Sementes que guardam o amanhã
O fim do desmatamento e a promoção da restauração florestal se apresentam como soluções centrais, mas estas não podem ser entendidas de forma isolada e desconectada de outras agendas
Por Rodrigo Mauro Freire
O Brasil se prepara para receber a trigésima Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP 30, em novembro de 2025, em Belém do Pará, na Amazônia brasileira. Neste momento, o alerta que os principais cientistas climáticos do mundo têm feito de forma cada vez mais intensa fica ainda mais contundente: a janela de tempo para a humanidade redirecionar sua forma de consumir e desenvolver está se fechando. Isso porque, em termos planetários, seis dos nove limites que mantêm a estabilidade e a resiliência terrestre já foram ultrapassados, entre os quais as mudanças climáticas, a integridade da biosfera (perda da biodiversidade e a extinção de espécies) e a mudança de uso do solo (desmatamento).
O maior risco à segurança e à permanência da vida para a humanidade está na mudança do clima e na perda da biodiversidade. Segundo os cientistas, a perda da biodiversidade atingiu proporções tão graves que estaríamos vivenciando a sexta extinção em massa da vida na Terra. Desta vez, a causa não é um meteoro gigante ou a erupção de grandes vulcões, como ocorreu milhões de anos atrás e matou os dinossauros. Agora temos uma única espécie responsável pela ameaça de todas as outras – o ser humano, que tem degradado praticamente todos os ecossistemas e poluído os solos, as águas e o ar da nossa casa comum por causa da sua miopia desenvolvimentista e ganância de curto prazo. A COP 16 da Biodiversidade, que acontece na Colômbia no fim de outubro de 2024, tem como objetivo planejar a execução das estratégias do Marco Legal de Biodiversidade, definido em 2022.
A maior floresta tropical do mundo é um tema essencial quando se pensa nos fatores de estabilidade do planeta. Além de deter cerca de 20% da biodiversidade terrestre e a mesma proporção de volume de água doce da Terra, a Amazônia é um dos principais biomas que garantem a estabilidade climática da nossa biosfera. Na mesma ordem de grandeza de seus ativos e serviços ecossistêmicos, estão os problemas que a afligem, como as maiores taxas de desmatamento e de incêndios florestais do mundo e a grande exploração ilegal de madeira e de minérios, como o ouro. Nas últimas cinco décadas, cerca de 20% da Amazônia já foram derrubados (mais de 70 milhões de hectares segundo o MapBiomas), em decorrência de políticas públicas desconectadas das necessidades das populações locais, baseadas na ocupação desordenada do território e em modelos de exploração dos recursos naturais, como a pecuária bovina de corte de baixa tecnologia, diretamente associada a mais 80% do desmatamento no território.
Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), se o desmatamento atingir cerca de 25% do bioma, a Amazônia entrará em um ponto de não retorno ecológico e climático. A partir desse ponto, conhecido como “tipping point”, haverá um processo de transição da estrutura florestal para um contexto progressivo de um ecossistema não florestal, assemelhado ao cerrado. Esse cenário, além de irreversível, teria consequências devastadoras para o equilíbrio climático global, agravando as crises de biodiversidade e colocando em risco as populações locais que dependem diretamente dos recursos naturais.
Nesse contexto, o fim do desmatamento e a promoção da restauração florestal se apresentam como soluções centrais e necessárias para reverter esses riscos da maior floresta tropical do mundo. No entanto, essas soluções não podem ser entendidas de forma isolada e desconectada de outras agendas tão importantes como o desenvolvimento social e econômico justo, a geração de emprego e renda para as comunidades locais, a promoção da qualidade de vida e a agregação de valor via as cadeias produtivas. Segundo análises do governo federal brasileiro, apresentadas no texto em revisão do Plano Nacional de Recomposição da Vegetação Nativa (Planaveg 2.0), a maior parte dos passivos ambientais a serem restaurados no Brasil está na Amazônia (algo em torno de 14 milhões de hectares dos 24 milhões necessários de serem recompostos).
