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Por uma transição ecológica e social efetiva

O conceito emergente da bioeconomia se apresenta como uma alternativa viável para enfrentar os desafios impostos pela crise climática e as desigualdades sociais; é preciso, porém, uma abordagem colaborativa

Por Francisco de Assis Costa

 

 

Em um contexto de crescente preocupação global com a degradação ambiental e a desigualdade social, o Relatório de Brundtland foi um marco importante na história do desenvolvimento sustentável (DS). Também conhecido como Nosso Futuro Comum, o documento da Organização das Nações Unidas (ONU) publicado em 1987 estabeleceu um novo paradigma ao integrar as dimensões econômica, social e ambiental e definir desenvolvimento sustentável como aquele que “atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras gerações de atenderem suas próprias necessidades”.

O conceito incorporou ideias como “crescimento verde” e “bioeconomias”, expressões de um novo enfoque ambiental global associado a políticas de desenvolvimento e, ao longo do tempo, importantes movimentos de ideias deram propulsão, de um lado, ao reconhecimento de uma crise ambiental global inerente aos padrões de crescimento das sociedades industriais e, de outro, à necessidade de se definirem os princípios orientadores de um DS na contramão dessa crise.

Inicialmente com foco na exaustão de recursos naturais, a visão de crise ambiental evoluiu para incluir as externalidades do crescimento dependente de combustíveis fósseis, como o aquecimento global e a perda de biodiversidade. Em paralelo, ficou mais evidente que desigualdades sociais intensificam a crise ambiental.

Este artigo analisa a economia agrária da Amazônia Legal na perspectiva do DS, discutindo a evolução do conceito, o debate teórico e as políticas associadas a ele, como as orientadas pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e por portfólios de bioeconomias. O texto também explora a diversidade estrutural da
Amazônia Legal, focando em trajetórias sóciotecnológicas patronais e camponesas, além das tensões entre formas destrutivas e modos alternativos de desenvolvimento. Por fim, tratamos das prioridades políticas no contexto do DS e bioeconomias referidas ao bioma.

 

Sustentabilidade-insustentabilidade

Depois do relatório Brundtland o conceito de desenvolvimento sustentável se firmou como um ideário, uma articulação de valores primários, cuja força ideal, proporcional ao grau de compartilhamento que desfruta na sociedade, orienta, como referência ética, a construção das mentes e instituições que moldam o devir. Nessa perspectiva, o DS equivaleria aos valores éticos e normativos de “liberdade, igualdade e fraternidade” que, exigindo democracia, vêm orientando por mais de dois séculos as rotas da modernidade.

O DS desafia a visão tradicional de progresso e submete os imperativos do progresso à consideração de suas implicações sociais e ambientais, revisitando e atualizando o ideário modernista. E vai além da igualdade formal entre os membros das gerações presentes, exigindo que se preservem as condições operantes da natureza
como precondição de uma equidade substantiva, material, entre essas e as futuras gerações.

As evidências de insustentabilidade nos modelos de produção e consumo das sociedades contemporâneas têm feito a busca por valores sustentáveis algo cada vez mais urgente. Também crescente é a consciência sobre a insustentabilidade dos modelos atuais de desenvolvimento, o que tem pressionado a sociedade a adotar valores que priorizem a sustentabilidade e a justiça social.

A percepção dos riscos concretizados nas crises sistêmicas da economia mundial exacerbadas por Wall Street em 2007-2008 e pela covid-19 em 2020 e pelos alarmantes fenômenos de mudança climática, como exposto no relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) de outubro de 2018, intensificou a oposição cada vez mais flagrante entre sustentabilidade e insustentabilidade. Nesse contexto, surgiram novas abordagens teóricas e práticas que sustentam o pensamento do DS. De um lado, operadores teórico-metodológicos são aqueles que, pelo enunciado positivo ou crítica, dão consistência ao ideário por meio da capacidade acumulada pela ciência. De outro, os programáticos, considerando o que indica a ciência e outras formas de conhecimento, se oferecem como programas de ação. Ambas as dimensões são essenciais, não apenas em debates acadêmicos e em instituições multilaterais que buscam implementar políticas de Estado eficazes em diferentes níveis.

