Revitalizar parques para fortalecer a democracia
O trabalho da Trust for Public Land mostra que áreas verdes podem ser lugares para promover a democracia e o poder das comunidades
Por Geneva Vest, Cary Simmons e Howard Frumkin
Escondido em meio às montanhas Cascade, no estado americano de Washington, o parque Methow contrastava com os quilômetros de trilhas para caminhadas e pomares de árvores frutíferas dessa ecorregião verdejante. Um tempo atrás, o espaço de lazer incorporava a desigualdade da comunidade ao seu redor: tinha um campo de futebol irregular, duas cestas de basquete sem rede e equipamentos de playground degradados. Situado no sul da pequena Wenatchee, uma cidade branca e de classe média, o parque atendia a mais de 4.200 pessoas que viviam a dez minutos de caminhada dele, a maioria trabalhadores rurais mexicanos e mexicanos-americanos.
Em 2014, a Trust for Public Land (TPL), uma organização nacional de conservação que cria parques e protege áreas comuns, foi convidada pela cidade de Wenatchee para envolver os moradores na renovação do parque. Por mais de um ano, tentativas convencionais, como reuniões em ginásios escolares e enquetes online, surtiram pouco resultado. A questão, além do mais, parecia trivial se comparada com preocupações cívicas e de saúde mais amplas da comunidade. Os residentes de South Wenatchee passaram por décadas de falta de investimento na cidade, sub-representação no governo local e ausência de grupos de defesa.
A dinâmica começou a mudar quando a equipe da TPL se comprometeu a ir até a comunidade. O diretor do programa da TPL, Cary Simmons, havia trabalhado no popular Northwest Mariachi Festival, onde conheceu Teresa Zepeda, uma moradora de South Wenatchee. Zepeda o viu “atrapalhado por não saber falar espanhol”, diz ele, e o ajudou com a tradução no evento. Mais tarde, ela faria o elo entre a TPL e os vizinhos do parque Methow.
A TPL trocou as ultrapassadas assembleias por atividades que empregavam os talentos do bairro, como design de piñata e dança folclórica. “Conectamos os membros da comunidade ao parque e entre si”, diz Teresa Bendito, filha de Zepeda e estagiária da TPL no verão de 2018.
Conforme a confiança crescia, também aumentava a contribuição da comunidade, gerando um projeto ambicioso, que excedeu o orçamento inicial de US$ 2 milhões. Em vez de sacrificar comodidades, um grupo de moradores de South Wenatchee compareceu à primeira reunião do conselho municipal para exigir um orçamento maior – e conseguiu. Percebendo que o parque precisaria de protetores após a reforma, os membros – entre eles, Zepeda e Bendito – adotaram o nome de Parque Padrinos (“padrinhos do parque”) e começaram a planejar sua operação e administração.
Os Parque Padrinos se tornaram bem mais que um grupo de “amigos do parque”. Com mais de mil membros em quatro anos, eles servem como uma ponte entre a comunidade latina e instituições de peso. Após a vitória inicial do orçamento, Zepeda diz: “Aprendi que quando falamos, fazemos exigências e conversamos com funcionários públicos, podemos mudar as coisas”. Isso inspirou os Padrinos a fazerem uma parceria com o Fundo da Comunidade Latina de Washington fomentar a ação política na comunidade, gerando um notável aumento de 300% na participação latina nas eleições de meio de mandato de 2018. Então, em 2020, quando a covid atacou com força os trabalhadores rurais latinos, os Padrinos receberam uma doação do sistema hospitalar regional de Wenatchee para uma campanha culturalmente relevante que ajudou a vacinar mais de 3.000 pessoas.
“A construção de relacionamentos e de confiança ajudou quando tivemos de passar por algo que afetou o mundo inteiro”, diz Bendito. “Ver vizinhos e caras novas no parque me faz lembrar de que todo o trabalho valeu a pena.”
