e do contingente de desalentados. O racismo estrutural define precariedade de condições de vida e desigualdades que separam exponencialmente gerações de negras e negros de condições básicas de cidadania, direitos, sobrevivência econômica, justiça social e tomada de decisões políticas em pé de igualdade com brancas e brancos.

O ESG racial, enquanto pauta, pode ser um catalisador de mais comprometimento do setor privado no Brasil acerca da articulação do eixo racial com meio ambiente, sustentabilidade e governança. Além da ação no ecossistema corporativo por meio da diversidade racial de profissionais, por meio de ações afirmativas, influência nos setores de atuação e colaboração para a mudança de realidades comunitárias e da sociedade em geral, a agenda ESG Racial tem potencial de incrementar recursos econômicos para a filantropia negra. Estas são algumas das defesas do Pacto de Promoção da Equidade Racial, que se dedica a aferir o desequilíbrio racial nas empresas brasileiras e a colaborar com a implementação de um protocolo de mudanças para eliminação do racismo, incluindo o apoio financeiro à filantropia negra e projetos sociais contra o racismo.

A BrazilFoundation é uma das apoiadoras institucionais do Pacto de Promoção da Equidade Racial, desde outubro de 2022, colaborando com o engajamento da rede de doadores e doadoras com adesão ao pacto e a destinação de recursos para a filantropia negra, além do aporte de conhecimento do pacto ao Fundo Empreendedorismo Negro.

Como já nos alertou Sueli Carneiro, o racismo estabelece à população negra o “signo da morte”, exclusão (“não-ser do ser”),  enquanto a população branca é inscrita no “signo da vida”, da vitalidade, das vantagens, inclusões (“o ser” branca ou branco é viabilizado pelo “não-ser do ser”, isto é, negras e negros na dinâmica da expropriação econômica, política, social, cultural, existencial). Na trajetória da BrazilFoundation, isso se revela de modo mais contundente no primeiro ciclo do Fundo Empreendedorismo Negro, em que nove projetos sociais foram selecionados para aprimorar ferramentas de lideranças negras no empreendedorismo com foco na autonomia financeira sustentável de seus negócio e no enfrentamento ao racismo sistêmico no país. O investimento soma R$ 2,5 milhões para o período 2023-2024, a partir de recursos arrecadados em eventos filantrópicos.

O Fundo Empreendedorismo Negro se propõe a colaborar com o desenvolvimento e fortalecimento de organizações lideradas por pessoas negras para acelerar negócios, oferecendo treinamento técnico e empresarial; suporte técnico para melhorar a gestão, controles financeiros e treinamento de marketing de aceleradoras de empreendedorismo negro; investimento filantrópico em instituições financeiras negras que semeiam negócios de empreendedores negros; e a defender políticas públicas que beneficiem empreendedores negros e empreendedoras negras. Ao estruturar o Fundo Empreendedorismo Negro, a BrazilFoundation articula equidade racial e filantropia estratégica por meio dos princípios do antirracismo e se soma à defesa e à busca de engajamento com a filantropia negra.

No Mês da Filantropia Negra, a BrazilFoundation reforça esse engajamento pelo fim do racismo e seu apoio à sensibilização do setor filantrópico para fomento à filantropia negra e à estruturação de fundos negros, geridos por pessoas negras. Diante das mudanças no setor e de novas práticas econômico-financeiras em investimentos sociais privados e inovações tecnológicas e digitais para arrecadação de recursos de pessoas físicas e jurídicas a projetos sociais, aportar doações à filantropia negra é urgente. É o que vai garantir a sustentabilidade dos projetos já existentes, evitar distorções no campo filantrópico no acesso e distribuição de recursos para projetos negros e assegurar que negras e negros possam seguir o fluxo de expansão específica e altamente qualificada no sistema de filantropia no Brasil e no mundo.

A AUTORA

Isabel Clavelin é gerente do Fundo Empreendedorismo Negro da BrazilFoundation.



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