O lugar da equidade para a justiça climática no Brasil
Um olhar para inovações que preservam ecossistemas ameaçados ao mesmo tempo que combatem a desigualdade socioeconômica no país
Este artigo faz parte da nossa séria “A busca global pela equidade”; para conferir os demais, clique aqui
Por Lucas Petroni e Marcos Paulo de Lucca Silveira
“Nós percebemos que, para garantir o futuro da Amazônia, tínhamos de achar um jeito de preservar a floresta e, ao mesmo tempo, desenvolver a economia da região […]. Nós aceitamos que a Amazônia não poderia ser transformada em um santuário intocável. Por outro lado, sabíamos que era importante frear o desmatamento que ameaça não só a Amazônia, mas toda a vida humana no planeta. Sentimos que nossa alternativa deveria envolver a preservação da floresta, mas também deveria incluir um plano para desenvolver a economia.”
Embora soe atual, a declaração acima foi dada por Chico Mendes ao ambientalista Tony Gross há mais de 35 anos. Registrada no livro Fight for the Forest: Chico Mendes in His Own Words, a entrevista de 1988 seria a última dada pelo seringueiro, líder sindical e ativista pelo ambiente e pela reforma agrária. Semanas depois, Mendes foi assassinado a mando de grileiros e criadores de gado da região de Xapuri, no Acre.
Mendes morreu tendo alcançado reconhecimento internacional, na forma de prêmios como o Global 500 da Organização das Nações Unidas (ONU), na Inglaterra, e a Medalha de Meio Ambiente da Better World Society, nos Estados Unidos. De maneira visionária, ele foi responsável por organizar a luta por uma exploração sustentável e inclusiva da Floresta Amazônica e por inspirar gerações de ativistas ambientais em todo o Sul Global.
O princípio básico de seu pensamento – que a equidade socioeconômica é o cerne político da luta por justiça ambiental — pode nos servir ainda hoje de referência para avaliar ações eficazes e transformadoras contra o desafio climático. A luta por justiça ambiental deve se basear na distribuição equitativa de responsabilidades e benefícios, seja com soluções locais (como a criação de reservas extrativistas em Xapuri), seja com respostas globais (como o estabelecimento de controles de emissão de carbono).
As lições de Chico Mendes e, em especial, o papel central da equidade na luta ambiental, podem nos servir de referência nesse desafio. Com base nas ideias de Mendes e na atual teoria da justiça climática, podemos identificar três dimensões distintas, porém igualmente importantes, dessa luta, as quais exploramos a seguir: a existência de responsabilidades intergeracionais diferenciadas, o reconhecimento de obrigações de justiça global e o respeito ao direito das populações locais à participação. A ponderação cuidadosa desses aspectos – e das potenciais consequências de ignorá-los – é essencial para desenvolver intervenções à altura do problema.
Responsabilidades intergeracionais
Nossa geração – a de todos os que hoje vivem no planeta –tem a oportunidade única de evitar uma catástrofe climática sem igual, tanto para o nosso modo de vida quanto para a biodiversidade. Ainda assim, a busca por uma transição energética em bases renováveis tem fracassado. Parte do problema decorre de uma avaliação equivocada da nossa situação moral. Do ponto de vista da justiça climática, o que está em jogo é a última oportunidade de evitarmos que dezenas de pontos de não retorno climáticos,
entre os quais manter o sistema de regulação climática próprio da Floresta Amazônica, responsável não apenas pela biodiversidade e sustento econômico de quem vive dela como também pelo sistema de chuvas de toda a América do Sul. Se falharmos nessa proteção, a região pode se tornar uma savana tropical, o que teria impactos apocalípticos não só para as populações locais e para a produção agrícola do país, mas também para a dinâmica de aquecimento da Terra.
Encontrar um caminho para um regime energético global livre de carbono requer uma ação humana coletiva sem precedentes e depende de um dificultoso aprendizado institucional. No entanto, problemas políticos aparentemente insolúveis se tornam mais abordáveis ao se estabelecer direitos básicos e responsabilidades a todas as partes envolvidas. Também está claro que, para o avanço da causa, algumas populações têm mais responsabilidade histórica e política do que outras. Dado que uma parcela considerável das emissões de dióxido de carbono que se acumularam na atmosfera decorre do desenvolvimento industrial no Norte Global, aqueles que se beneficiaram e continuam a se beneficiar desse desenvolvimento têm um dever maior de ajudar a equilibrar o sistema energético desigual e injusto do mundo.
