Proteger para permanecer
Seringueiros pobres, iletrados, ocultos na distante floresta amazônica, sem representação política, construíram uma alternativa estrutural que evitou migrações para as cidades e assegurou a permanência e a proteção da floresta; conheça essa história
Por Mary Allegretti
Concebidas por seringueiros da Amazônia, as Reservas Extrativistas (Resex) são uma modalidade de unidade de conservação original do Brasil. Uma articulação do Conselho Nacional dos Seringueiros, com apoio técnico do Instituto de Estudos Amazônicos (IEA) e de pesquisadores acadêmicos, as transformou em realidade em 1990. Também teve peso no processo a habilidade política do primeiro presidente do IBAMA, o jornalista Fernando César Mesquita, de convencer o então presidente da República, José Sarney, a assinar o Decreto nº 98.897, de 30 de janeiro de 1990.
Concebidas por seringueiros da Amazônia, as Reservas Extrativistas (Resex) são uma modalidade de unidade de conservação original do Brasil. Uma articulação do Conselho Nacional dos Seringueiros, com apoio técnico do Instituto de Estudos Amazônicos (IEA) e de pesquisadores acadêmicos, as transformou em realidade em 1990. Também teve peso no processo a habilidade política do primeiro presidente do IBAMA, o jornalista Fernando César Mesquita, de convencer o então presidente da República, José Sarney, a assinar o Decreto nº 98.897, de 30 de janeiro de 1990.
As quatro primeiras Resex – Chico Mendes e Alto Juruá no Acre, Rio Ouro Preto em Rondônia e Rio Cajari no Amapá – foram criadas tendo como referência demandas coletivas específicas, fundamentadas pelo conhecimento de pesquisadores e técnicos locais dos estados.
À época, não havia um mapeamento do potencial de criação de outras unidades nem expectativas de formulação de uma política pública para moradores distantes e ocultos pelas florestas amazônicas de então. Entendia-se que as quatro reservas haviam resultado do impacto na sociedade e nas instituições públicas causado pelo assassinato do líder seringueiro Chico Mendes dois anos antes, em 1988.
Entretanto, o decreto assinado continha todos os elementos necessários para a formulação de uma política pública inovadora que conciliava objetivos ambientais, sociais e econômicos formulados, debatidos e aprovados em inúmeras reuniões realizadas depois do 1º Encontro Nacional dos Seringueiros em outubro de 1985, em Brasília.
À medida que novas áreas demandadas foram sendo criadas em diferentes regiões da Amazônia e em estados do sul e do nordeste, a confirmação de que se tratava de uma modalidade original e consistente com a expectativa dos moradores da floresta amazônica passou a ficar clara aos poucos.
Atualmente, o resultado dessa forma de proteção e uso dos recursos naturais e de reconhecimento dos direitos de posse de comunidades está consolidado em duas modalidades de regularização fundiária e socioambiental, Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável, em 96 unidades que abrangem 23 milhões de hectares. E a demanda de criação de 93 novas unidades está em análise nos órgãos ambientais.
Como explicar esse fenômeno socioambiental? Seringueiros pobres, iletrados, ocultos na distante floresta amazônica, sem representação política nacional nem meios de comunicação, conseguem construir uma alternativa estrutural que evitou migrações para as cidades e assegurou a permanência da floresta, ativo ambiental tão valorizado na realidade de hoje? Só a barreira de floresta protegida evitando a expansão do desmatamento já seria um grande resultado. Mas as Resex representam muitos outros valores e resultados que podem explicar a resiliência de uma política pública que já alcançou 34 anos de vida.
A história dos seringueiros
Na formulação de uma política pública, tudo começa com o conhecimento do que existe hoje, da história e dos fatos que sustentam essa realidade e das expectativas e aspirações de mudança. Para captá-lo, não é suficiente organizar consultas públicas genéricas nem realizar uma assembleia com o público interessado e sistematizar suas aspirações em um documento. Adquirir esse conhecimento requer métodos específicos que permitam entender a história, o contexto atual e a visão de futuro de diferentes perspectivas dos que demandam soluções ao Estado.
Na década de 1970, em alguns estados da Amazônia, a maior parte dos antigos seringais havia sido transformada em fazendas de médio e grande porte em mãos de herdeiros locais ou fazendeiros do centro-sul do país, e em lotes de reforma agrária para pequenos produtores e/ou sem terra também originários de fora da Amazônia. A política do governo militar de “ocupar a Amazônia” estava fundamentada na falsa premissa de que a região era um imenso território vazio, repleto de riquezas e objeto de disputa por diferentes países. Era uma questão de segurança nacional.
