Saberes confluentes em novas visões de mundo
As conexões entre conhecimentos ancestrais, tradicionais e acadêmicos é cada vez mais essencial para promover soluções que acelerem a transição socioeconômica na Amazônia; entenda o trabalho da iniciativa Saberes Sociobio no caminho por uma ciência equitativa e inovadora
Por André Baniwa, Floriana Breyer, Luciana Villa Nova, Luiz Ricardo Marinello e Simone Athayde
A s sociobioeconomias amazônicas representam uma oportunidade única para os grandes desafios de conservação, desenvolvimento e bem-estar social e econômico de povos indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais, e de toda a população amazônica. No momento em que as mudanças climáticas estão afetando todos os seres no planeta, alterando modos de vida, em especial de grupos mais vulneráveis, é muito importante “buscar soluções inovadoras, uma vez que não existe hoje uma economia em escala global, ou mesmo amazônica ou nacional, que valorize os produtos da floresta”, como afirma o climatologista Carlos Nobre.¹
O impacto econômico direto de produtos, serviços e processos de base biológica é estimado em cerca de US 4 trilhões por ano globalmente nos próximos dez anos.¹ De que forma, porém, a Amazônia e suas populações locais estarão inseridas nesses mercados?
Modelos de uma economia predatória, perpetuados ao longo de muitas décadas de ocupação do território,³ são um grande desafio à promoção de uma economia baseada no potencial da riqueza da biodiversidade e dos saberes locais amazônicos. Algumas estratégias de bioeconomia baseadas na biotecnologia e na produção de bioinsumos vêm sendo desenvolvidas por meio de lógicas e práticas convencionais de mercado, comprometendo os direitos e o bem-estar de povos indígenas, comunidades afrodescendentes e outras populações locais.4 Diante desse cenário, é fundamental adotar modelos de bioeconomia ecológica, assim como um olhar mais sistêmico para a bioeconomia. Essas lentes revelariam processos com maior integração de parâmetros de produção sustentável, como a otimização de recursos e energia, a promoção de produtos e serviços gerados por comunidades locais, práticas agrícolas sem monoculturas ou degradação do solo e a garantia dos serviços ecossistêmicos, como estoques de carbono, fluxos de água etc., essenciais para a manutenção da vida de maneira geral.5/6 Nestes modelos, formas inovadoras de produção são identificadas para conciliar uso do solo e conservação da biodiversidade.
Sabemos que modos de vida locais, dinâmicas rurais-urbanas e identidades socioculturais resultam de intrincadas conexões e fluxos socioecológicos que geram oportunidades de valorização e participação social de povos e comunidades tradicionais, produtores familiares e empreendedores rurais e agroflorestais.7/8/9 A “economia da sociobiodiversidade” ou a sociobioeconomia é uma proposta de potencializar as vertentes econômicas desses povos, com base em sua relação com a natureza, respeito e interação sociocultural com os ecossistemas e a biodiversidade, valorizando as suas visões de mundo, diversidade linguística, organização social e estratégias próprias de produção e reprodução.10
A profusão da chamada nova bioeconomia corre o risco de se tornar uma forma de “green shing” para práticas de mercado predatórias. Um exemplo disso pode ser observado nos mercados de carbono, onde projetos de comercialização de créditos muitas vezes não consideram os direitos das comunidades locais de modo adequado. Josiane dos Santos Carmo, quilombola da região de Oriximiná, no Pará, considera preocupante a falta de informação sobre esse mercado nos territórios. Ela destaca a necessidade urgente de encontrar formas de comunicação e linguagem adequada para informar as comunidades e chama a atenção para o fato de que essa é uma oportunidade valiosa para a academia contribuir com os territórios. Trata-se, afinal, de projetos que podem resultar em deslocamento forçado, perda de acesso a recursos naturais e outras violações de direitos humanos.11 Por tudo isso, as iniciativas de bioeconomia devem ser equitativas, transparentes, e respeitar os direitos das populações tradicionais. A complexidade da questão demanda uma imersão, além do reconhecimento da pluralidade das sociobioeconomias amazônicas.