A estrutura do consenso
O poder de uma comunidade de moldar seu ambiente social, cultural e físico é a pedra fundamental de uma democracia saudável, mas muitos cidadãos não vislumbram isso. Antes de ser “madrinha” do parque distribuindo equipamentos de proteção individual contra a covid, Beatriz Elias era uma dona de casa que se sentia “em um limbo” e à qual ninguém nunca tinha perguntado “o que gostaria de ver no bairro”. Elias não era a única. Na última década, a dúvida sobre seu valor político, a polarização social e a solidão aumentaram. Uma pesquisa de 2022 descobriu que apenas um em cada quatro americanos concorda que pessoas comuns possam influenciar sistemas políticos. O fato de confiarem menos uns nos outros e de se sentirem mais sós do que há 50 anos corresponde a níveis de polarização que se aproximam de recordes históricos. Toda essa alienação se desdobra em cidades segregadas, que isolam moradores de origens, perspectivas e níveis de renda diferentes.
Isolamento social, polarização e falta de confiança na democracia são experiências difíceis; então confrontar essas tendências pode gerar temor e descrença. No entanto, nos últimos anos, surgiram instituições públicas e privadas para enfrentá-las na causa raiz. A pandemia de covid, coincidindo com um acerto de contas nacional com a discriminação racial, instigou uma legislação sem precedentes que direciona grandes investimentos para comunidades historicamente negligenciadas. A promessa de uma recuperação justa e sustentável, no entanto, depende da capacidade das comunidades mais necessitadas de absorver e empregar esses fundos.
Investimentos tão vastos são um reconhecimento de que reparar o tecido social deve ser uma ação de natureza sistêmica. Profissionais do setor social e filantropos vêm mudando a direção de suas intervenções, privilegiando o poder comunitário a fatores como meio ambiente, saúde e educação. Anthony Iton e Robert Ross, do California Endowment, e o consultor Pritpal Tamber definem o poder da comunidade como “a capacidade de pessoas que enfrentam circunstâncias semelhantes de desenvolver, sustentar e desenvolver uma base organizada em que atuem unidas, por meio de estruturas democráticas, para definir agendas, mudar o discurso público, influenciar quem toma decisões e cultivar relacionamentos contínuos de responsabilidade mútua com tomadores de decisão que mudam os sistemas”. Essa definição implica que toda comunidade tem direito ao poder, mas que barreiras estruturais podem atrapalhar. A questão que se coloca para filantropos, pesquisadores e formuladores de políticas é: quais intervenções removem as barreiras ao poder equitativo da comunidade?
Parques e espaços verdes que permitam o envolvimento e a organização da comunidade são, com frequência, negligenciados como intervenções para construir o poder comunitário. Essas áreas têm um enorme potencial para atender a uma função central: a da infraestrutura social – um conceito emergente, descrito pelo sociólogo Eric Klinenberg como “lugares físicos e organizações que moldam a maneira como as pessoas interagem”. Nessa lista estão não só parques, mas bibliotecas, escolas, barbearias, locais de culto, entre outros. O conceito, acrescenta Klinenberg, inclui ainda “as condições físicas que determinam se o capital social se desenvolve”, servindo como um palco sobre o qual a vida cívica se desenrola, as divisões sociais são superadas e os laços são forjados. Enquanto muitas comunidades desfrutam de infraestrutura social abundante, as marginalizadas enfrentam rotineiramente um déficit de espaços verdes de qualidade. Um estudo da TPL de 2021 revelou que os parques em comunidades majoritariamente negras têm, em média, metade do tamanho daqueles usados por populações predominantemente brancas – e atendem cinco vezes mais pessoas.
Parques, praças, trilhas e reservas não são espaços naturais, como estamos acostumados a pensar, mas manifestações físicas das decisões humanas. Áreas verdes urbanas normalmente são criadas e geridas por governos locais responsáveis por envolver os moradores da região no projeto e na programação, em tese a fim de assimilar a contribuição comunitária para a conformação desses ambientes. No entanto, “envolvimento da comunidade” é uma definição com muitas variações no que diz respeito a parques, e pode abranger diferentes abordagens. Alguns departamentos de parques empregam o modelo de Espectro de Participação Pública da Associação Internacional de Participação Pública (IAP2), que prevê um ciclo contínuo de envolvimento do cidadão: informar, consultar, envolver, colaborar e capacitar. Segundo uma pesquisa feita pela TPL neste ano, nas cem maiores cidades americanas, as agências de parques públicos eram cinco vezes mais propensas a informar o público (“sempre” ou “quase sempre”) do que a empoderá-lo.