Essa política alcançou resultados positivos, com níveis variados de eficácia, em parcelas do território de estados amazônicos, especialmente quando destinadas para famílias de pequenos produtores rurais migrantes do centro-sul do país.
Nos estados onde a economia da borracha se estendeu após o 1º ciclo (1870-1912), e se expandiu durante a Segunda Guerra Mundial, em decorrência dos Acordos de Washington (1942-1947), os seringais continuavam produzindo e vendendo borracha, com novos arranjos produtivos. Nas duas décadas seguintes, a proteção aos preços da borracha foi assegurada por políticas governamentais que permaneceram até 1967. Em alguns rios, os antigos “patrões” foram substituídos por gerentes de barracão que administravam um conjunto de regras coercitivas para manter a fidelidade de entrega da borracha. Em outros, os patrões tradicionais, endividados pelo baixo preço da borracha, abandonaram áreas que administravam mas não tinham a titularidade fundiária.
Três estados encontravam-se nessa situação, cada um com suas peculiaridades: Acre, Rondônia e Amazonas. Ali, especialmente em lugares mais distantes, onde predominavam florestas e rios, os seringueiros continuavam produzindo e vendendo borracha (ou trocando por mercadorias) para intermediários. Eles estavam “libertos” dos patrões, como afirmavam. Coube aos estados amazônicos criar suas políticas de atração de grandes empresas para explorar a madeira e implantar agricultura de larga escala.
A história clássica em várias regiões do Brasil caminhava para a substituição de culturas tradicionais por produção de mercado e as pessoas que viviam nessas áreas (a Amazônia não era um espaço vazio) eram expulsas, ou recebiam uma indenização irrelevante e iam embora para as cidades.
Foi nesse contexto que, em 1975, teve início um movimento sindical no Acre, organizado com apoio da Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Por iniciativa do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasiléia, liderado pelo seringueiro Wilson Pinheiro, os seringueiros decidiram não sair do local onde moravam e trabalhavam nas plantações de subsistência (as chamadas colocações de seringa). E assim iniciaram o “empate às derrubadas”, manifestação pacífica organizada por seringueiros que convenciam os peões, contratados por latifundiários, a não derrubar a floresta para a formação de pastos. O movimento inviabilizou a implantação de fazendas onde havia seringueiros.
Depois do assassinato de Wilson Pinheiro, em 1981, Chico Mendes deu sequência e expandiu esse movimento de resistência. Seringueiro de Xapuri, Chico se diferenciava dos demais por ter sido alfabetizado por um refugiado político e trabalhado como professor do Mobral. Líder sindical perseguido por fazendeiros por organizar e liderar os empates, deu origem a uma nova categoria social, o seringueiro “liberto”. Embora isso tenha mudado a rota de migração para as periferias da capital do Estado, Rio Branco, faltava segurança para os seringueiros viverem na floresta: a borracha tinha perdido valor, as fazendas continuavam derrubando a floresta e expulsando seringueiros, não havia escolas nem benefício algum, e a violência imperava.
Os seringueiros e suas lutas
Os seringueiros eram um grupo social que lutava por conta própria contra forças econômicas e políticas, locais e nacionais, com escassos aliados além da Igreja Católica e das poucas organizações da sociedade civil que existiam então. Em comparação com os indígenas, que tinham apoio da Funai e de indigenistas dedicados à causa, os seringueiros viviam em alta vulnerabilidade, desprovidos de alternativas, sobrevivendo na subsistência, abandonados e invisíveis para o poder público. O que lhes dava alguma expectativa era o conhecimento da floresta e a possibilidade de viver com a subsistência obtida na mata e a proteção das plantas contra as doenças.
Chico Mendes tinha planos e iniciativas concretas que queria implantar para melhorar a qualidade de vida e a organização da produção e da comercialização da borracha e de outros produtos. Podia contar com a Igreja e com a Contag. Resolveu pedir ajuda para organizar uma escola dentro da floresta, nas áreas onde ocorriam os empates, para que os seringueiros tivessem a oportunidade de aprender a ler e escrever e fortalecer a organização sindical. Queria também organizar uma cooperativa para a venda dos produtos das comunidades de seringueiros. Convidou um pequeno grupo de pessoas para esse desafio, no qual me encontrava e, em conjunto com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, concretizamos o Projeto Seringueiro de Educação, que, posteriormente, foi incorporado às políticas públicas do Governo do Estado do Acre.
