Apoio à inclusão das mulheres no trabalho na região Mena
Há três barreiras comuns para as mulheres entrarem no mercado de trabalho formal; enfrentá-las juntas pode abrir oportunidades
por Charlotte Karam, Carmen Geha e Lina Daouk-Öyry
Em um discurso de 2023, o secretário-geral da ONU, António Guterres, declarou que o mundo está a 300 anos de alcançar a equidade de gênero – cada vez mais evidências demonstram que o progresso para as mulheres vem se desfazendo gradualmente na última década. O veto ao direito constitucional ao aborto nos Estados Unidos com a derrubada, pela Suprema Corte de Roe v. Wade em 2022 e a recente proibição do Talibã à educação de meninas no Afeganistão são apenas dois exemplos preocupantes.
As professoras da Universidade Harvard Erica Chenoweth e Zoe Marks referem-se a essa tendência como “a vingança dos patriarcas”, uma série de ações repressivas caracterizadas pela resistência contra os direitos econômicos, políticos e pessoais das mulheres. E, embora esteja acontecendo em todo o mundo, seus impactos são particularmente acentuados na região do Oriente Médio e Norte da África (Mena), onde a dinâmica patriarcal permeia tanto a vida familiar quanto o Estado. Nesses ambientes, valores e normas culturais, estruturas legais e de governança tendem a priorizar e reforçar os direitos e preferências de homens e idosos.
A região Mena tem uma das menores forças de trabalho femininas do mundo; estima-se que 18,4% das mulheres participem da economia formal em comparação com a média global, que é de 48%. Esse é um reflexo marcante de sistemas discriminatórios e normas arraigadas que incluem violência generalizada baseada em gênero, interpretações religiosas rígidas que restringem o acesso das mulheres ao trabalho e participação política limitada. Em toda a região, essas forças se combinam para excluir a maioria das mulheres do mercado, tornando-as mais vulneráveis à pobreza e à privação.
Empreendedorismo: uma solução incompleta
Uma solução frequentemente proposta para a pobreza e o acesso limitado das mulheres à economia formal é empreender. No entanto, a prevalência de programas de empreendedorismo pode inadvertidamente afastar as mulheres da economia formal, expondo-as à exploração e à dependência de contratos de curto prazo, dificultando seu acesso a benefícios da previdência social, vitais para si e suas famílias.
Outro problema é que os programas de empreendedorismo geralmente são adaptados para mulheres com conjuntos de habilidades específicas, como inovação digital, habilidades culinárias ou artesanato e que têm interesse em desenvolver seus próprios negócios. Eles nem sempre são relevantes para mulheres com diferentes competências e ambições. Uma mulher que entrevistamos no Líbano nos disse: “A cada dois meses, na minha aldeia, há algum tipo de treinamento para as mulheres se tornarem empreendedoras e, embora muitas mulheres sejam admiráveis e capazes de estabelecer seus próprios negócios, nem todas queremos empreender; isso não pode significar que permaneceremos sem empregos decentes”.
Líderes e organizações que buscam apoiar uma maior inclusão da força de trabalho precisam, portanto, adotar uma abordagem multifacetada e contextualizada que evite transferir o ônus da mudança para as mulheres individualmente. “Sinto-me pessoalmente muito empoderada, mas não posso enfrentar o racismo cotidiano, a violência nas ruas e os preconceitos nas decisões de promoção. Não sou eu quem deve mudar e ser mais empoderada, são o governo e o meu chefe”, explicou uma trabalhadora do Marrocos que entrevistamos.
É por isso que o Projeto Sawi (sawi significa “equiparar” em árabe) e seu antecessor, o Projeto KIP, adotaram uma abordagem participativa feminista que envolve empregadores e funcionários em diferentes setores e nações. Nossa ação multinacional, financiada pela Iniciativa de Parceria do Oriente Médio do Departamento de Estado dos EUA e com bases na Universidade Americana de Beirute e na Universidade de Ottawa, faz parceria com empregadores para reformar políticas e práticas de emprego a fim de garantir que promovam a inclusão das mulheres. Nosso processo envolve trabalhar com organizações e universidades locais da sociedade civil, estudantes, acadêmicos, estatísticos, líderes empresariais e profissionais de recursos humanos para identificar barreiras à inclusão da força de trabalho, analisar dados e projetar soluções em conjunto. Também ajudamos os empregadores a implementar novas políticas e a desenvolver capacidades de monitoramento de longo prazo.
Embora os desafios em nível nacional e organizacional sejam amplamente diferentes, dependendo dos mercados e das experiências das mulheres, encontramos três semelhanças marcantes e desafios comuns para reformar culturas organizacionais discriminatórias em toda a região Mena. Eles são dados insuficientes; falta de políticas e infraestrutura para apoiar a inclusão; e a falta de uma agenda compartilhada entre financiadores, líderes e organizações – particularmente universidades – que possam promover mudanças. Enfrentar esses desafios em conjunto permitiu que nossa organização e seus parceiros aumentassem efetivamente a participação econômica das mulheres em diversos contextos socioculturais e geográficos.
Lidando com o déficit de dados
De forma geral, a região Mena carece de dados, mas, em alguns países e setores, eles são quase inexistentes no que diz respeito às experiências de trabalho das mulheres e as políticas e práticas de recursos humanos (RH) relacionadas ao recrutamento, retenção e promoção delas. Como resultado, os empregadores que pretendem construir espaços de trabalho mais inclusivos muitas vezes se veem no escuro. A ausência de comparações estatísticas significativas de setores e a marginalização das vozes e das experiências das mulheres prejudicam o desenvolvimento de estratégias eficazes e agravam as barreiras a sua inclusão na força de trabalho. Sem uma referência ou linha de base clara, as organizações lutam para medir seu progresso ou implementar mudanças estratégicas.