O envolvimento superficial da comunidade pode resultar em parques de bairro com comodidades aprimoradas, mas não do tipo que responde às necessidades locais. Por exemplo, uma quadra de tênis onde os moradores prefeririam uma de basquete. O que poderia ter sido um ambiente convidativo para lazer, recreação ativa e autoexpressão – com muitos benefícios sociais e de saúde – pode se tornar uma excrescência subutilizada e mal conservada na comunidade. Portanto, empregamos o termo “envolvimento da comunidade” para significar a prática de construir relacionamentos com populações locais representativas de modo a angariar confiança, legitimar suas vozes, cultivar a colaboração de base e colocar a comunidade no centro, capacitando seus membros para tomar decisões sobre questões que afetam sua vida diária e os ambientes que frequentam.
A experiência da TPL em Wenatchee e em centenas de outros lugares no país revela que os parques podem gerar infraestrutura social, envolvimento e poder comunitário. A inspiração de organizadores de campo e parceiros locais levou à criação do modelo teórico da TPL chamado Common Ground Framework (“estrutura do consenso”, daqui por diante, “a Estrutura”) para construir o poder comunitário por meio da criação e administração de parques e espaços verdes. A Estrutura sugere o desenvolvimento de três objetivos: relações, identidade e poder da comunidade. De modo geral, esses elementos se sucedem: no início, os Padrinos eram um grupo de vizinhos confiantes, que gradualmente formaram uma identidade coletiva como zeladores do parque Methow; essa identidade permitiu a criação de redes sociais e agendas compartilhadas necessárias para que o poder da comunidade se desenvolvesse.
Ainda que ter os parques como catalisadores do poder comunitário seja um conceito novo, não significa que a progressão relacionamentos-identidade-poder da Estrutura seja necessariamente original. Dois conceitos importantes a reforçam: o capital social e o contato intergrupal. O capital social pode ter diferentes acepções; aqui, seguimos a socióloga Nan Lin, que o define como “os recursos embutidos em uma estrutura social que são acessados e/ou mobilizados em ações intencionais”. Esse constructo é formado por recursos tangíveis (por exemplo, uma referência de emprego ou uma dica sobre um apartamento acessível para alugar) e intangíveis (como poder contar com a ajuda de vizinhos durante um desastre natural), ao mesmo tempo que dá ênfase a recursos que fomentam ação. O capital social de ligação surge em grupos unidos, como amigos, familiares e correligionários, e reforça identidades compartilhadas (e, às vezes, exclusivas). A ponte para o capital social, por outro lado, decorre de conexões fora das redes próximas, muitas vezes em diferentes divisões socioeconômicas e étnicas.
Já a teoria do contato intergrupal, proposta pelo psicólogo Gordon Allport em seu livro The Nature of Prejudice (a natureza do preconceito), de 1954, sustenta que o contato entre grupos com identidades distintas pode reduzir o preconceito e promover o convívio, particularmente se esse contato apresentar status igual, cooperação intergrupal, objetivos comuns e apoio de autoridades sociais e institucionais. Mesmo em ambientes não estruturados, como parques e outros espaços públicos, ele pode melhorar as relações intergrupais.
A base da Estrutura reside em um valor insubstituível: as relações pessoais na comunidade. É por meio de interações cotidianas na infraestrutura social que se formam essas relações. Elas podem ser caracterizados fortes ou fracas. As fortes representam vínculos estreitos, e as fracas compreendem interações superficiais (ainda que muitas vezes gratificantes). As relações comunitárias estão intimamente associadas à melhoria do bem-estar, como taxas de mortalidade mais baixas, redução em níveis de depressão, maior segurança e engajamento cívico fortalecido, e são blocos de construção fundamentais para a identidade comunitária.
Vários estudos mostraram que o acesso a espaços verdes promove laços sociais mais fortes, redução da solidão, maior apego ao lugar, mais coesão social e aumenta a confiança da comunidade no governo local. Em um estudo sobre três parques do centro da cidade de Manchester, Reino Unido, a pesquisadora Aleksandra Kaźmierczak descobriu que os residentes que visitam essas áreas regularmente têm 66% mais laços sociais do que aqueles que não. Os parques aumentam não apenas o número, também a diversidade e a força dos elos sociais. São locais ideais para o contato intergrupal; os visitantes podem interagir praticando interesses compartilhados (como esportes, hobbies e atividades recreativas), participando de projetos de administração comunitária (construção de playgrounds, pintura de murais e jardinagem) ou ainda organizando ações coletivas em torno de questões cívicas e políticas.