Parte importante das operações teórico-metodológicas foca na criação de meios de leitura do insustentável-sustentável, envolvendo tanto as referências teóricas necessárias para abordar suas determinações quanto as métricas para visualizar os fenômenos inerentes.

Um núcleo neoclássico, representado pela economia ambiental e pelos recursos naturais, vê as causas da insustentabilidade apenas como falhas de mercado, tratadas como externalidades. Essas falhas seriam corrigidas pela internalização dos efeitos externos nas estruturas de custos e receitas das empresas, expressando em preços as perdas e ganhos ambientais resultantes das atividades econômicas. Segundo essa visão, um novo ponto de equilíbrio se alcançaria, garantindo um nível ótimo de sustentabilidade sancionado pelo mercado e seus critérios de eficiência.

Críticos apontam que os princípios pressupostos por essa abordagem – como a transitividade das formas de capital, a utilidade baseada na escassez e a homogeneidade dos agentes – limitam a expressão dos anseios do DS, esvaziando seu conteúdo ético-normativo. A suposição de racionalidade padrão e substantiva de agentes homogêneos resulta na incapacidade de tratar diferenças, dificultando a garantia de equidade social e justiça ambiental intergeracional.

Para tanto, grupos sociais distintos e estruturas produtivas diversas devem ser vistos em suas especificidades e historicidades, com responsabilidades e direitos compatíveis. Outra crítica surge como economia política, endogenizando a dimensão natural dos processos econômicos ao destacar a inerência da entropia do mundo físico a esses processos, particularmente sob o capitalismo industrial.9 Com a noção de entropia, cada ato produtivo é visto como uma afirmação da segunda lei da termodinâmica, onde a desordem dos fundamentos vitais cresce. O capitalismo aprofundou a divisão do trabalho e a industrialização da agricultura, resultando em maior uso de energia fóssil e substituição de biomas, aumentando a entropia.

Nessa perspectiva, os níveis de entropia refletem respostas técnicas do sistema produtivo, que podem ser expressas através de modelos evolucionários similares ao paradigma tecnológico de Giovanni Dosi, de 1982: um modelo baseado em princípios científicos e tecnologias reconhecidas, incorporado nos sistemas de inovação de
uma época, definindo problemas e soluções. A liberação de hidrocarbonetos e a redução da biodiversidade associam-se às trajetórias tecnológicas operantes sob um paradigma tecnológico que induz os agentes a recorrer instantânea e acriticamente a soluções mecânicase químicas, desde inovações incrementais até as que reciclam trajetórias com os recursos oferecidos pelos motores a combustão, eletricidade, eletrônica, computação e cibernética.

A dominância desse paradigma mecânico-químico produziu desestruturação da base material da vida, revelando a temeridade dos diagnósticos de “sustentabilidade fraca” da economia neoclássica, que pressupõe, com a absorção das externalidades pelo aparelho produtivo, plena reversibilidade dos equilíbrios. Frente aos riscos de perda de condições materiais essenciais para a vida no planeta, a economia ecológica exige avaliações por critérios de “sustentabilidade forte”, que consideram a entropia física dos processos sociais e ressaltam as incertezas e indeterminações nas crises sistêmicas.

Entretanto, na oposição sustentabilidade-insustentabilidade, surgem possibilidades de dinâmicas de entropia baixa, nula ou negativa (negentrópicas, sintrópicas), sugerindo vias de desenvolvimento com ampliação das fontes de energia livres de hidrocarbonetos e criação de sistemas abertos à entrada de energia solar, especialmente os de base biológica.12 Reconhecendo os riscos de irreversibilidade na ultrapassagem de fronteiras naturais críticas
e as limitações do paradigma vigente, essa perspectiva sugere outros paradigmas que possibilitem coevolução sustentável entre sistemas econômicos e ecológicos,13 exemplificada por populações indígenas e caboclas na Amazônia.

No contexto da transição verde – do insustentável de sistemas de alta entropia para um futuro sustentável baseado em sistemas negentrópicos ou de baixa entropia – surgem movimentos densos de ideias. Convergências teóricas das heterodoxias keynesianas, schumpeterianas e institucionalistas, inicialmente em torno da categoria de trajetória tecnológica, ganham amplitude e densidade.