Promoção do bem-estar social
A restauração da paisagem florestal desempenha um papel crucial na recuperação dos serviços ecossistêmicos da maior floresta tropical do planeta e pode afastá-la do ponto de não retorno climático, principalmente pela perspectiva de viabilizar o sequestro e estoque de 16 gigatoneladas de carbono da atmosfera. Além disso, as soluções baseadas na restauração florestal também podem alavancar cadeias produtivas sustentáveis, como os sistemas agroflorestais, silvicultura de espécies nativas, a agricultura regenerativa, a pecuária de baixo carbono e o manejo de produtos florestais madeireiros e não madeireiros que aliam conservação ambiental com a geração de riquezas. Essas atividades de restauração têm o potencial de gerar 2,5 milhões de empregos até 2030 no Brasil, sendo que uma parcela significativa disso deve ocorrer na Amazônia.
A cadeia da restauração amazônica precisará se integrar fortemente à cadeia da pecuária extensiva de gado de corte, ofertando soluções de baixo custo e modelos de retorno financeiro positivos para o setor, que possui a grande maior parte dos passivos ambientais a serem restaurados, quando se aplica o Código Florestal (lei de proteção da vegetação nativa brasileira).
No entanto, quando se olha para o viés social e de equidade, a agenda da restauração amazônica precisa gerar soluções direcionadas ao bem-estar social dos povos indígenas e comunidades tradicionais que tiveram seus territórios e recursos naturais degradados.
Os desafios para o engajamento dos atores que possuem passivos ambientais e áreas degradadas a serem recompostos (produtores rurais, agricultores familiares e comunidades tradicionais) são muitos e bastante significativos. Isso porque a adequação ambiental de imóveis rurais e a restauração ainda são percebidos muitas vezes apenas como obrigação legal, algo custoso e que não gera benefícios econômicos e sociais tão concretos. Essas são percepções que precisam ser mudadas, via estratégias de sensibilização social e demonstração prática em campo que a restauração pode ser de baixo custo e/ou permitir retorno financeiro bastante interessante via arranjos produtivos, como comercialização de sementes nativas, mudas, produtos agroflorestais madeireiros e não madeireiros, créditos de carbono, pagamentos por serviços ambientais, entre outros.
Além disso, ainda vivemos no Brasil uma ideologização e polarização política, relacionada ao meio ambiente e desenvolvimento sustentável, principalmente junto à parte do setor agropecuário. O Congresso, em destaque, tem sido palco de propostas de leis e normas focadas no ataque e desconstrução das políticas ambientais e de sustentabilidade. Se esse contexto não mudar, será muito difícil criar condições para que o desenvolvimento coerente que facilite a concretização da cadeia da restauração na escala e tempo que precisamos.
A cadeia produtiva da restauração ainda está em fase inicial de estruturação na região e enfrenta diversas barreiras e desafios para o seu desenvolvimento, como, por exemplo, a) elevado grau de desconhecimento dos produtores rurais e comunidades locais a respeito dos benefícios dos serviços ecossistêmicos providos pela floresta e a importância de recomposição de paisagens degradadas; b) o não cumprimento efetivo de políticas públicas estruturantes como os Programas de Regularização Ambiental (PRAs) de responsabilidade dos estados e que orientam os produtores rurais na adequação ambiental de seus imóveis rurais; c) recursos de investimentos ainda distantes da necessidade real para a restauração de qualidade e em larga escala; e d) poucas iniciativas maduras e estruturadas em seus modelos de negócio, já que a cadeia da restauração ainda está em fase inicial de operação e de reconhecimento da sua importância.
Redes e coletivos de restauração
As redes e coletivos da restauração – como a Aliança pela Restauração na Amazônia, a Sociedade Brasileira de Restauração Ecológica (Sobre), o Pacto da Mata Atlântica, entre outras – têm se destacado nos últimos 15 anos no Brasil, mostrando uma capacidade de altíssimo valor e relevância, principalmente em relação ao engajamento dos diversos atores e tomadores de decisões; facilitação na integração de trabalho entre diferentes setores (público, privado, instituições financeiras, academia e sociedade civil organizada); recomendação estratégica de políticas públicas; orientação de linhas de pesquisas e desenvolvimento, assim como direcionamento de mecanismos de implementação via programas e projetos de restauração.