A identidade da comunidade é um fator fundamental para moldar a qualidade e a funcionalidade dos parques como infraestrutura social. Medida pela coesão social, senso de comunidade, apego ao lugar e senso de propriedade, a identidade pode se articular em torno de geografia compartilhada, religião, ocupação, etnia, entre inúmeros outros fatores, e pode se basear em interações pessoais, virtuais ou uma combinação das duas. No contexto dos parques, nos concentramos na identidade comunitária baseada no local. As comunidades, como os indivíduos, incorporam múltiplas identidades; uma grande força dos parques é que eles intermedeiam a identidade baseada no lugar, que atravessa e pode unir outras dimensões identitárias pessoais.
Parques e espaços verdes de qualidade são potentes impulsionadores da identidade da comunidade. Eles funcionam como cenários para vincular e unir o capital social. Quando amigos e familiares se reúnem em parques, seu sentimento compartilhado de pertencimento e apego ao lugar se intensifica. Uma identidade robusta tem relação com a capacidade de uma comunidade de resistir ao deslocamento da gentrificação verde, na qual os residentes de longa data são deslocados geográfica e culturalmente quando os investimentos em infraestrutura verde levam a valorização imobiliária e mudanças demográficas. Os parques também servem como locais para diversas comunidades convergirem e criarem uma identidade compartilhada. São ambientes particularmente promissores para que imigrantes e recém-chegados sintam-se integrados, expressem sua identidade cultural em público e se reconfortem por meio da construção de uma história compartilhada com os usuários nascidos no local.
A partir da identidade comunitária, os membros podem começar a trabalhar por objetivos comuns, exercendo, por meio de processos democráticos, o seu poder como grupo. Esse poder se mede pela participação cívica e pela eficácia coletiva e é evidenciado em ações como administração dos bens comuns, participação em reuniões públicas, influência em decisões políticas e outros atos de engajamento cívico. Comunidades com uma boa reserva de poder comunitário demonstram mais resiliência diante de crises agudas, como as decorrentes de mudanças climáticas e da pandemia, e podem enfrentar com mais eficácia problemas crônicos como o racismo estrutural. O poder se perpetua em um ciclo virtuoso. Por outro lado, a falta do poder comunitário pode gerar desconfiança, angústia e problemas de saúde.
Pela proximidade e pela sociabilidade que propiciam, os parques podem elevar o engajamento cívico de forma significativa, contrariando a tendência mais ampla de diminuição do capital social. Grupos de gestão ambiental, como o Parque Padrinos, têm sido uma rara exceção ao longo de décadas de declínio da participação cívica, oferecendo um caminho para o voluntariado local. Um estudo liderado por William Yagatich, por exemplo, aponta que os membros de um grupo de gestão ambiental com sede em Maryland tinham 58% mais chances de participar de reuniões públicas do que o americano médio.
A progressão de relacionamentos, identidade e poder não se limita aos parques, podendo ser observada em cenários nos quais se constrói poder, como na organização laboral, e até mesmo em ambientes digitais. Mas, enquanto infraestrutura social, parques e espaços verdes são particularmente oportunos para construir e sustentar o poder da comunidade.
Um atributo de infraestrutura social em que os parques se destacam especialmente é a acessibilidade pública, seja esta física ou psicológica. Ao contrário de outros ambientes construídos, a maioria dos parques tem poucas barreiras à entrada: eles normalmente são gratuitos, ficam perto de casa e não são prescritivos, em termos de uso. Essas características favorecem visitas mais longas e frequentes e oportunidades para relacionamentos comunitários.
Ao contrário de bibliotecas ou museus, os parques propiciam recreação não programada e flexível. Espaços neutros e não estruturados incentivam os vínculos entre os usuários e oferecem configurações para ativação espontânea. Parques projetados para usos variados (como espaço aberto, playground, palco de apresentações e horta comunitária) convidam e incentivam as interações para uma diversidade de visitantes.
Os parques também carregam um significado cultural e político importante. Sua própria natureza de bens comuns compartilhados os transforma em uma espécie de para-raios para opiniões fortes sobre propriedade, direitos e representação. Por exemplo, o questionamento profundo de quais histórias são imortalizadas em estátuas e monumentos de parques desencadeou debates acalorados sobre a representação cultural na esfera pública. Eles são, portanto, uma plataforma para avaliar, debater e reconciliar opiniões públicas, bem como mídia, para que as comunidades transponham suas convicções para ambientes construídos e sociais.