A mudança ecológica e social pretendida pelo DS ocorre por trajetórias tecnológicas concorrentes, conduzidas por racionalidades diversas, subsidiárias de paradigmas tecnológicos ou sociotécnicos concorrentes, em territórios específicos, sujeitos a lock-ins, indeterminação e irreversibilidade.

O papel do Estado e das políticas públicas é central, exigindo uma atuação mais intensa e frequente em um arranjo moderno em que o Estado, em diversas esferas de governo, especifica diretrizes e arregimenta financiamentos, enquanto reconhece a necessidade de experimentações locais densamente participativas. Nessas bases, constroem-se grandes operadores programáticos do desenvolvimento sustentável.

Os operadores programáticos, valendo-se das avaliações geradas pelos operadores teórico-metodológicos, delineiam panoramas de possibilidades, organizam portfólios de alternativas e realizam planos e linhas de ação que, ao abordar aspectos específicos da insustentabilidade, dão sentido concreto ao ideário da sustentabilidade.

Economias, crescimento e acordos verdes: Organizações multilaterais elaboraram grandes programas como o “Crescimento Verde” do Banco Mundial e a “Economia Verde” da ONU, lançados com grande expectativa na virada para os anos 2010, como orientação para programas de recuperação e desenvolvimento pós-crise de 2008. Apoiadas por essas posições, as operações realizam-se em sentido top-down e referem-se ao paradigma dominante – centrado na mecânica e na química de hidrocarbonetos, potenciadas pela eletricidade e cibernética –, buscando mecanismos que levem governos, empresários e consumidores a empreender atividades ambientalmente prudentes, realocar trabalho, capital e tecnologia e garantir suporte a inovações ecológicas.

Objetivos do Desenvolvimento Sustentável: Os ODS da ONU, lançados em 2015, são uma continuação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), que vigoraram entre 2000 e 2015. Enquanto os ODM focavam em áreas específicas como erradicação da pobreza extrema e combate a doenças, os ODS ampliam o escopo para 17 objetivos integrados que abordam questões sociais, econômicas e ambientais. Esses objetivos incluem erradicação da pobreza, igualdade de gênero, ação climática, educação de qualidade, entre outros, e visam promover um desenvolvimento global sustentável até 2030. Esses apelos a compromissos globais refletem a urgência em encontrar soluções para problemas que afetam todos os países, independentemente de seu estágio de desenvolvimento, reforçando a ideia de que a sustentabilidade é uma responsabilidade coletiva. As formas como tais inputs se transformam em políticas efetivas variam no tempo, países e regiões. Destacam-se as iniciativas dos governos chinês e coreano em programas próprios de economia-verde, que aplicavam, já na primeira metade dos anos 2010, 34,3% e 80,5% dos respectivos orçamentos de pesquisa e desenvolvimento em tecnologias limpas. As iniciativas norte-americana e da União Europeia, a partir de seus programas greennew deal, ganharam novo fôlego desde 2019, após um período de arrefecimento.

Bioeconomias: Empresas e suas organizações, em fluxos bottom-up, interagem com os grandes movimentos top-down, gerando dinâmicas que as noções correntes de bioeconomia expressam. As operações referem-se às trajetórias tecnológicas filiadas ao paradigma mecânico-químico vigente.

Os movimentos top-down e bottom-up de organizações, governos e empresas ocorrem no interior dos sistemas nacionais de inovação, configurando-os à imagem do DS. Os conceitos e práticas vêm se desenvolvendo com o sentido de transição ecológica: das trajetórias sóciotécnicas insustentáveis para outras, presumivelmente sustentáveis. Onde as técnicas produtivas, por seus conteúdos mecânicos e químicos, mostram-se degradantes para a vida, desenvolvem-se tensões que configuram ambientes de inovações em processos biológicos – biotecnologias. Onde os impactos à vida humana e aos ciclos naturais resultam de processos produtivos inorgânicos ou finitos, desenvolve-se o foco em produtos de base biológica e renovável – bioprodutos.

Esse movimento reflete-se em noções de bioeconomias que constituem rotas mainstream. Na Europa, a ênfase está nas inovações biotecnológicas aplicáveis em setores diversos, como as biorefinarias na indústria.26 Nos Estados Unidos, o foco é em bioprodutos, visando substituir insumos industriais não renováveis por recursos biológicos renováveis.