Justiça global
Nem todas as pessoas se beneficiam igualmente do atual regime energético. Além disso, e de modo ainda mais relevante, as primeiras vítimas da crise ambiental, populações em sua maioria dependentes dos ecossistemas ameaçados, praticamente não tiveram impacto nas emissões.
Discutir justiça climática sem levar em consideração responsabilidades intergeracioniais diferenciadas, de um lado, e potenciais injustiças globais contra os menos privilegiados, de outro, pode fomentar regimes socioambientais normativamente opressivos e, portanto, politicamente instáveis.
Toda e qualquer política de mitigação de emissões precisa atender ao que o filósofo político Darrell Moellendorf denominou de “princípio de antipobreza”: “Os esforços políticos para evitar mudanças climáticas perigosas devem considerar as diferentes capacidades dos Estados para absorver os custos da proteção, ou tais esforços correm o risco de criar armadilhas de pobreza próprias”. Em outras palavras, o custo de políticas e instituições climáticas não deve recair sobre populações mais pobres que dependem de fontes de energia barata para garantir direitos básicos de sobrevivência e participação social.
Conhecimento local e direito de participação
A terceira dimensão da equidade diz respeito à inclusão epistêmica e política das populações diretamente afetadas pelas mudanças climáticas. Seringueiros e extrativistas como Chico Mendes foram os responsáveis por dar força à busca por soluções justas e sustentáveis na Amazônia. “A nossa luta é a luta de todos os povos da floresta”, afirmou Mendes em sua última entrevista. Com isso, ele não pretendia tornar essa luta homogênea e impor uma lógica paternalista em relação às diferentes comunidades afetadas pelo desflorestamento. Ao contrário, pretendia ressaltar que alianças políticas equitativas e estáveis somente poderiam ser forjadas quando todas as partes concernidas pudessem articular esses interesses em seus próprios termos.
Como aprendemos com Amartya Sen e demais economistas e filósofos da abordagem das capacitações, a busca por justiça implica dar poder ao conjunto de capacidades das pessoas e grupos, garantindo-lhes liberdade de escolha quanto ao que desejam ser e fazer. Indicadores e métricas de justiça climática devem sempre ter como foco as pessoas e esses desejos. Ouvir as populações locais importa não só porque eles são os que mais têm a perder, mas também porque eles podem ajudar a dar novas respostas aos problemas por eles herdados.
Inovações em justiça ambiental
Talvez o legado mais duradouro da luta por justiça ambiental na Amazônia do final do século passado tenha sido o arrojo intelectual e a inovação institucional que motivaram as reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável.
A criação de reservas socioambientais em terras públicas geridas pelas populações locais foi essencial para promover um modelo de desenvolvimento ecologicamente responsável, economicamente inclusivo e politicamente participativo na agenda ecológica global. Entre 1990 e 2018, foram estabelecidas 94 reservas extrativistas (Resex) e 36 reservas de desenvolvimento sustentável (RDS) em todo o país. Esse resultado deriva do trabalho de movimentos socioambientais, com ativistas e cientistas atuando em conjunto com coalizões governamentais. Hoje, as reservas cobrem aproximadamente 26 milhões de hectares de terras e águas públicas autogeridas de forma ambientalmente sustentável, cerca de 4,73% da área da Floresta Amazônica. Ao lado das reservas indígenas, essas áreas representam a linha de frente na defesa contra a exploração econômica predatória de recursos ecológicos essenciais.
Contudo, a urgência criada pela crise climática, de um lado, e o desafio imposto pela diversidade de contextos econômicos, sociais e ecológicos, de outro, exigem novas práticas políticas transformativas, desenhadas para situações diferentes. O verdadeiro legado teórico de Mendes reside na ousadia política de soluções equitativas para a proteção do ambiente, e não na reprodução mecânica de experiências particulares.
Projetos de agricultura restaurativa são baseados na ideia de que a melhor maneira de garantir uma produção agrícola diversificada, sustentável e resiliente diante da volatilidade do clima é imitando ecossistemas nativos com agroflorestas – por exemplo, com a recuperação da mata atlântica brasileira destruída em regiões de alta produção agrícola. Promover a integração entre cadeias de produção em zonas de agrofloresta e zonas urbanas permite unir a recuperação de áreas florestais que tenham sido degradadas por ciclos de monocultura, a produção e a diversificação da atividade econômica agrícola e a valorização de saberes ecológicos locais, em harmonia com a diversidade e o potencial ecológico dessas regiões.