Uma peça de infraestrutura social, para ser viva, requer um corpo organizador que a gerencia e mantenha. No caso de parques, essa função cabe com frequência a departamentos públicos, organizações sem fins lucrativos com base na comunidade local e grupos de administração dessas áreas. A maioria das agências gestoras de parques envolve a comunidade por meio de reuniões públicas, eventos de voluntariado, conselhos consultivos e parcerias com grupos de administração, embora muitas vezes essas práticas não estejam sistematizadas em políticas e não sejam formalmente avaliadas quanto à sua eficácia. Elas, no entanto, são um forte veículo para a implementação de elementos da Estrutura.
A simples presença de um parque não garante seu funcionamento ideal como infraestrutura social, ou mesmo que seja acessível a todos. Para tanto, se requer um projeto voltado para todas as habilidades e identidades. Isso é especialmente verdadeiro quando se trata de comunidades não brancas, imigrantes, pessoas com deficiência e LGBTQ+, que carregam traumas pessoais ou geracionais associados a espaços públicos – muitas vezes projetados por pessoas que não compartilham suas experiências ou valores. Envolver comunidades marginalizadas na concepção, na programação e na administração de áreas verdes é um grande passo para prevenir a exclusão. Mas é importante manter metas realistas; décadas, senão séculos de injustiça não podem ser combatidos apenas com um projeto de parque, não importando quão amplo seja o envolvimento das comunidades. Um projeto bem-sucedido pode, no entanto, colocar as comunidades na direção de um tecido social mais inclusivo e robusto.
Construção de poder comunitário no trabalho
Embora possa parecer uma tarefa hercúlea construir o poder da comunidade por meio da revitalização de parques, há muitos exemplos do sucesso da Estrutura, em contextos variados. Em todo o país, moradores vêm usando os parques para exercer o poder comunitário em ações que vão de garantir políticas de parques favoráveis até proteger terras sagradas e converter infraestrutura cinza em verde. O sucesso reside na sequência da Estrutura: as comunidades constroem relacionamentos com seu ambiente e umas com as outras, se unem em torno de uma identidade baseada no local e em uma causa compartilhada e, finalmente, consolidam e exercem o poder comunitário para melhorar a vida dos moradores locais.
Para algumas comunidades, o acesso ao espaço do parque significa o acesso a recursos necessários para que as comunidades prosperem. O 11th Street Bridge Park, ou Bridge Park, deve ser inaugurado em 2026 na capital americana, Washington. Mas há mais de uma década tem sido uma plataforma para o desenvolvimento econômico e a segurança habitacional de comunidades que historicamente não recebem investimentos. As obras terão início em dezembro de 2024 e transformarão uma ponte desativada sobre o rio Anacostia em um parque de mais de 28 mil metros quadrados. No lado leste da ponte está o Ward 8, um bairro historicamente negro, e, na oeste, Capitol Riverfront, um bairro rico. O Ward 8 já foi um próspero centro econômico e cultural para afro-americanos (Frederick Douglass construiu sua casa nesse lado do Anacostia), mas hoje, após décadas de desinvestimento, de isolamento do centro e projetos de renovação urbana, 46% da população local vive abaixo do nível de pobreza, segundo organização sem fins lucrativos Building Bridges Across the River (Building Bridges).
Nas conversas sobre a transformação da ponte em um parque de excelência, os residentes do Ward 8 expressaram a esperança de que esse investimento não apenas melhorasse o acesso ao espaço verde, mas também trouxesse oportunidades econômicas. O Bridge Park foi liderado pela Building Bridges, que realizou mais de 200 sessões de escuta com residentes dos dois lados da ponte. A organização sem fins lucrativos não se limitou a coletar feedback; ela criou oportunidades para os moradores executarem programas comunitários, como o popular Festival Anual do Rio Anacostia, e para que tivessem a palavra final sobre o projeto do parque.