Tais trajetórias – bioeconomias de processo e de produtos – buscam soluções tecnológicas baseadas na natureza, complementando os esforços na superação dos desafios impostos pela crise ecológica global aos padrões mecânico-químicos na indústria e agricultura.

 

Agriculturas e transições

 

O setor rural é fundamental para toda a problemática. Diferentemente da indústria, a natureza viva opera como força produtiva no meio rural. A lógica industrial-capitalista busca reduzir essa presença e controlar seu significado, assim como faz em relação ao trabalho humano. Tal esforço induziu a modernização agrícola pela industrialização, dominada pelo paradigma mecânico-químico, que se afirma por meio de soluções para controlar a natureza para atender às necessidades industriais e capitalistas.

Em contraponto, verifica-se um paradigma agroecológico-florestal, marginal, orientado para soluções tecnológicas harmoniosas com a natureza, gestão da diversidade dos sistemas botânicos e sua autonomia em relação às fontes exógenas de energia e nutrientes. Nele, residem possibilidades de soluções negentrópicas, guiadas pelo princípio de entropia negativa, que orientam o desenvolvimento com esperança de sustentabilidade.

Associadas ao paradigma mecânico-químico na agricultura, observam-se, no plano mundial, variantes de duas grandes trajetórias: uma, preponderante em áreas com restrições fundiárias, eleva a rentabilidade com maior produtividade da terra, intensificando o uso da química; a outra atende ao imperativo econômico majoritariamente pelo aumento da produtividade do trabalho, com maior uso da mecânica potenciada por motores a combustão interna, eletricidade, eletrônica e informática.

Soluções biológicas, como o desenvolvimento de variedades de maior rendimento em plantios homogêneos, fazem parte desse paradigma, potenciando as solu ções mecânicas ou químicas dominantes. As noções de bioeconomias biotecnológicas e de bioprodutos mencionadas anteriormente referem-se, no caso da agricultura, a essas variantes de biologização, ou esverdeamento, das trajetórias mecânico-químicas. Elas focam na redução da “pegada de carbono”, mobilizando diferentes possibilidades em portfólios técnicos de descarbonização, reflorestamento, valorização de produtos energéticos e domesticação de espécies botânicas.

Associadas ao paradigma agroecológico-florestal, desenvolvem–se trajetórias tecnológicas focadas na valorização de processos ecológicos que otimizam o uso de energias e nutrientes com base em biodiversidade, contrapondo-se à monocultura e à degradação do solo. Trata-se de uma bioeconomia bioecológica, guiada por princípios agroecológicos ou agroflorestais, referida a biomas originários e aderentes às necessidades de inclusão e equidade social.

 

Bioeconomias na Amazônia

 

Operações nos moldes dos programas Green New Deal devem ser desenhadas para o Brasil, com o objetivo de reduzir a “pegada de carbono” por meio da reciclagem de trajetórias mecânico-químicas, baseadas em inovações biotecnológicas e no uso de biorecursos na indústria, nos serviços e na agricultura. Essas adaptações devem também contemplar a correção das desigualdades sociais inerentes a tais processos, espelhando os programas internacionais nesse aspecto.

É fundamental adotar uma abordagem programática que promova trajetórias alinhadas ao paradigma agroecológico-florestal, com foco na dinâmica rural voltada para bioeconomias bioecológicas baseadas nos biomas nacionais, destacando a importância da Amazônia.

A Amazônia Legal é um espaço de significativas transformações agrárias, críticas para o DS do Brasil. Entre 1970 e 2017, 81 milhões de hectares de terras públicas foram privatizadas, sendo 80% desse total durante a ditadura militar, no contexto da “Operação Amazônia”.

Entre 1985 e 2006, houve uma pausa nas apropriações, mas de 2006 a 2017 esse processo foi retomado com grande intensidade, liderado por grandes propriedades. Em 2017, a área total ocupada por estabelecimentos agrícolas alcançou 131 milhões de hectares. Nesse contexto, a economia agrária cresceu aceleradamente.

A taxa de crescimento do Valor Bruto da Produção (VBP) agrário foi de 5,2% ao ano entre 1995 e 2006, aumentando para 7,7% entre 2006 e 2017 e atingindo 13,6% ao ano posteriormente. Em termos absolutos, esse valor saltou de R$ 34 bilhões para R$ 250 bilhões a preços constantes de 2020. Esse crescimento implicou uma profunda reestruturação produtiva, acompanhada por intensa movimentação fundiária e um aumento catastrófico no desmatamento, resultando em elevadas emissões de gases de efeito estufa.