As populações tradicionais são grupos culturalmente diferenciados que possuem formas próprias de organização social e que utilizam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, conforme definição no Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. O decreto institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT). Discussões recentes no âmbito de organizações indígenas, quilombolas e de outras populações tradicionais, em comunidades acadêmicas, novas iniciativas, fóruns e eventos, inclusive pan-amazônicos, têm levantado preocupações sobre quais conhecimentos, referenciais, tecnologias e políticas devem formar os alicerces de uma bioeconomia de raiz amazônica. A conexão de diferentes saberes ancestrais tradicionais e acadêmicos será fundamental não só para o desenvolvimento de inovações, mas também para apoiar a criação de soluções que consigam dar a celeridade necessária para a transição socioeconômica, tendo como princípio central o fortalecimento dos modos de vida e bem-viver das populações, bem como o seu protagonismo no desenho e implementação de arranjos socioeconômicos a partir dos territórios.12
Foi com essas inquietações que a Saberes Sociobio surgiu. A iniciativa prevê a promoção de diálogos simétricos e descolonizadores entre diferentes sistemas de conhecimento e atores sociais a fim de cocriar abordagens e princípios para subsidiar políticas e práticas para a articulação equitativa entre conhecimentos tradicionais e acadêmicos, incluindo propostas e políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT), na promoção de sociobioeconomias amazônicas. Com foco inicial na Amazônia brasileira, a Saberes Sociobio, que conta com o apoio e parceria do Instituto Tecnológico Vale – ITV, destaca a importância de criar espaços participativos conceituais, metodológicos e físicos para a emergência de uma ciência equitativa e inovadora que dialogue com os saberes tradicionais de igual para igual.
A articulação e conexão de saberes
Historicamente incluídos em processos de pesquisa como “objetos de estudo” ou fontes de informação, os conhecimentos de povos indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais são transferidos e transformados por meio da ciência e tecnologia em produtos e serviços para a sociedade. Porém uma voz crescente desses povos vem emergindo. A inovação a partir de um novo olhar, em que os saberes e tecnologias ancestrais e seus detentores têm papel central, começa a ser cada vez mais debatida.13 Modos de vida e saberes tradicionais têm sido negligenciados em diversos projetos, nos quais são impostas soluções que desconsideram as culturas e os valores locais. Ailton Krenak, primeiro escritor indígena membro da Academia Brasileira de Letras, discute como os modelos ocidentais de desenvolvimento com frequência desconsideram as perspectivas indígenas, levando à degradação ambiental e à perda cultural. Seu trabalho enfatiza a importância da sabedoria indígena na criação de estratégias de bem-viver que consideram a reciprocidade entre humanos e natureza a partir de referenciais ancestrais: “Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar”. 14
Além da proteção e devida valorização por tratados e regulamentações que buscam corretamente reconhecer, resguardar e valorizar esses saberes e seus povos, há uma necessidade premente de que estes sejam genuinamente incluídos nos processos de pesquisa e inovação, não como objetos de estudo, mas como protagonistas na geração de soluções. Tais soluções apontam caminhos para o bem-viver não somente das próprias populações locais, seus territórios e modos de vida, mas também para as plantas, os animais, os rios, o clima e a humanidade.15 Um caso emblemático é a pimenta Bani. As mulheres do povo Bani, do Amazonas, fizeram uma reivindicação à Associação Indígena da Bacia do Içana (OIBI) para terem seus próprios trabalhos de geração de renda. O que as motivou foi o resultado positivo de renda obtida por meio das cestarias de arumã, trabalho exclusivo dos homens. Os projetos de produtos, cestaria e pimenta dos Bani atende a algumas de suas lutas, entre as quais a geração de renda para as comunidades por meio de comércio justo e solidário e valorização de produtos culturais, ambientais e sociais.