Residentes e organizações sem fins lucrativos locais transformaram a visão da comunidade sobre o Bridge Park, criando em conjunto um plano de desenvolvimento equitativo (EDP). O EDP condensa os objetivos da comunidade em quatro grandes temas: habitação acessível, desenvolvimento da força de trabalho, preservação de pequenas empresas de propriedade de negros e equidade artística e cultural. Sua implementação resultou em dezenas de iniciativas. Por exemplo, um workshop de liderança comunitária do Bridge Park capacitou mais de cem moradores do Ward 8 nos fundamentos do engajamento cívico e do advocacy. A Building Bridges trabalhou com organizações sem fins lucrativos para estabelecer um pool de compradores de casas, a fim de evitar a gentrificação verde. O programa EDP do qual o vice-presidente sênior Scott Kratz mais se orgulha é o Thrive East of the River, um trabalho de alívio da covid que distribuiu US$ 3 milhões em depósitos diretos para mais de 500 famílias no Ward 8. O sucesso desses programas se deve à confiança e às redes que se formaram entre os residentes ao longo de anos de envolvimento da comunidade.
Na década anterior à instalação do parque, a iniciativa arrecadou mais de US$ 92 milhões apenas para a implementação do EDP – um montante equiparável ao custo real de erguer o parque. Diante desse sucesso, uma pessoa presente a um evento perguntou a Kratz se era mesmo preciso construir o parque. Ao que outro membro da plateia respondeu: “Acho bom que construa! Eu projetei esse parque!”.
A Estrutura é igualmente relevante em áreas rurais e suburbanas onde muitas vezes há abundância de preciosos espaços naturais, mas de acesso negado pela propriedade privada. No Havaí, a propriedade da terra contraria as práticas nativas, que veem ‘āina (terra, ou aquilo que alimenta) como um membro da família, e não algo a ser possuído. Proteger a terra do desenvolvimento desenfreado no Havaí significa proteger a soberania cultural de seu povo.
O viveiro de peixes de Alakoko foi construído na curva do rio Hulē’ia em Kaua’i há mais de 600 anos pelos primeiros habitantes da ilha. Gerações de pessoas trabalharam, brincaram e alimentaram suas comunidades em Alakoko, cultivando uma bacia hidrográfica saudável que nutria o estuário com peixes e algas marinhas. Depois que Alakoko passou a ser propriedade privada, o viveiro foi sufocado por manguezais vermelhos invasores. Mālama Hulē’ia, uma organização de base formada por canoístas que praticavam no rio Hulē’ia, perto do viveiro, teve acesso autorizado em 2018 para limpar gradualmente a área Em apenas alguns anos, a organização recrutou mais de 3.000 voluntários para remover árvores de mangue e plantar espécies nativas de zonas úmidas. Com isso, não estavam apenas ajudando a reequilibrar a bacia, mas também cultivando um relacionamento com ‘āina e kūpuna (anciões e ancestrais) de quem herdaram Alakoko e com a ‘ohana (família) dos cuidadores de hoje.
Quando Alakoko foi posto à venda em 2021, a Mālama Hulē’ia e a TPL organizaram uma campanha para evitar que fosse comprado por incorporadores. Mais de 5.500 membros da comunidade assinaram uma petição e enviaram cartas ao condado de Kaua’i para financiar a compra de Alakoko. Dezenas de voluntários da Mālama Hulē’ia, de crianças a idosos, prestaram depoimento em uma das reuniões na época. O condado recomendou a criação de fundos para a proteção do local, mas, no fim, o Fundo Comunitário Chan Zuckerberg Kaua’i da Fundação Comunitária do Havaí financiou essa finalidade, e os fundos públicos foram realocados para proteger outros locais culturalmente relevantes. A propriedade de Alakoko foi transferida para a Mālama Hulē’ia, em uma transação intermediada pela TPL. O sucesso foi possível quando os membros da comunidade desenvolveram relacionamentos uns com os outros e com ‘āina, fortalecendo sua identidade local e exercendo seu poder coletivo em prol do viveiro.
Agora que Alakoko está nas mãos da comunidade, ela tem “a soberania para decidir seu futuro”, diz Reyna Ramolete Hayashi, gerente de projetos da TPL. O viveiro é uma incubadora educacional do ike Hawai‘i, o conhecimento ancestral havaiano. Parcerias com escolas locais permitem que milhares de alunos aprendam conceitos de ciência, tecnologia, engenharia e matemática por meio da aquicultura tradicional. “Ter a comunidade cuidando deste lugar significa que eles não estão apenas preservando o ike Hawai‘i, mas reaprendendo a sustentabilidade”, diz Enoka Karratti, educadora havaiana.