 

As trajetórias sociotecnológicas

 

Dois modos de produção predominam no agrário da Amazônia: opatronal, baseado no assalariamento, e o familiar, ou camponês, baseado no trabalho familiar. A produção patronal passou de 53% do VBP agrário em 1995 para 83% em 2017, enquanto a produção familiar caiu de 47% para 17% no mesmo período. Em 2022, o agro negócio patronal dominava 90% da economia agrária da região.

As trajetórias patronais: O agronegócio patronal na Amazônia segue três principais trajetórias sociotecnológicas, todas orientadas pelo paradigma mecânico-químico de desenvolvimento agrícola: produção de grãos (TSTPat-Grãos), pecuária de corte (TSTPat-Pecuária) e plantações permanentes homogêneas (TSTPat-Plantations).

As trajetórias de grãos e de pecuária são as de maior peso e dinâmicas. A produção de grãos, dominada pela soja e milho, foi a que mais cresceu, com um aumento anual de 10% no VBP entre 1995 e 2017, multiplicando-se por 2,5 nos anos seguintes. A demanda global, especialmente da China, foi um fator crucial para esse crescimento, como indicado pelo aumento dos preços, que explicou 5% do crescimento do VBP em 2019, 10% em 2020 e 45% em 2021 e 2022. Desde 2017, para dar conta de tal dinâmica, a produção de grãos demandou cerca de adicionais 7 milhões de hectares de terras desmatadas.

A produção pecuária, por sua vez, cresceu a uma taxa anual de 3,8% entre 1995 e 2006, dobrando para 7,8% entre 2006 e 2017. Em 2022, representava 25% da economia agrária da Amazônia. Nos últimos cinco anos, necessitou de outros 7 milhões de hectares de terras desmatadas. No total, cerca de 14 milhões de hectares de novas terras desmatadas foram incorporadas por essas trajetórias nos cinco anos seguintes ao último censo agropecuário.

Numa contabilidade estrita, a TSTPat-Pecuária foi responsável por 60% das emissões de CO2 da agropecuária entre 1995 e 2006, aumentando para 65% entre 2006 e 2017.34 Contudo, ambas trajetórias cresceram de forma interligada, com a primeira absorvendo terras já desmatadas pela segunda, resultando em ganhos econômicos significativos para ambas. A interação entre essas trajetórias impulsionou a expansão e competitividade do agronegócio na região.

A trajetória TSTPat-Plantation cresceu modestamente, a uma taxa de 0,7% ao ano, mantendo uma participação de 3% na economia agrária em 2017. Embora dependente de insumos químicos e mecânicos, apresenta um perfil ambiental mais favorável em comparação às demais trajetórias patronais, com 50% de suas áreas desmatadas
mantidas com coberturas permanentes, resultando em emissões de carbono consideravelmente menores.

As trajetórias camponesas: Na Amazônia, são representadas pela TSTCamp-Agricultura, caracterizada por sistemas de produção que tendem à especialização agrícola, particularmente em culturas temporárias; pela TSTCamp-Pecuária, cuja produção é cada vez mais dependente da pecuária de corte e de leite; e pela TSTCamp-SAFs, baseada em sistemas agroflorestais. As duas primeiras refletem modos camponeses de incorporação de soluções mecânico-químicas para seus desafios produtivos, enquanto a última se alinha ao paradigma agroecológico e agroflorestal.

As dinâmicas mais notáveis entre os camponeses referem-se aos processos de conversão da TSTCamp-Agricultura, parte para a TSTCamp-Pecuária e parte para a TSTCamp-SAFs. Enquanto a primeira trajetória declinou ao longo de todo o período, a uma taxa de -1,6% ao ano entre 1995 e 2017 e -4,0% até 2022, a TSTCamp-Pecuária cresceu a uma taxa média de 4,8% ao ano entre os censos e continuou crescendo a 4% ao ano. A par disso, sua participação
relativa na área desmatada total mais que dobrou, de 6% para 13%.

