Imprimir artigo

Para salvar a democracia, organize recursos

Doadores preocupados com polarizações tóxicas e com o extremismo político deveriam investir na organização comunitária.

Por Loren McArthur

(Ilustração por Laura Liedo)

A democracia americana está em crise. A confiança no governo vem despencando há décadas; um alarmante número de americanos – em especial os jovens – já não acredita que a democracia seja a melhor forma de governo; e o extremismo e a violência política estão em ascensão.

A crise pode parecer intratável, com suas raízes arraigadas em nossas instituições, sistema econômico e cultura política. Se não há soluções fáceis para consertar a nossa democracia, um investimento filantrópico de grande porte na organização comunitária poderia combater o perigoso tribalismo que contamina a vida pública, reduzir o isolamento social que está alimentando o extremismo político e revitalizar uma cultura de democracia de base nos Estados Unidos.

Contudo, para realizar a promessa democrática da organização comunitária, os doadores precisam deixar de ver a prática meramente como um instrumento para promover seus objetivos políticos e táticos e valorizar o papel fundamental que ela desempenha no coração da organização política americana. A organização comunitária ensina às pessoas as competências da democracia: como construir e sustentar organizações junto com outros indivíduos, ouvir pessoas com diferentes perspectivas, criar consensos, compreender onde reside o poder em nossas instituições políticas e econômicas e como negociar com ele. Em um momento no qual as pessoas perderam a confiança nas instituições democráticas, uma boa atividade organizativa confere a elas um sentido de agenciamento e uma crença em sua capacidade de influenciar e reformar essas instituições.

 

Construção de Relações Presenciais

 

No início da década de 2000, passei oito anos trabalhando como organizador comunitário na região do Vale Merrimack, em Massachusetts, polo importante da indústria têxtil nos Estados Unidos durante mais de um século. Foi em uma das principais cidades da região, Lawrence, que aconteceu a famosa greve Pão e Rosas (Bread and Roses), em 1912, durante a qual dezenas de milhares de trabalhadores imigrantes de mais de 50 países saíram às ruas para obter melhores salários e condições de trabalho. Atuando com sindicatos e comunidades religiosas, tanto progressistas quanto conservadoras, organizei campanhas para combater o fechamento de fábricas, melhorar as condições de trabalho para trabalhadores imigrantes e criar moradias a preços acessíveis.

Minha experiência como organizador rendeu-me insights sobre como deve parecer uma democracia realmente pluralista e multirracial e sobre o que é necessário para a sua criação e manutenção: um compromisso radical com a construção de relações alicerçadas em interesses e valores compartilhados, apesar das diferenças reais e importantes em identidades, políticas e sistemas de crenças. O tipo de prática democrática de que necessitamos numa sociedade heterogênea não evita as diferenças; em vez disso, busca discernir e ativar os valores comuns em nossas diferentes tradições e histórias.

Durante os últimos 20 anos, os organizadores comunitários têm modificado sua abordagem para a construção do poder. Enquanto as organizações que os organizadores comunitários instituíram no século 20 foram erguidas em nível municipal, no final do século a maioria das grandes cidades dos Estados Unidos estava desgastada e muitas delas haviam falido – o poder e os recursos já não estavam lá. Grupos organizadores começaram a focalizar modelos para construir um poder governante em nível estadual. Redes de ação também começaram a expandir sua presença dentro do governo federal e a participar de coalizões maiores a fim de influenciar a política nacional. Grupos passaram a desenvolver programas de engajamento do eleitor e estabeleceram organizações de bem-estar social sem fins lucrativos e com isenção de taxações pela lei americana) com o propósito de obter engajamento em atividades e lobbies políticos.

À medida que os organizadores foram se tornando mais sofisticados na construção de poder nos níveis estadual e nacional, o financiamento filantrópico para ações organizativas também aumentou significativamente. Dados sobre fundações da Candid – embora incompletos – indicam que elas investiram US$ 227 milhões em ações organizativas de comunidades em 2008, ano em que deixei meu trabalho com organizações no Vale Merrimack. Em 2020, esse número explodiu, passando a US$ 1,17 bilhão. Nesse mesmo período, o financiamento visando à educação e ao registro do eleitor disparou, passando de meros US$ 32 milhões em 2008 para US$ 515 milhões em 2020. Esses dados nem chegam a incluir todos os financiamentos que os grupos organizadores recebem através de suas organizações, cujo número está em expansão.

O impulso em investimentos de doadores tem ajudado grupos organizadores a expandir seu poder. Não obstante, em importantes aspectos, o investimento em organização por parte da filantropia também tem se mostrado contraído e restritivo. A maior parte dos doadores adota uma abordagem transacional para as ações organizativas na comunidade, tendo tal abordagem como tática para a promoção de políticas ou de objetivos políticos. Eles deixam de valorizar devidamente o papel da organização no fomento de normas e práticas democráticas e no fortalecimento da confiança social – pré-condições importantes para uma democracia multirracial funcional e equitativa.

As ações organizativas em comunidades, ancoradas na construção de relações presenciais, atuam em sentido contrário ao da polarização tóxica que está solapando a nossa democracia. Um grande número de pesquisas em ciências sociais mostra que o contato intergrupal reduz o preconceito entre diferentes grupos. Essas ações também criam a possibilidade de empatia e conexão a atravessar divisões e a oportunidade de criar narrativas novas e unificadoras, além de identidades coletivas mais expansivas.