O primeiro passo para apoiar a inclusão é entender as origens e nuances dos problemas que as mulheres e os empregadores enfrentam. Para obter informações sobre as políticas do empregador e as experiências de trabalho das mulheres, coletamos dados de pesquisa de 3.310 empregadores locais e dados de entrevistas de mais de 980 mulheres para desenvolver dois índices: o Índice KIP e o Índice de Experiência Vivida. Essa iniciativa teve como objetivo reunir conhecimento como base para traçar um caminho com o objetivo de desmontar os impedimentos estruturais à inclusão das mulheres; os índices fornecem uma base para construir soluções direcionadas que abordem o problema em suas origens. Com dados de recursos humanos relacionados ao número médio de mulheres recrutadas, cargos ocupados por elas, que tipos de políticas existem e se estas são aplicadas, é possível ajudar os departamentos de recursos humanos a desenvolver caminhos personalizados e baseados em evidências para melhorar suas políticas e práticas. Nossos dados também incluem as percepções das mulheres sobre formalidade e informalidade nos procedimentos de recrutamento e seleção, acesso a promoção e treinamento e disposição para denunciar assédio no trabalho. O Projeto Sawi continua a coletar novos dados a cada dois anos para gerar insights comparativos de longo prazo.
Implementando políticas e infraestrutura
Embora os dados sejam essenciais, são apenas o ponto de partida. Alcançar a inclusão da força de trabalho ou, na definição do Projeto Sawi, “a participação digna das mulheres” – o que inclui autonomia, segurança e igualdade de tratamento no local de trabalho e fora dele – requer dedicação para impulsionar mudanças no mundo real por meio de novas políticas e práticas. Nosso foco a esse respeito é fazer alterações tangíveis e concretas nos recursos humanos, as quais atendam aos desafios e oportunidades únicos da região Mena, especificamente por meio do envolvimento direto e ativo com os empregadores.
Um exemplo do nosso trabalho nessa área é um programa de microcertificação em recrutamento, retenção e promoção, que treina líderes em ferramentas para desenvolvimento e implementação de políticas inclusivas e culturas organizacionais. Por exemplo, muitas mulheres enfrentam abuso verbal ou físico no trajeto até o trabalho. Como uma mulher trabalhadora da Jordânia nos disse: “As pessoas pensam que não estou mais trabalhando como enfermeira porque me casei, mas a verdade é que é perigoso ir e voltar do hospital. Devo arriscar minha vida para ter renda?”. O programa ajuda os empregadores a entender desafios como esses e a adotar políticas concretas por locais de trabalho livres de assédio, com creche e que estabeleçam oportunidades transparentes de promoção para mulheres. Um grande empregador na região Mena oferece aos funcionários transporte gratuito entre casa e trabalho, algo especialmente valioso em áreas de conflito e instabilidade. O programa também promoveu uma rede transnacional de mais de 500 empresas responsáveis em toda a região.
O Projeto Sawi usa, ainda, um modelo de parceria em que os parceiros em cada país colaboram com os empregadores locais na elaboração de políticas de recursos humanos que sejam sólidas em termos teóricos e viáveis na prática. Até agora, essas parcerias geraram 112 políticas, todas projetadas para serem flexíveis e levarem em consideração os contextos econômicos, sociais, legislativos e culturais únicos de diferentes países e setores do Mena.
Além disso, nós nos envolvemos continuamente com nossos parceiros nacionais por meio de workshops, programas de treinamento e consultas, com o objetivo comum de trabalhar lado a lado com os empregadores locais para facilitar a incorporação de novas políticas e mecanismos de monitoramento e avaliação aos sistemas de RH existentes. Em 2023, nossa equipe fez parcerias com 80 organizações para realizar esse trabalho. Essas iniciativas compartilhadas não apenas ajudam os empregadores a se tornarem mais hábeis na promoção de práticas inclusivas, mas também ampliam a conscientização do ecossistema (incluindo formuladores de políticas, líderes do setor e o poder público) quanto à necessidade de mudança e aos caminhos eficazes para realizá-la.
Unindo universidades em torno de uma pauta comum
A equipe do Projeto Sawi é interdisciplinar e abrange vários países, setores, idiomas e gerações. Aprendemos que resolver desafios sociais intrincados requer diversas perspectivas, conhecimentos e recursos. No entanto, é importante que todos os envolvidos trabalhem com uma pauta comum e que as pessoas e instituições no centro do esforço possam pensar e trabalhar de forma holística.
Nosso envolvimento com o desafio da inclusão das mulheres na força de trabalho se dá pelo ponto de vista de acadêmicas profundamente enraizadas em uma abordagem participativa feminista. Isso nos permite organizar pesquisadores, empregadores e legisladores em torno do direito das mulheres a um trabalho digno e sustentável, garantindo que nossas soluções sejam academicamente sólidas, mas também relevantes e eficazes em termos sociais e práticos. Instituições acadêmicas podem impulsionar de modo concreto o progresso social e econômico, promovendo inovações e servindo como epicentros para mudanças positivas.
A única forma de seguir é a todo vapor. Pretendemos continuar a fortalecer as parcerias existentes para alcançar uma estratégia de longo prazo para monitoramento do progresso, adaptação a crises e melhoria e institucionalização de políticas governamentais e de empregadores. Com isso, esperamos dar o exemplo para que universidades em outras partes do mundo coletem dados essenciais, apoiem a implementação de mudanças e colaborem com outras pessoas em torno de uma pauta comum para proteger os direitos econômicos, políticos e pessoais das mulheres e para capacitá-las para o sucesso.