Por outro lado, a TSTCamp-SAFs cresceu a taxas significativas de 3,5% ao ano até 2017. Desde então, porém, vem decrescendo a -2,9% ao ano, com o crescimento positivo da produção, a 2,6% ao ano, sendo contrabalançado por uma queda nos preços a -5%. Sob a perspectiva do DS, seria esperado que a política pública se concentrasse no fortalecimento enfático da TSTCamp-SAFs, da dos seus atributos de baixa entropia física, elevada capacidade de
produzir negentropia e alto potencial distributivo (correção de desigualdade), mobilizando as capacidades tecnológicas já existentes no contexto do paradigma agroflorestal e agroecológico. Também seria desejável fortalecer a TSTPat-Plantation, considerando sua baixa emissão líquida de CO2, reorientando-a para um maior nível de diversidade e complexidade, além de reorientar a TSTCamp-Agricultura para uma maior diversidade e complexidade e conter a TSTPat-Pecuária, reorientando fortemente a TTP7 e a TTP3.

No entanto, a política atual segue em direção contrária: privilegia as TSTPat-Pecuária, TSTPat-Grãos e TSTCamp-Pecuária como são, oferecendo-lhes maiores fluxos de crédito e suporte tecnológico, em detrimento das TSTCamp-SAFs, TSTCamp-Agricultura e TSTPat-Plantation. Os órgãos de fomento, por sua vez, ignoram os portfólios e repertórios técnicos do paradigma agroflorestal ou agroecológico, pois as fontes de conhecimento que formam e
orientam seus técnicos não os reconhecem.

Um programa de DS para a Amazônia precisa reverter essa situação. Por um lado, mobilizando os recursos das bioeconomias de esverdeamento, que incluem inovações biotecnológicas, como técnicas de coberturas vivas e outras baseadas na natureza para grãos e outras commodities, além de bioprodutos como técnicas de reflorestamento, dentro das trajetórias guiadas pelo paradigma mecânico-químico, sem perder de vista os limites dessas variantes dentro dos princípios do paradigma.

Por outro lado, é necessário fortalecer o paradigma agroecológico, recorrendo aos portfólios do paradigma agroflorestal, visando à conversão das trajetórias patronais, como o repertório já existente da agricultura sintrópica de grande escala. E impulsionando a bioeconomia bioecológica representada pela TSTCamp-SAFs, a
única expressão do paradigma agroecológico na Amazônia, que discutiremos a seguir.

Por uma bioeconomia bioecológica

 

A ênfase na bioeconomia bioecológica, ou da sociobiodiversidade, referida ao bioma da Amazônia como base para políticas de DS traz questões específicas. É importante reconhecer que tais economias já existem e que representam segmentos significativos tanto em escala – em termos de valor de produção e emprego – quanto em escopo, abrangendo cadeias curtas e longas de uma grande variedade de produtos.

Portanto, o objetivo principal não é criar novas economias ou variantes mais sustentáveis de trajetórias insustentáveis, mas sim fortalecer as estruturas e trajetórias já existentes (como a TSTCamp-SAFs), que são inclusivas por natureza devido às suas relações sociais distributivas ou domésticas e ambientalmente saudáveis devido às características bioecológicas de suas técnicas.

Assim, as questões fundamentais envolvem fortalecer economias socialmente inclusivas e ambientalmente sustentáveis já existentes, superando as profundas assimetrias nas atuais relações com o mercado e com políticas que lhes proporcionam bases infraestruturais, organizacionais e mercadológicas precárias. É preciso que essas economias façam a transição para novas situações em que tais interações sejam cumulativamente virtuosas, elevando seus recursos e capacidades de vida e trabalho.

Os grupos camponeses, frequentemente denominados populações tradicionais na Amazônia, são os protagonistas da bioeconomia da sociobiodiversidade. Esses camponeses se dividem em: Campesinato Caboclo Originário (CbO); Campesinato Caboclo Imigrante (CbI); Campesinato Imigrante Pós-Borracha (CpB); Campesinato Imigrante Recente (ReC).