Perseguido pelas suas iniciativas, Chico Mendes não tinha receio de avançar. O contexto passou a ser mais favorável quando o regime militar enfraqueceu e ele obteve apoio federal para continuar seu projeto de educação e assegurar a continuidade da vida nos seringais libertos. A retomada da democracia, o fortalecimento da sociedade civil e o contexto criado pela Constituinte poderiam abrir inúmeras novas oportunidades. Mas a floresta e os seringueiros não faziam parte dessa mudança; ninguém os mencionava nem lembrava de perguntar o que eles precisavam para se integrar ao Brasil pós-ditadura.
Mudança de cenário
O cenário começou a mudar quando convidei Chico Mendes para ir a Brasília com o intuito de iniciar a organização de um evento que pudesse abrir espaço para um pequeno grupo de seringueiros se manifestar diante do futuro governo. A ideia era que, ao contarem como viviam à margem do poder público, conseguissem um espaço em alguma das múltiplas mudanças e propostas que estavam sendo consolidadas no novo poder.
Com apoio do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), da Universidade de Brasília (UnB) e de fontes doadoras, organizamos o 1º Encontro Nacional dos Seringueiros em outubro de 1985 no campus da UnB. Para isso, foram planejadas reuniões preparatórias em várias cidades da Amazônia. Em uma delas, em Rondônia, um grupo de seringueiros colocou um novo conceito na pauta, no meio de um dos mais importantes debates que trazia à tona a necessidade de regularização da forma de vida que haviam conquistado. A mensagem era simples e clara: “Se os índios têm suas reservas indígenas, nós, que somos extrativistas, queremos as nossas reservas extrativistas”.
Durante o Encontro Nacional, os principais mecanismos de autonomia e organização foram definidos: criaram o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), entidade nacional representativa até hoje; e não acataram o modelo de reforma agrária aprovado pelo governo, embora ainda não tivessem clareza em como conseguir o modelo definido de reserva extrativista.
A continuidade da luta
Encerrado o 1º Encontro, e já com aliados inseridos nesse processo, era necessário iniciar a organização de um movimento para formular, criar e assegurar o cumprimento dos objetivos que haviam definido: a ideia de permanecer nas florestas onde viviam, mantendo o modo tradicional de viver e produzir, melhorando a qualidade de vida e a autonomia conquistada, com a proteção do Estado e o acesso à educação, para adultos, jovens e crianças, à saúde e à segurança das comunidades nos lugares onde sempre haviam vivido, com apoio do governo federal.
Em uma reunião de lideranças e assessores técnicos, realizada perto do Natal de 1986, em Brasiléia, a diretoria do CNS convidou técnicos identificados com a agenda do movimento e organizou uma reunião para consolidar suas demandas e decidir uma estratégia de interlocução com o governo. Em dois dias de debates, depois de ouvir as alternativas apresentadas pelos especialistas em reforma agrária, a decisão dos seringueiros se consolidou:
Não concordavam com o modelo vigente de reforma agrária que adotava a divisão de uma área pública em lotes familiares de até 100 hectares; o tamanho dos lotes não seria compatível com a dispersão das árvores de seringa que, para ser economicamente viável, requereria no mínimo 300 hectares; não estavam acostumados a espaços privados dentro da floresta; cada família tinha uma colocação, cujos limites eram respeitados por todos.
Pelos mesmos motivos, entendiam que a propriedade privada não seria adequada para o modo de vida que sempre tiveram na floresta, com liberdade de caçar, pescar e coletar.
O modelo mais adequado seria transformar os seringais em terras públicas, na modalidade de unidade de conservação, denominada de Reserva Extrativista, com objetivos próprios e específicos.
Em síntese, os seringueiros queriam continuar a viver na floresta, assegurar educação para os filhos, lutar por melhores preços para a borracha e outros produtos da floresta e proteger o meio ambiente em parceria com o poder público.
Esse era o modelo. A alternativa não existia, não estava no escopo jurídico da reforma agrária nem nos pressupostos e nas regras das unidades de conservação vigentes naquele momento. Cientes de que representavam as demandas aprovadas pelos seringueiros durante o 1º Encontro Nacional e, com apoio de assessores técnicos e acadêmicos, o movimento organizou uma agenda a ser cumprida junto aos órgãos públicos em Brasília, a partir de janeiro de 1987.