A Aliança pela Restauração na Amazônia, coletivo de múltiplos atores, criada em 2017, conta atualmente com mais de 130 membros e tem o objetivo de promover a recomposição florestal em larga escala e de qualidade no bioma brasileiro. Em sua visão estratégica construída em 2021, destaca que a restauração precisa estar intimamente vinculada à conservação da floresta em pé, assim como conectada à promoção do desenvolvimento local e melhoria dos índices sociais e econômicos, por meio de cadeias produtivas florestais e seus serviços ecossistêmicos vinculados. A Aliança reconhece que a temática de restauração ainda é recente na Amazônia e muito ainda se tem o que fazer para popularizar essa solução e desenvolver suas cadeias produtivas. Nesse sentido, esse coletivo tem produzido e divulgado muitas análises e recomendações estratégicas para tomadores de decisão dos setores público, privado, instituições de fomento e pesquisa, assim como junto a agentes financeiros.
Para os próximos anos, a Aliança deseja avançar em importantes ações estruturantes para a consolidação de um ecossistema de atores da restauração na Amazônia brasileira. Dentre os principais destaques, vale mencionar: o programa de treinamento em capacitação em restauração direcionados a centenas de produtores rurais, povos indígenas, comunidades tradicionais, técnicos e gestores públicos; a publicação de lições aprendidas do plano de restauração do estado do Pará, em parceria com a Secretaria de Meio Ambiente desse estado, com objetivo de estimular outros atores públicos no desenvolvimento de seus planos; a publicação de casos e negócios de sucesso da restauração, com a intenção de dar visibilidade ao empreendedorismo de impacto, oportunidades de captação de investimentos e acesso aos
mercados de interesse; e, por fim, o coletivo também tem como meta facilitar a discussão e promover orientações estratégicas em como o Brasil pode desenvolver melhor suas cadeias florestais de espécies amazônicas, via silvicultura de espécies nativas e arranjos agroflorestais.
A Aliança se propõe, cada vez mais, a ser uma instância de integração de soluções inovadoras multiatores e de orientação estratégica para importantes iniciativas, programas e projetos direcionados à restauração florestal na Amazônia brasileira.
A restauração florestal é um caminho necessário de se concretizar para mitigar os impactos das mudanças climáticas, reduzir a crise de perda de biodiversidade e promover o desenvolvimento sustentável de base florestal na Amazônia. No entanto, a implementação em larga escala dessa estratégia requer a superação de desafios como o investimento financeiro apropriado, a implementação efetiva das políticas públicas existentes, a capacitação técnica de profissionais e a construção de um ecossistema de empreendedorismo que auxilie no desenvolvimento de novos negócios orientado à bioeconomia da restauração. As Redes e Coletivos como a Aliança pela Restauração na Amazônia desempenham um papel central na promoção dessas agendas, articulando esforços coletivos e orientando a construção de um ecossistema de atores em prol da restauração com inclusão e justiça social.
A restauração não é apenas uma solução à crise ambiental: é parte integrante e fundamental do desenvolvimento econômico e social na Amazônia brasileira, garantindo o bem-estar junto às populações locais, geração emprego, renda e o devido protagonismo das populações amazônidas em suas decisões políticas, tecnológicas e culturais.
NOTAS
1 Richardson, J., Steffen W., Lucht, W., Bendtsen, J., Cornell, S.E., et al. 2023. Earth beyond six of nine Planetary Boundaries. Science Advances, 9, 37.
2 https://brasil.mapbiomas.org/wp-content/uploads/sites/4/2024/09/MBIInfograficos-Amazonia-9.0-BR-scaled.jpg
3 Ihttps://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/sirene/publicacoes/relatorios-do-ipcc/arquivos/pdf/srcl-port-web.pdf
4 Carbono e o Destino da Amazõnia – Amazõnia 2030 e Climate Policy Initiative 2023 (https://amazonia2030.org.br/carbono-e-o-destino-da-amazonia/)
5 https://www.pactomataatlantica.org.br/wp-content/uploads/2022/06/People-and-Nature-2022-Brancalion-Ecosystem-restoration-job-creation-potential-in-Brazil.pdf