Um dos desafios mais significativos da economia baseada em bioma está em seus fundamentos técnicos e nas inovações nesse campo. As capacidades e os conhecimentos acumulados nas universidades e institutos de pesquisa, para onde se estima grosseiramente irem acima de 95% dos recursos de geração e difusão de conhecimento, são voltados para a produção padronizada em larga escala, baseada em mecânica e química, com a biologia atuando como uma engenharia de controle e padronização que potencializa o uso da mecânica e da química. No entanto, a economia baseada em bioma requer um conhecimento que seja primordialmente embasado em biologia viva e operante, com uso subordinado de mecânica (flexível) e química, para gerir a diversidade e ter nela o fundamento de eficiência social, ecológica e econômica. Essa tensão reflete um conflito paradigmático entre um modelo mecânico-químico e um paradigma orgânico de organização e evolução técnica da produção.

Podemos identificar duas variantes tecnológicas rurais da economia baseada em bioma (TSTCamp-SAFs): SAFs-F: Inicia com o manejo da floresta e evolui, através de um extrativismo dinâmico, pela incorporação gradual de novos componentes florestais, agrícolas ou pecuários, sejam locais ou exógenos.

• SAFs-A: Parte de uma agricultura homogênea e evolui por meio de composições cada vez mais complexas de variedades locais ou exógenas. Mudança técnica e inovações nos SAFs-F: A variante da economia baseada em bioma que maneja recursos botânicos, fundiários e aquáticos originais – as terras, as florestas e os rios – (SAFs-F) é dotada de sistemas produtivos diversos e complexos. Na Amazônia, esses sistemas combinam, nas várzeas do estuário, o extrativismo de coleta com plantios de culturas permanentes e pesca; nas várzeas do baixo e médio Amazonas, desenvolvem uma pecuária de várzea de alta peculiaridade; na terra firme, o extrativismo de coleta se articula primordialmente com culturas temporárias e permanentes.

O manejo dos recursos florestais e sua associação com diferentes formas de agricultura é uma capacidade ancestral das populações amazônicas, enraizada em seus conhecimentos tácitos e internalizada em suas culturas. Desde a segunda metade dos anos 1990, diversos estudos demonstram ser possível a interação dessas capacidades com conhecimentos laboratoriais, como os da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) no Amapá e no Pará, ou do Museu Paraense Emilio Goeldi no Pará. Todavia, essas são iniciativa marginais; o sistema nacional de inovação, em geral, e o voltado à agricultura, em particular, moldados pelo paradigma mecânico-químico dominante, dedicam pouca de suas capacidades a essa direção.

Mudança técnica e inovações nos SAFs-A: A economia baseada em bioma que desenvolve sistemas botânicos semelhantes à floresta após uso agrícola ou pecuário intenso, que levou à supressão da cobertura original (SAFs-A), tem se desenvolvido em associação com grandes experiências de colonização agrícola. Essas incluem a Bragantina, protagonizada por nordestinos desde o fim do século XIX e que avançou sobre a Guajarina durante a primeira metade do século XX; a microrregião de Tomé-Açu, conduzida por imigrantes japoneses desde 1929; e as experiências da Transamazônica e de Rondônia, iniciadas no começo dos anos 1970 com a presença de colonos de várias partes do Brasil, especialmente do Sul e Sudeste.

Nessas áreas, desenvolveram-se capacidades para gerir SAFs complexos, onde pesquisadores notaram que as sequências de culturas se assemelham à sucessão natural do bioma, permitindo o uso contínuo dos campos agrícolas.

 

Desenvolvimento e inovações

 

A literatura recente sobre bioeconomia frequentemente foca na articulação entre biodiversidade e inovações industriais, baseadas em pesquisas científicas de ponta e conduzidas por profissionais altamente qualificados. Esses avanços são em geral aplicados em grandes plantas industriais, que exploram os recursos da biodiversidade e estão conectadas a cadeias de produtos e serviços globais. Muitas vezes, essas grandes empresas colaboram com firmas menores, que têm maior capilaridade no território e capacidade de inovação.

No entanto, essa perspectiva de industrialização apresenta trade-offs significativos para a economia baseada em bioma na Amazônia. Por um lado, a eficiência industrial pressuposta, que depende de grandes escalas de operação, tende a favorecer mercados distantes e exigir uma uniformização das fontes de insumos, o que pode comprometer o caráter bioecológico da economia. Por outro lado, a economia baseada em bioma na Amazônia se concentra na oferta de uma vasta gama de produtos da biodiversidade para mercados locais, por meio de cadeias curtas que atendem grande parte da população rural e urbana da região.