Com a força da identidade consolidada, o CNS deu início ao processo de construção do futuro com base nas decisões do encontro. Visitaram inúmeras instituições públicas para apresentar a demanda de regularização dos seringais para os seringueiros. Em cada órgão público que visitavam, o titular tentava convencê-los de que as modalidades de unidades de conservação existentes preenchiam os requisitos que eles demandavam, como as Florestas Nacionais, as Áreas de Proteção Ambiental, modelos que permitiam a permanência dos seres humanos no meio ambiente protegido. Os modelos de gestão dessas áreas não atendiam às suas expectativas de autonomia na vida na floresta, em parceria com o Estado brasileiro, e foram descartados.
Apenas um modelo foi aceito, no âmbito do Ministério da Reforma Agrária: a transformação dos seringais em áreas públicas, seguindo as regras que eles sugeriram e adotando como solução de gestão um contrato de concessão que estava sendo proposto pela representação da reforma agrária no Acre. Em poucas semanas, uma portaria criou os Projetos de Assentamento Extrativistas (PAEs), sendo o primeiro deles estabelecido nos seringais onde moravam os familiares de Chico Mendes, em Xapuri, meses antes do seu assassinato. Os PAEs existem até hoje, com o nome de Projetos Agroextrativistas.
A conquista do modelo de unidade de conservação que planejaram foi mais difícil. Foi preciso criar um grupo de trabalho com o objetivo de definir com os seringueiros, passo a passo, o modelo jurídico dessa nova modalidade de conservação da natureza com a presença humana. Com assessoria jurídica do IEA, que havia sido criado em dezembro de 1986, com o objetivo de apoiar, em nível nacional e internacional, o movimento dos seringueiros, foi definido o modelo de Contrato de Direito Real de Uso como o mais adequado para garantir as regras apropriadas para a proteção do meio ambiente e do modo de vida dos seringueiros, com divisão de responsabilidades de gestão dos territórios tradicionalmente ocupados, assegurando o que aspiravam: viver na floresta por conta própria, livre dos patrões, vendendo os produtos da floresta e viabilizando um futuro para os filhos, dentro ou fora da floresta, com apoio do governo federal na educação, na economia, na saúde e na infraestrutura.
De 1986 a 1990, o CNS lutou pelas Reservas Extrativistas como o modelo de reforma agrária apropriado para a Amazônia. Mas o movimento alcançou esse objetivo só após o assassinato de Chico Mendes, em 22 de dezembro de 1988. A repercussão internacional e o processo de transição política em curso na retomada da democracia no país, com o término da gestão de José Sarney, foram fatores que facilitaram a formalização das Reservas Extrativistas como áreas protegidas para comunidades tradicionais.
A consistência de uma política pública é confirmada quando sobrevive a mudanças políticas, institucionais e administrativas e permanece sendo solicitada, independentemente das mudanças geracionais dos beneficiários.
Essa resiliência pode ter várias explicações particulares, conjunturais, eventuais. Mas alguns poucos fatores são essenciais e se aplicam a todos os casos. O primeiro é a identificação clara e precisa da demanda social que poderá dar origem a uma iniciativa do poder público. Nenhuma política pública subsiste se não conseguir entender, respeitar e reconhecer a origem social que a sustenta. Os meios podem não existir para atender a demanda social e precisarão ser criados, de acordo com as características apresentadas pelos demandantes.
O segundo fator determinante para uma política pública ser consistente exige a determinação do agente público de criação do modelo da forma como foi demandado pelos futuros beneficiários, mesmo que aparentemente inexistam os meios jurídicos ou institucionais necessários para concretizar a demanda.
O terceiro fator é a combinação da demanda social com a aplicação das regulamentações específicas do setor público ao caso em questão. O quarto fator é o respeito, por parte do poder público, aos anseios, demandas, sugestões e pedidos da população e a tradução da demanda em uma solução permanente.
Esses modelos existem, ou não passam de ficção? Todos esses aspectos estavam presentes quando o modelo de Resex foi formulado, foram incluídos e funcionam até hoje, no que se refere à parte que cabe aos seringueiros extrativistas. Vale registrar que, mesmo sem alcançar os resultados socioeconômicos planejados há mais de 30 anos, as gerações atuais defendem o modelo e continuam nas Resex lutando pelos mesmos objetivos. Talvez os jovens de hoje e os de amanhã queiram mudanças estruturais, em muitos casos, sem sair de onde vivem. E é possível que as mudanças climáticas tornem mais difícil a sobrevivência nas florestas e em outros ecossistemas vulneráveis.