Para que projetos como esses se expandam e ampliem seu potencial de impacto, é vital conectar conhecimentos ancestrais com a ciência acadêmica promovendo um desenvolvimento endógeno, inclusivo e justo em tempos de emergência climática, insegurança alimentar e erosão de conhecimentos e práticas ancestrais da sociobiodiversidade. Também é crítico colocar a tecnologia a serviço das necessidades dos territórios e sociedades amazônicas. Para integrar esses saberes, no entanto, é preciso enfrentar desafios significativos e complexos, como a falta de reconhecimento e valorização dos saberes tradicionais, a resistência institucional, a ausência de políticas públicas que promovam essa interação, bem como a pouca visibilidade dos modos de produção e governança das populações locais diante da lógica de mercado. Sem mencionar a apropriação da biodiversidade e conhecimentos ancestrais por atores externos e alheios às complexas realidades amazônicas.16
No contexto brasileiro, soma-se a isso o preconceito e racismo estrutural contra povos indígenas, afrodescendentes e populações ribeirinhas e extrativistas, entre outras. Desde os primórdios da colonização, a visão eurocêntrica prevalecente perpetuou a ideia de uma hierarquia cultural, colocando, por exemplo, os povos originários em uma posição de suposta inferioridade. O binômio “civilizado e selvagem” ou “civilizado e primitivo” serviu como justificativa para a subjugação sistemática dos povos originários, uma narrativa que persiste até os dias de hoje.17 O “epistemicídio” como processo instalado por séculos levou à marginalização de conhecimentos nativos: uma cultura se impôs à outra, o que resultou em uma grave desvalorização de saberes tradicionais e práticas culturais.
A falta de formação adequada para educadores e a resistência a mudanças nas práticas pedagógicas18 representam obstáculo para a educação intercultural, que poderia servir como uma ponte entre esses diferentes tipos de conhecimento. Um processo semelhante aconteceu com os modelos educacionais das instituições de ciência, tecnologia e inovação, para os quais “importamos” os padrões ocidentais, sem considerar algo tão inerente e peculiar na Amazônia como a intrínseca relação dos saberes ancestrais com a natureza. Chicoepab Suruí, do povo Paiter Suruí, um dos pesquisadores da Saberes Sociobio, decidiu fazer mestrado e doutorado, para que pudesse criar as pontes necessárias e ampliar o diálogo dos conhecimentos de seu povo, que vive em Rondônia e Mato Grosso, com os conhecimentos externos. Ele enfatiza os desafios para que processos culturais dos povos indígenas estejam incluídos nas universidades e centros de pesquisa.
Não se trata aqui de discutir o que tem maior ou menor valor. eremos sim promover formas de geração e transformação de conhecimentos de origens diferentes, acumuladas de forma empírica, prática, vivida no território, na relação intrínseca com a natureza e transmitidas de geração a geração desde tempos imemoriais. Elizangela da Silva Costa, indígena da etnia Baré, levanta uma questão importante nos diálogos da Saberes Sociobio sobre a dificuldade de registrar as práticas tradicionais: “Nosso desafio é que tudo o que o nosso povo faz está na oralidade e na prática. Precisamos rabiscar como queremos a bioeconomia sustentável”.
Saberes para a promoção das sociobioeconomias
A iniciativa Saberes Sociobio começou a ser idealizada em 2023 dentro do contexto dos debates e acordos pré-Cúpula Amazônica, que ocorreu em Belém no mês de agosto, unindo os líderes dos países amazônicos. Durante a Conferência Pan-Amazônica de Bioeconomia, realizada em junho do mesmo ano, representantes de povos indígenas, afrodescendentes e outras populações locais levantaram questões fundamentais sobre a invisibilidade dos saberes ancestrais e tradicionais, das ciências indígenas e quilombolas, nos processos de CT da sociedade ocidental. Além disso, enfatizaram a ausência das visões de povos tradicionais na construção da agenda de bioeconomia, mercados de carbono e outras “soluções”.