O papel das ações organizativas no fomento a uma cultura de democracia de base propõe uma ampla perspectiva de financiamento que dissemine recursos de forma liberal pelo país. Ainda assim, a distribuição de recursos para ações organizativas tem sido geograficamente desigual. Grupos em estados e grandes cidades que são campos de batalha podem desfrutar do acesso a importantes correntes de financiamento, enquanto enormes faixas do restante do país são deixadas com escassos recursos para o tipo de engajamento democrático que a organização comunitária proporciona.

O repentino aumento do volume em dinheiro vindo da filantropia institucional traz outras consequências inesperadas. Grupos voltados às ações organizativas ficam tentados a buscar grandes investimentos de ricos doadores, em vez de se envolver no árduo trabalho preliminar de angariar fundos no âmbito de suas comunidades. Os organizadores sentem-se pressionados a desenvolver campanhas de curto prazo que produzam os triunfos ou resultados eleitorais nas políticas concretas que os doadores almejam, negligenciando esforços de longo prazo para aprofundar suas bases de adesão e desenvolver novas lideranças.

 

Cinco Recomendações para Financiadores

 

Como os doadores podem apoiar a ação organizativa de um modo que os capacite a realizar plenamente a sua promessa democrática? Tenho cinco recomendações.

Financiar geografias transversalmente. | Os doadores têm de reconhecer que as ações organizativas são um componente vital da cultura democrática da nação e financiar liberalmente todas as geografias, em vez de limitar seu investimento a regiões que levam em conta apenas estratégias políticas de curto prazo. Temos que alimentar uma aceitação de normas e práticas democráticas por toda a parte, incluindo – o que talvez seja o mais importante – os lugares onde crenças antidemocráticas estejam criando raízes.

Ser agnóstico quanto a temas. | Os financiadores devem proporcionar apoio incondicional para que as comunidades se organizem em torno de temas que elas definam como os mais importantes, em vez de condicionar investimentos ao engajamento do beneficiário em áreas de políticas específicas. Se a organização comunitária deve ser um lugar onde as pessoas engajam em ações democráticas, essas mesmas pessoas devem ter a capacidade de escolher sobre quais temas vão se debruçar.

Apoiar ações organizativas que atravessem fronteiras raciais e ideológicas. | Os financiadores deveriam investir em grupos que estejam criando pontos comuns entre bases eleitorais que a cultura política dominante busca dividir: comunidades brancas trabalhadoras e de classe média e comunidades não brancas; comunidades urbana e rural; bases eleitorais ideologicamente progressistas e conservadoras; e assim por diante.

Investir em grupos que estejam construindo uma base profunda de líderes e membros ativos e que sejam responsáveis por ela. | A fim de apoiar organizações comunitárias que promovam uma participação cívica significativa, os doadores deveriam investir em grupos que tenham priorizado a construção de bases – isto é, o trabalho de construir um eleitorado maciço de líderes e membros ativos e engajados —, ainda que tais compromissos resultem em menos progresso imediato visando resultados políticos. Os doadores também têm de olhar para além das organizações estabelecidas a fim de apoiar esforços nascentes em ações organizativas que ainda não contem com engajamento institucionalizado, mas estejam gerando engajamento de base significativo.

Alimentar a independência financeira de grupos organizadores. | Os líderes de organizações sem fins lucrativos têm clamado para que as fundações proporcionem um apoio mais generalizado às ações organizativas – o que se justifica, já que o financiamento sem restrições possibilita maior flexibilidade nos programas e estratégia desses grupos. Contudo, proporcionar apoio direcionado para que eles construam a sua independência financeira é algo capaz de exercer um impacto ainda maior. Ao amparar grupos organizadores no desenvolvimento de programas de anuidades, campanhas de captação de recursos de base e estratégias de receitas obtidas, os financiadores podem ajudá-los a reduzir sua dependência da filantropia grande, a estabelecer uma responsabilidade comunitária mais autêntica e a se tornarem instituições governadas de forma realmente democrática.

Os doadores comumente se mostram hesitantes em investir em ações organizativas de base em razão do custo de fazer esse trabalho em larga escala. Porém, não deveríamos pautar o trabalho de revitalizar a nossa democracia por uma mentalidade de escassez. Existe uma enorme riqueza a ser mobilizada: considere que os doadores gastaram colossais US$ 14,4 bilhões apenas nas eleições de 2020. Um investimento gigante em organização comunitária para revitalizar nosso compromisso com as normas e práticas democráticas e fortalecer a solidariedade social são um grande avanço rumo à construção da resiliência que precisamos para sobreviver às ameaças que pairam diante de nós, bem como das capacidades criativas de que necessitamos para garantir um futuro justo e próspero.

 

O AUTOR

Loren McArthur é diretor sênior na Arabella Advisors, na qual assessora filantropos em políticas e estratégias para transformação de sistemas. Antes disso, conduzia um departamento de  engajamento cívico na UnidoUS, a maior organização nacional de defesa da comunidade hispânica dos Estados Unidos, e foi o principal organizador do Merrimack Valley Project, em  Massachusetts.



Newsletter

Newsletter

Pular para o conteúdo