No que se refere ao desenvolvimento socioeconômico, em harmonia com o meio ambiente e em parceria com o poder público, não se pode afirmar o mesmo. O governo federal tem sido omisso em suas responsabilidades com os extrativistas. Ao longo das décadas, o significado central do conceito de Reserva Extrativista foi sendo diluído pela padronização das diferentes modalidades de unidades de conservação (UCs) em duas categorias principais: unidades com gente e unidades sem gente, que correspondem tecnicamente às Unidades de Conservação de Proteção Integral e de Uso Sustentável. Na prática, as ações públicas foram sendo unificadas e restringidas a políticas denominadas de comando e controle, ou seja, de fiscalização do impacto humano sobre o ambiente.
As UCs de Uso Sustentável requerem investimentos em educação, saúde, infraestrutura, tecnologias e modelos adequados de gestão compartilhada entre as comunidades locais e o Estado brasileiro. Mais de 30 anos depois de ter sido criado, continua sendo um conceito avançado e coerente com os tempos atuais.
A diferença essencial, no caso das Resex, está na escolha original que fizeram, de transformar os territórios onde já moravam em uma área pública e assumirem um compromisso de, em parceria com o Estado, cuidarem daquele ambiente natural. A criação de uma Resex é resultado de uma decisão comunitária, antes de se transformar em uma área da União ou de um estado da federação.
Conceitualmente, a Resex não é mais uma modalidade de unidade de conservação com gente dentro que precisa ser fiscalizada para não destruir o patrimônio público. A Resex é um território tradicionalmente ocupado, cujos moradores decidem e optam por um modelo de regularização fundiária que mantém a tradicionalidade e, em contrapartida, assumem o compromisso de contribuir com o Estado brasileiro na proteção daquele espaço. Cabe aos extrativistas manter um modo de vida compatível com o uso sustentável dos recursos naturais e, ao Estado, viabilizar os meios para essa parceria original e necessária, se consolidar e se perpetuar pelas novas gerações.
A luta por um direito
No Brasil, dois grupos sociais têm direitos assegurados na Constituição de 1988: os indígenas e os quilombolas. O Art. 231 assegura direitos originários sobre territórios para povos indígenas, que têm o usufruto exclusivo das terras que ocupam; o Art. 68, das Disposições Transitórias, reconhece as comunidades quilombolas – fundadas por negros que resistiram à escravidão e à exclusão durante e após o regime escravista – como grupo étnico com direito à propriedade definitiva de suas terras.
As demais comunidades rurais, especialmente as que vivem em florestas e na condição de posseiros, tiveram que conquistar o direito de obter o reconhecimento dos direitos de posse em modalidades apropriadas às características econômicas, ambientais e culturais que apresentam. Para isso, definiram e construíram socialmente os instrumentos jurídicos e as políticas públicas necessários para tornar essas conquistas universais. O exemplo mais relevante é o dos seringueiros, que formularam uma política específica de reforma agrária e proteção ambiental, as Reservas Extrativistas, depois de mais de dez anos de confrontos em torno da terra e dos recursos naturais.
Ao transformar a proposta dos seringueiros em política pública, o governo brasileiro criou uma modalidade original de regularização de direitos fundiários e proteção de territórios e recursos naturais. Foi o resultado de um histórico processo de mobilização social ocorrido na Amazônia nas últimas décadas do século passado. Os atores principais – seringueiros, extrativistas, ribeirinhos, pescadores, castanheiros, quebradeiras de coco babaçu – são grupos sociais pobres e marginalizados, sem poder econômico nem força política, que têm em comum o fato de depender dos recursos naturais (lagos, florestas, rios, mar, cerrados) para obter a própria subsistência.
As Reservas Extrativistas foram concebidas como territórios contínuos que não deveriam ser divididos, como ocorria com a reforma agrária convencional, de propriedade da União, para usufruto de comunidades com tradição no uso sustentável dos recursos naturais, por meio de contratos de concessão de uso, condicionados a planos de manejo dos recursos. Em reconhecimento a esse novo status que estava sendo formulado por estas comunidades, assim referiu-se Ailton Krenak, pela União das Nações Indígenas:
“Nós queremos a possibilidade da vida para os povos indígenas da Amazônia, para as populações ribeirinhas e, especialmente, para… os seringueiros que estão conscientes de que defender a floresta, defender o meio ambiente onde eles vivem, é resgatar o direito das pessoas de continuar vivendo lá. Eles sabem disso, acima de tudo, pelo ensino que eles tiveram dos povos indígenas e da natureza mesma.”