André Bani foi um dos importantes porta-vozes dessa inquietação durante as mesas de debate e preparação de documentos à Cúpula. Para ele, os povos indígenas vêm sendo cada vez mais acessados para transferência de conhecimento, com pouco e, muitas vezes, nenhum acesso e participação nos resultados dessas pesquisas e inovações. Muito além de terem seus direitos respeitados, o líder indígena entende que poderiam também ser protagonistas criando soluções, produtos e serviços. A invisibilidade do trabalho indígena, quilombola e das comunidades tradicionais gera consequências não apenas para as próprias comunidades, mas também para a sociedade, ao não reconhecer e valorizar processos e métodos tradicionais de conservação ambiental. Como vários estudos demonstram, populações tradicionais potencialmente protegem e conservam mais efetivamente a biodiversidade.19
Líderes indígenas como André, bem como líderes de comunidades locais, têm manifestado de forma recorrente suas preocupações sobre o discurso e a agenda política da bioeconomia na Amazônia. Iniciativas como o Painel Científico para a Amazônia (SPA) e a Iniciativa Amazônia 4.0, que propõe a criação de Institutos tecnológicos de base amazônica (AmIT), por exemplo, exemplificam a necessidade da construção de princípios, processos e novos modelos para a articulação simétrica entre conhecimentos tradicionais e acadêmicos em arranjos de sociobioeconomia.20/21
No entanto, é fundamental garantir o protagonismo dos povos amazônicos nessa construção, a partir do reconhecimento da pluralidade de saberes ligados às visões de mundo, aos modos de vida e às várias sociobioeconomias existentes na Amazônia. A partir dessa inquietação, um grupo de pesquisadores articulou uma proposta. Desde o início, vislumbraram a necessidade de inovar justamente nos processos e formatos de condução desse tipo de iniciativa, em que pesquisadores amazônicos, de povos tradicionais e comunidades locais, fossem os responsáveis pelos estudos, sendo protagonistas na articulação inovadora de saberes e na construção das propostas, processos e metodologias.22
Se a memória da espécie humana é biocultural e expressa-se na diversidade de genes, línguas e saberes, essa memória vem sendo mantida pelos povos tradicionais ao longo de milênios.23 Ela guarda a sabedoria daqueles que por gerações souberam manter seus meios de vida em harmonia com a natureza. Os ecossistemas mais preservados e de maior biodiversidade do planeta24 estão justamente nas áreas ocupadas tradicionalmente por essas comunidades. O propósito de realizar estudos que tragam propostas práticas para a evolução dos processos e estruturas de inovação, mais inclusivos e equitativos, em ações ligadas à promoção da sociobioeconomia na Amazônia,25 é o que alimenta a iniciativa Saberes Sociobio. Seus integrantes entendem a necessidade de apoiar processos de diálogo, colaboração e articulação de conhecimentos tradicionais e acadêmicos no fomento a processos de CT na Amazônia brasileira. E valorizam a memória e a perpetuação dos saberes desses povos como algo fundamental para enfrentar os desafios globais.
O relato de Danilo Nelson Santos Miranda, afrodescentende e quilombola residente da da comunidade de Santana do Capim, no Pará, e membro do Círculo de Conhecimento (ver adiante), é emblemático. Inspirando-se em saberes tradicionais de comunidades da Nigéria, a comunidade inovou nos modos de produção da mandioca ao resgatar a solidariedade comunitária e promover a produção coletiva de 52 famílias, sem perder a essência dos seus modos tradicionais de produção. Depois de inaugurar a iniciativa com um mapeamento de lideranças relacionadas com o tema e um levantamento de demandas, a Saberes Sociobio elaborou uma chamada aberta para pesquisadores, oriundos de saberes tradicionais e acadêmicos. O desafio geracional e a questão de gênero foram critérios cruciais considerados para o futuro da sociobioeconomia. Contribuindo com a discussão intergeracional, Elizeth Marques de Souza, ribeirinha, integrante da iniciativa, destaca a mulher como elo estruturante das relações de cuidado e transmissão de conhecimentos entre gerações.
Como construir a equidade de saberes?
Enfrentar os desafios de processos estruturais normalmente excludentes dos saberes tradicionais é parte da jornada da Saberes Sociobio. A própria formação do Círculo do Conhecimento, por exemplo, se fez valer de alguns critérios aplicados aos candidatos, como, por exemplo, engajamento e atuação no tema de integração e articulação de saberes para economia da sociobiodiversidade; atuação em distintos elos do processo de CT da sociobioeconomia, bem como geração de conhecimento de saberes locais, geração de produtos e serviços da sociobio, sistemas e metodologias de integração de saberes e diversidade territorial e geográfica (seja de origem ou atuação). A primeira chamada da iniciativa recebeu 134 inscrições de pesquisadores e após entrevistas foram selecionados 12 representantes: três de comunidades indígenas, três de quilombolas e afrodescendentes, três ribeirinhos e/ou extrativistas e três acadêmicos com uma grande abrangência da Amazônia Legal brasileira.
Uma das abordagens para desafiar o grupo num modelo não hierárquico de construção, foi a organização de círculos, com inspiração em sabedorias indígenas ancestrais. De acordo com o pensador e pesquisador indígena Donald Fixico, membro da Nação Sac Fox nos Estados Unidos,25 “o conceito de circularidade nas culturas indígenas é central para a compreensão do mundo. O círculo da vida inclui todas as coisas e elas consistem em energia espiritual. Ao nosso redor estão círculos e ciclos”. Assim, estabeleceram-se o Círculo Gestor (administração e gestão), o Círculo do Conhecimento (estudos e cogeração de conhecimentos) e o Círculo Consultivo (apoio e aconselhamento). Todos colaboram em um modelo de governança participativa e equitativa, em que as decisões são tomadas de forma simétrica e colaborativa, envolvendo tanto os saberes tradicionais quanto os acadêmicos.