Portanto, uma estratégia para fortalecer a economia baseada em bioma deve promover uma industrialização flexível, adaptada à diversidade e à capacidade das bases de suprimento. Esta estratégia deve integrar inovações globais ou frugais ao conhecimento local, buscar a promoção de bases de exportação e, ao mesmo tempo, atender às necessidades domésticas por meio de arranjos produtivos territorialmente delimitados.

Uma estratégia de inovação na produção rural e industrial deve ser acompanhada de uma abordagem mercadológica, do que deve fazer parte um marketing territorial que valorize a diversidade e a especiação dos produtos. A valorização por especiação envolve a diferenciação das qualidades objetivas e simbólicas permitidas
pela própria diversidade do território do bioma.

Nas cadeias curtas: reconhecimento e codificação dos critérios culturais que qualificam os produtos, por exemplo o açaí, e definem seus usos; valorização do repertório local de usos culturalmente estabelecidos; ampliação das oportunidades criativas para diversificação de usos, incluindo aqueles que dialogam com tendências globais; fortalecimento simbólico da identidade territorial do açaí.

Nas cadeias longas: levar ao mundo a identidade territorial amazônica dos produtos relacionados ao seu bioma, integrando elementos culturais aos produtos e explorando sua exportação; trazer o mundo para vivenciar o território por meio do turismo; impregnar o valor global com conteúdos locais.

Garantias fundiárias: As economias baseadas em bioma frequentemente envolvem recursos de uso comum. Movimentos identitários e étnicos, juntamente com a ambientalização da questão agrária, ajudaram a promover o reconhecimento, proteção e titulação de terras de uso comum em países do hemisfério Sul. No Brasil, isso gerou políticas de reconhecimento e valorização dos povos indígenas e das comunidades tradicionais, resultando na criação de terras indígenas (TI), territórios quilombolas, reservas extrativistas (Resex), florestas nacionais e assentamentos de reforma agrária, como os Projetos de Assentamento Agroextrativistas (PAE), bem como suas versões estaduais.

No entanto, a partir de 2009, o foco das políticas fundiárias estaduais e federais mudou para a regularização fundiária de posses individuais, muitas vezes envoltas em disputas possessórias e passivos ambientais, como o Programa Terra Legal. É crucial desenvolver inovações institucionais que garantam a titularidade das terras para os campesinatos históricos e recentes e os povos originários que sustentam a sociobiodiversidade.

As políticas de assistência técnica e crédito de fomento no Brasil são predominantemente moldadas pelo paradigma mecânico–químico.42 Inovações institucionais são necessárias para garantir um financiamento adequado à economia baseada em biomas, focadas em SAFs, e não apenas em produtos, e lastreadas em propriedade comum e pertencimento associativo e cooperativo.

A pesquisa em economia urbana destaca que os processos de urbanização e as características dos centros urbanos desempenham um papel crucial na criação e manutenção de economias dinâmicas e inovadoras. A abordagem dos problemas ambientais do ponto de vista urbano também é um debate consolidado. Portanto, a produção social do espaço urbano na Amazônia é fundamental para desenvolver uma agenda para economias baseadas em bioma. As grandes áreas urbanas oferecem vantagens da aglomeração humana e da escala urbana, proporcionando alternativas para superar os desafios de integração econômica e ambiental entre sistemas produtivos baseados em escala, especialização e alta tecnologia e as bases naturais intensivas em biodiversidade.

A inovação infraestrutural para a economia da sociobiodiversidade envolve a identificação e dinamização dos nexos entre a diversidade das economias urbanas e a diversidade natural, aproveitando a capacidade dos sistemas vivos da natureza para fundamentar processos de expansão e diversificação da vida material e social. Essa perspectiva ainda é pouco explorada nas políticas de desenvolvimento sustentável.

 

O AUTOR

Francisco de Assis Costa é professor titular na Universidade Federal do Pará (UFPA) e pesquisador da Rede de Pesquisa em Sistemas e Arranjos Produtivos e Inovativos Locais (RedeSist, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ). Foi visiting fellow no Centre for Brazilian Studies (CBS) da Universidade de Oxford. É membro do Painel Científico da Amazônia (SPA).



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