A soberania alimentar é uma meta especialmente importante para o Havaí, que importa 90% de seus alimentos. “Nosso objetivo é nos alimentarmos espiritual, física e mentalmente”, diz Peleke Flores, diretor de ‘āina e engajamento comunitário da Mālama Hulē’ia. Para atingir esse objetivo, milhares de membros da comunidade continuam a restaurar e manter a bacia hidrográfica em parceria com a organização. Para Flores, é importante aproximar Alakoko o máximo possível do que era tradicionalmente, a fim de que ele seja “uma manifestação física de todas as histórias que nos foram contadas”.
Se Alakoko representa o significado profundo que um único projeto de proteção da terra pode carregar, a campanha Fresno Parks4All mostra como a Estrutura pode operar na escala de uma cidade inteira e até mesmo de um estado. A iniciativa começou como uma resposta a três fatores que a Fresno Building Healthy Communities (Fresno BHC), uma iniciativa do California Endowment, não poderia ignorar.
Primeiro, de 2012 a 2015, Fresno ficou na parte inferior do ParkScore da TPL, um ranking nacional de sistemas de parques para as cem cidades americanas mais populosas. Esses mesmos dados revelaram que a região norte da cidade tinha 4,5 vezes mais áreas verdes por mil residentes do que o sul, onde vive a maior parte da população negra, latina, indígena e hmong da cidade. Em segundo lugar, Fresno estava atualizando seu zoneamento, que projeta o uso da terra para os próximos 20 anos, com grandes implicações para a cidade em que a nova geração cresceria. E, por fim, a Fresno HBC ouviu repetidas vezes dos jovens da região sul que, acima de tudo, eles queriam ter mais e melhores parques.
“Usamos os parques como ponto de partida para envolver os jovens no zoneamento”, diz Sarah Reyes, do California Endowment. Graças aos pagamentos da Fresno BHC, um conselho de jovens do sul assumiu a liderança na criação do Parks4All, uma campanha de advocacy para garantir a incorporação, no zoneamento, de melhorias equitativas em parques.
No ano seguinte, o conselho organizou eventos comunitários intergeracionais em parques, entrevistou frequentadores sobre as melhorias que desejavam e se tornou frequentador regular das reuniões do conselho municipal. A Parks4All planejava veicular anúncios em ônibus que colocavam dados do ParkScore sobre uma foto de uma jovem dividida entre um parque em preto e branco em South Fresno e um parque colorido em North Fresno. No entanto, a administração municipal considerou o anúncio muito político e se recusou a veiculá-lo. A decisão levou a uma forte reação pública e chamou a atenção da mídia nacional, que pressionou a cidade a atualizar seu zoneamento de acordo com as demandas da comunidade, incluindo a atualização do Plano Diretor de Parques de 1989.
Logo após essa vitória, a coalizão Parks4All voltou à ação quando ficou claro que a cidade não estava investindo os recursos segundo o estabelecido no zoneamento. Em 2018, o grupo projetou a Measure P, que determinava uma taxação destinada a levantar US$2 bilhões ao longo de 30 anos, para parques e atividades artísticas. Os líderes juvenis do Parks4All obtiveram 35 mil assinaturas, o suficiente para colocar a Measure P na votação de 2018, recebendo 52% dos votos. O conselho da cidade, no entanto, contestou os resultados, afirmando que um novo tributo proposto por cidadãos precisava de dois terços dos votos.
“Nossa primeira reação foi lamentar; depois fomos à Justiça”, diz Reyes. Em 2021, o caso chegou à Suprema Corte da Califórnia, que decidiu que bastava a maioria simples para a aprovação. A Measure P abriu caminho para que futuras medidas cidadãs na Califórnia fossem aprovadas por maioria simples. A Measure P foi regulamentada e arrecadou US$ 58 milhões em um único ano para financiar, de forma equitativa, atividades ligadas a parques e às artes em Fresno.
O impacto da campanha Parks4All foi muito além de números e dólares. Sandra Celedon, presidente e CEO da Fresno BHC, descreve uma mudança cultural na forma como os moradores da região sul se veem. “Em vez de pedir licença, os jovens agora chegam dizendo: ‘Olha, se você não investir em nossas comunidades, vamos dar um jeito de driblar você’.” Para Celedon, a construção de novos parques não é apenas uma vitória de infraestrutura, mas “uma vitória filosófica”.
Aplicando a Estrutura