Esse processo de coautoria entre pesquisadores, conhecedores tradicionais e especialistas busca criar soluções inovadoras que respondam às necessidades locais e globais de sustentabilidade. Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves, professora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), salienta: “Fundamental para o diálogo dos saberes é a articulação de arranjos e sistemas produtivos locais, considerando os parâmetros da existência e a valorização dos saberes tradicionais”. Um encontro presencial marcou o início da primeira etapa dos trabalhos em agosto de 2024. Na imersão que aconteceu em Brasília, foram levantadas temáticas prioritárias e organizados seis grupos de trabalho. As temáticas que emergiram para o Círculo do Conhecimento estão voltadas à promoção dos produtos e serviços da sociobiodiversidade, do grupo Ciências, Inovação e Tecnologia para a Bioeconomia da Sociobiodiversidade; busca de processos e inovações para adaptação e mitigação das mudanças climáticas, do grupo Mudança e Justiça Climática; e a promoção da equidade de gênero e juventude do grupo Gênero, Juventude e Novas Linguagens. Outros três grupos com temáticas trans versais e que endereçam processos estruturantes, como Políticas Públicas, Diálogos Intersaberes e Comunicação, Engajamento e Advocacy estão sob responsabilidade de André Bani e Grupo Gestor, com Luciana Villa Nova, Simone Athayde e Floriana Breyer, com parceria jurídica de Luiz Ricardo Marinello.
Segundo Miqueias, pesquisador de origem extrativista da Saberes Sociobio, o conceito de governança policêntrica envolve múltiplos atores, como governos, ONGs, empresas e comunidades, e promove uma gestão descentralizada com múltiplos centros de poder, o que garante maior adaptabilidade e resiliência aos processos de conservação e desenvolvimento sustentável.26
A inovação para os saberes sociobio
O grande diferencial da Saberes Sociobio é o engajamento de lideranças e pesquisadores de povos tradicionais e de comunidades locais, trazendo representantes das mesmas na formação de um corpo transdisciplinar, multicultural e multiétnico para o centro da produção e difusão de conhecimentos. Isso abre espaço para uma visão integrada de mundo dentro da ciência, promovendo o surgimento de novos formatos, mais inclusivos e diversos, como explica André Bani.
As comunidades tradicionais ativam suas memórias coletivas para enfrentar os novos desafios da modernidade e definir estratégias inovadoras em defesa de seus modos de vida. Dionatas Ulises de Oliveira Meneguetti, docente do Programa de Pós-graduação em Ciência, Inovação e Tecnologia para Amazônia (Ufac), e membro do Círculo de Conhecimento Saberes Sociobio, aponta a necessidade de aprimorar os objetos das pesquisas em áreas temáticas relevantes para atender à interação de saberes e de fontes de financiamento e garantir a sustentabilidade dessas iniciativas para chegar a estes objetivos.
As chamadas novas economias sustentáveis desafiam, no caso da Amazônia, a lógica da escala. A literatura recente sobre casos de bioeconomia na Amazônia brasileira tem mostrado que sistemas produtivos não sustentáveis podem levar a efeitos contrários aos esperados de conservação e desenvolvimento das populações locais. A chamada “açainização” é um desses processos em questionamento atualmente, já que a crescente demanda de mercado por açaí resulta em aumento da escala produtiva em campo, aumentando a pressão para desmatamento de outras espécies com ameaça aos costumes culturais e qualidade de vida.27
Para Lúcia Tereza Ribeiro do Rosário, de origem ribeirinha, pesquisadora do Círculo do Conhecimento, durante anos envolvida em estudos na cadeia do açaí, hoje muitos extrativistas e ribeirinhos estão focados na produção da cadeia de valor, perdendo a conexão com seus modos de vida e costumes. “As experiências mais exitosas são as coletivas, onde comunidades são protagonistas.”