Na tentativa de superar os desafios logísticos e financeiros da agricultura restaurativa, projetos como o hub de inteligência agroflorestal Pretaterra buscam estabelecer cadeias locais de produção e distribuição de produtos de hortifruticultura, algodão orgânico e fibras perto de grandes centros urbanos e promover parcerias estratégicas com cadeias globais orientadas para a transição agroecológica.
Outro exemplo bem-sucedido de práticas agroecológicas é a Frente Alimenta, iniciativa voltada para a promoção de produção agrícola ecologicamente adaptada perto de centros urbanos, visando o aumento da segurança alimentar. Na primeira metade de 2024, a Frente Alimenta doou mais de 80 toneladas de alimento, além de prover auxílio financeiro para que profissionais locais investissem em infraestrutura e equipamento de cozinha.
Experiências de agroecologia ocupam hoje cerca de 13 milhões de hectares, com significativo potencial de expansão. Novas ferramentas de dados geoespaciais e censos agrícolas detalhados impulsionam a agricultura restaurativa, fornecendo informações essenciais para o desenvolvimento de políticas públicas e investimentos direcionados. Além disso, a FAO e outras organizações têm fornecido dados geográficos detalhados e capacitação para ajudar a identificar áreas degradadas, desenhar técnicas apropriadas de restauração, monitorar os avanços, otimizar a alocação de recursos e fortalecer o engajamento com comunidades locais.
Transição energética local
Por sua parte, a criação de cooperativas de produção de energia solar em comunidades periféricas atende a uma dupla demanda. De um lado, responde às exigências da transição energética e, de outro, contribui para a reparação histórica no âmbito do acesso à energia por parte de populações urbanas marginalizadas, fornecendo-lhes serviço estável, seguro e, principalmente, acessível.
O Rio de Janeiro é sede de duas iniciativas em curso que ilustram de forma bem-sucedida essa combinação entre energia renovável e independência energética. A instalação de painéis solares em casas e no comércio local tem por objetivo reduzir os custos de energia e promover sustentabilidade nas comunidades. O sistema é concebido de modo a ser autossuficiente, permitindo aos moradores consumir os excedentes de energia ou vendê-los de volta à rede pública.
Ao contratar pessoas que vivem nas comunidades e ao valorizar o conhecimento local, as cooperativas também geram postos de trabalho e renda. Além disso, ajudam a erradicar a pobreza energética —um problema persistente no Sul Global, em especial em áreas rurais e na periferia de grandes cidades. No Brasil, cerca de 11% dos domicílios sofrem com alguma forma extrema desse problema, enquanto um número incontável de pessoas enfrenta fornecimento instável e altos custos.
De modo cruel, a vulnerabilidade climática se relaciona diretamente à pobreza energética; comunidades sem acesso adequado à energia são menos capazes de se adaptar e responder a eventos climáticos extremos. Ainda assim, o desafio da inclusão energética equitativa é negligenciado pelas abordagens de mitigação do Norte Global e pelos provedores de infraestruturas elétrica dos grandes centros urbanos. Uma transição movida por cooperativas em regiões pobres pode, de uma só vez, compensar emissões, gerar riqueza e melhorar a resiliência.
Um sistema climático estável é condição de fundo para a vida no planeta e crucial para um crescimento econômico orientado pela redução da pobreza e aumento da qualidade de vida para todos. Para atingir esses objetivos, políticas de financiamento ambiental centradas na inovação social devem buscar inspiração na experiência das lutas ambientalistas locais. Ao colocar a equidade no centro e estimular abordagens transformativas de fundo comunitário, essas políticas podem acessar o pleno potencial das soluções conduzidas nos territórios, promovendo um futuro resiliente e justo para todos. A vanguarda da justiça climática e ambiental já incorporou esses insights. Agora é a vez de a política mainstream alcançá-los.
Marcos Paulo de Lucca Silveira tem formação em ciências sociais e ciência política pela USP e realizou seu pós-doutorado no Centro de Estudos da Metrópole (CEM-USP/Cebrap). Foi pesquisador visitante no Instituto Kennedy de Ética da Universidade Georgetown. Coordena o Lab for Economics and Applied Ethics (Leap-FGV) e é pesquisador e membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação José Luiz Egydio Setúbal. Leciona na EESP/FGV.
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