Ruth lena Crist o Almeida, socióloga, professora da Universidade Federal Rural da Amazônia, destaca outro desafio para as novas economias: a incorporação da Economia do Cuidado, com a visibilidade e valorização dos trabalhos das mulheres nas comunidades, que precisam ser consideradas dentro de uma sociobioeconomia verdadeiramente inclusiva e justa.
Proteção e valorização de saberes
A biodiversidade da Amazônia tem sido alvo de geração de artigos de pesquisa e patentes por países estrangeiros, o que levanta questões sobre a apropriação de recursos naturais e conhecimentos tradicionais associados. Muitas espécies da Amazônia foram patenteadas por empresas estrangeiras, que utilizam esses recursos para desenvolver produtos, muitas vezes sem o devido reconhecimento ou compensação para as comunidades locais.28 Conhecido como biopirataria, esse fenômeno representa um desafio significativo para a conservação da biodiversidade e a justiça social na região.29 É crucial que as políticas de bioeconomia incluam mecanismos para proteger os direitos das comunidades locais e garantir que os benefícios derivados da biodiversidade sejam compartilhados de maneira justa e equitativa.
O Protocolo de Nagoia é um exemplo de política internacional que visa reconhecer os direitos dos países provedores e detentores dos saberes (povos indígenas e comunidades locais). Adotado em 2010, o protocolo estabelece diretrizes para o acesso aos recursos genéticos e a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados de sua utilização. O Brasil ratificou o Protocolo em 2021, mas em 2015 já havia estabelecido princípios para aplicação da Convenção da Diversidade Biológica (CDB) na Lei da Biodiversidade.30 Apesar disso, há ainda uma longa jornada de aplicação prática da lei e reverberação e mudanças para povos e comunidades tradicionais.
Ao longo da história, os direitos de propriedade intelectual têm sido um tema central em discussões internacionais, mas, frequentemente, ignoram as necessidades e os direitos dos povos originários. A Convenção da União de Paris (CUP), iniciada em 1880 e oficialmente estabelecida em 1883, previu um sistema internacional para a proteção da propriedade industrial. Durante o desenvolvimento da CUP, os povos originários não tiveram voz nas discussões sobre patentes e demais direitos de propriedade industrial, sendo excluídos das decisões que moldaram o sistema global de propriedade intelectual.
Após anos de negociações, a aprovação do Tratado de Patentes pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi), em 24 de maio de 2024, surgiu como um marco para a proteção dos direitos dos povos originários. Esse tratado foi resultado de 25 anos de diálogo intenso, que buscou alcançar um consenso entre países do Norte Global e nações megadiversas, além de representantes de povos indígenas e comunidades tradicionais. Os países do Norte Global alertaram sobre os potenciais riscos que novas regras pode riam trazer ao desenvolvimento científico e à inovação, enquanto as nações megadiversas e os povos originários defendiam que a origem dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais fosse claramente indicada nas solicitações de patentes.
Os principais objetivos do tratado incluem aumentar a transparência e a qualidade do sistema de patentes, além de impedir que invenções não originais que utilizem recursos genéticos ou conhecimentos tradicionais recebam patente. Isso representa uma mudança significativa, pois a partir da sua implementação os depositantes de patentes estarão obrigados a declarar a origem dos recursos genéticos utilizados e a fornecer informações sobre os povos e comunidades que detêm os conhecimentos associados, uma esperança de mudanças para a geração de inovações referentes aos saberes amazônicos.
Além de aumentar a transparência e prevenir erros na concessão de patentes, o tratado também visa reforçar, subliminarmente, as obrigações de acesso e repartição de benefícios, conforme estipulado na Convenção sobre Diversidade Biológica e no Protocolo de Nagoia. A frente de Políticas Públicas do Saberes Sociobio irá apoiar a análise de quais são os arcabouços legais relevantes no Brasil e como podem promover a interação de saberes interculturais.
O futuro: redes de valor na Amazônia
A lógica de mercado tende a valorizar as inovações tecnológicas que podem ser facilmente comercializadas, enquanto os conhecimentos tradicionais associados, que têm mantido as florestas em pé e os rios fluindo desde tempos imemoriais, são frequentemente negligenciados. Isso cria uma disparidade na valorização e recompensa dos diferentes tipos de conhecimento, perpetuando a invisibilidade dos modos de vida e governança tradicionais. Para Jéssica Martins de Albuquerque, jovem quilombola e também pesquisadora da Saberes Sociobio, o engajamento da juventude com seus territórios de origem faz dos jovens peças fundamentais para a perpetuação dos valores e legados ancestrais. Nesse contexto, é muito importante que haja inovação nos modelos econômicos locais para que sejam mais atrativos para os jovens e viabilizem sua permanência nos territórios.
A partir da geração de instrumentos, protocolos e/ou metodologias, a iniciativa Saberes Sociobio visa mobilizar atenção e recursos para agendas priorizadas. Nas suas pautas de ações, estão propor pilotos de validação e implantação nos territórios, ajudar a transformar estratégias de advocacy em políticas públicas e fomentar, junto a institutos de ciência e tecnologia (novos ou existentes), novos processos e formatos voltados à educação e pesquisas mais inclusivos e simétricos em relação aos saberes ancestrais e acadêmicos.
Frente aos desafios que se impõem ao nosso tempo, as soluções precisam emergir de uma conexão equitativa entre diferentes saberes, inaugurando uma nova era de decisão e ações pautadas nas Ciências Ancestrais e Acadêmicas. Cabe a nós criar os instrumentos e reformar as estruturas para cocriar este caminho, como nos alertam os autores indígenas no artigo Somos Amazônia:31 “Os povos indígenas não vão salvar a Amazônia sozinhos. O conhecimento indígena e das comunidades tradicionais pode sustentar o conhecimento científico. Esta combinação pode oferecer respostas concretas a problemas críticos da Amazônia e além, criando um esforço intergeracional e multicultural numa nova trilha onde indígenas, povos de matriz africana, ribeirinhos, extrativistas e demais comunidades tradicionais brasileiras caminharão juntos no conhecimento e na implementação das soluções”.
Para saber mais, acesse: www.saberessociobio.com
Notas
1 https://agencia.fapesp.br/para-cientistas-novo-modelo-de-desenvolvimento-e-essencial-nao-so-para-salvar-a-amazonia-mas-o-mundo/40181
2 Gallo, M. E. 2021. The Bioeconomy: A Primer. Congressional Research Service:30.
3 Abramovay, R., J. Ferreira, F. de Assis Costa, M. Ehrlich, A. M. Castro Euler, C., C. E. F. oung, D. imo witz, P. Moutinho, I. Nobre, H. Rogez, E. Roxo, T. Schor, and L. Villanova. 2021. Chapter 30: Opportunities and challenges for a healthy standing forest and flowing rivers bioeconomy in the Amazon. Page Amazon Assessment Report 2021.
4 Athayde, S., G. Shepard, T. M. Cardoso, H. van der Voort, S. Zent, M. Rosero-Pe, A. A. Zambrano, G. Surui, and D. Larrea-Alcázar. 2021. Critical Interconnections between Cultural and Biological Diversity of Amazonian Peoples and Ecosystems. Page in C. A. Nobre and A. C. Encalada, editors. Science Panel for the Amazon. The United Nations Sustainable Solutions Network, New York.
5 Bugge, M. M., T. Hansen, and A. itk ou. 2016. What Is the Bioeconomy A Review of Literature. Sustainability 2016, Vol. 8, Page 691 8(7):691.
6 Silva, L. V. N. Promoção de bioeconomia da sociobiodiversidade amazônica: o caso da Natura Cosméticos S.A. com comunidades agroextrativistas na região do Baixo Tocantins no Pará/ Luciana Villa Nova Silva. – 2020. 159 p. Dissertação (mestrado profissional MPGC) – Fundação Getúlio Vargas, Escola de Administração de Empresas de São Paulo.
7 Athayde, S.; Silva, L. V. N. Whose bioeconomy, whose knowledge, and whose profit SDG Action, November 20, 2023. Online: https://sdg-action.org/whose-bioeconomy-whose-knowledge-and-whose-profit/.
8 Hajjar, R. Amazon: Biodiversity Conservation, Economic Development and Human Impact. Chapter: Community Forestry in the Brazilian Amazon: An Examination of Power, Challenges and Goals. s/l: Nova Publishing, 2013.
9 Costa, F. D. E. A., C. Nobre, C. Genin, C. Medeiros, R. Frasson, D. A. Fernandes, H. Silva, I. Vicente, I. T. Santos, R. Feltran-barbieri, R. Ventura, and N. E. Ricardo. 2022. Bioeconomy for the Amazon: concepts, limits and trends for a proper definition of the Tropical Forest Biome. São Paulo.
10 Osociobio (Observatório das Economias da Sociobiodiversidade). Recomendações de políticas para o desenvolvimento da economia da sociobiodiversidade. Brasília, 2022.
11 Garrett, R., Ferreira, J., Abramovay, R. et al. Transformative changes are needed to support socio-bioeconomies for people and ecosystems in the Amazon. Nat Ecol Evol (2024). https://doi.org/10.1038/s41559-024-02467-9
12 Nobre, C.A. et al. (2023) Nova Economia da Amazônia. São Paulo: I Brasil. Relat io. Disponível online em: www.wribrasil.org. br/nova-economia-da-amazonia https://doi.org/10.46830/wrirpt.22.00034
13 Silva, B. P. de T. Araújo, O., M. I. Diálogos sobre interculturalidade, conhecimento científico e conhecimentos tradicionais na educação escolar indígena. Práxis Educacional, Vitória da Conquista, v. 11, n. 18, p. 153-176, 2014. Disponível em: https://periodicos2.uesb.br/index.php/praxis/article/view/805
14 Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras.
15 Baniwa, André Fernando. Bem viver e viver bem: segundo o povo Baniwa no noroeste amazônico brasileiro André Fernando Baniwa, João Jackson Bezerra Vianna, Aline Fonseca Iubel, orgs. – Curitiba: Ed. UFPR, 2019. 64 p.: il. 22 cm. (Série pesquisa, n. 356).
16 Berkes, F. (2017). Encontros e desencontros: como os conhecimentos indígena e tradicional interagem com o meio universitário. ComCiência. Retrieved from ComCiênccia.
17 Smith Tuhiwai, L. Descolonizando metodologias: pesquisas e povos indígenas. Paraná: Editora UFPR, 2021.
18 UNESCO. (2020). Education for Sustainable Development: A Roadmap. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000370508
19 Nobre, C.A. et al. (2023) Nova Economia da Amazônia. São Paulo: I Brasil. Relat io. Disponível online em: www.wribrasil.org.br/nova-economia-da-amazonia https://doi.or g/10.46830/wrirpt.22.00034
20 https://www.theamazonwewant.org/
21 Amazônia 4.0/AmIT: https://amazonia4.org/
22 Com apoio do Instituto Vale (ITV), organização que também apoia a permanência de estudantes indígenas na universidade com apoio financeiro e pedagógico, o projeto começou em 2024
23 Breyer, Floriana. Territórios Regenerativos: da fragmentação a regeneração territorial. 2023, 237 p. Trabalho Final (mestrado): IP– Instituto de Pesquisas Ecológicas.
24 Toledo, V. M. A memória biocultural: a importância ecológica a das sabedorias tradicionais./ Victor M. Toledo Narciso Barrera-Bassols; tradução de Rosa L. Peralta. -1.ed.-São Paulo Expressão popular, 2015
25 Fixico, D. (2015). Coming Around Again: Cyclical and Circular Aspects of Native American Thought. Southeastern Oklahoma State University. Retrieved from SE.edu
26 Souza, Miqueias – 2024 Governança das Reservas da Biosfera: Uma Análise dos Modelos de Gestão para a Reserva Da Biosfera da Amazônia Central / Miqueias Santos de Souza – Manaus (S.N), 2024
27 Freitas et al. Intensification of açaí palm management largely impoverishes tree assemblages in the Amazon estuarine forest, Biological Conservation, v. 261, 2021. https://doi.org/10.1016/j.biocon.2021.109251.
28 https://atmos.earth/at-colombias-convention-on-biological-diversity-afrodescendant-people-need-a-voice/
29 https://rightsandresources.org/publication/afro-descendant-peoples-biodiversity-hotspots/
30 https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=LEI&numero3123&ano015&ato a0ITU65UNV p c7bsaberes-desafios-e-visao-de-futuro-dos-povos-da-floresta/
31 André Baniwa, Gasodá Paiter Suruí, Beka Munduruku e Nadino Calapucha (2023). Somos Amazônia: saberes, desafios e visão de futuro dos povos da floresta. Artigo originalmente publicado na Agência Bori e no Nexo Políticas Públicas. Disponível em: https://abori.com.br/artigos/somos-amazonia-saberes-desafios-e-visao-de-futuro-dos-povos-da-floresta/