O dilema entre confiança e escala nos negócios sociais
Mundo afora, a regulamentação do setor se divide a partir de visões opostas sobre lucro; Nossa análise mostra como as normas sobre sua distribuição interferem na confiabilidade das empresas ou em seu crescimento
Por Dana Brakman Reiser
Empresas sociais se propõem a utilizar métodos empresariais para resolver problemas sociais. Como qualquer companhia, elas precisam tanto de capital quanto de confiança para atingir seu objetivo. Conciliar essa dupla necessidade, no entanto, pode ser particularmente difícil no caso de uma empresa social. Manter operações comerciais e ter acesso a mercados de investimento pode até garantir recursos para ampliar a escala da organização e seu impacto social, mas, em contrapartida, pode suscitar desconfiança de que se vão priorizar interesses financeiros próprios em detrimento do objeto social. É preciso afastar esse medo, convencendo investidores, trabalhadores, consumidores e o público em geral de que seu compromisso social é genuíno e sólido.
Marcos regulatórios ajudam a demonstrar que empresas sociais são confiáveis.2 Leis que regem empreendimentos com ou sem fins lucrativos servem a esse papel quando comportam a missão social e os métodos empresariais de um negócio social. Para os casos em que isso não acontece, há à disposição das empresas sociais um crescente rol de formas jurídicas e certificações específicas para essa necessidade. Podem ser formas jurídicas criadas especificamente por um país, beneficiando apenas entidades sob sua jurisdição/certificações desenhadas pelo poder público ou por entes privados; ou selos que identifiquem um empreendimento como empresa social, algo independente da estrutura jurídica e com aplicação supranacional.
Tanto um quanto outro modelo jurídico pode ser aplicado para identificar uma empresa social, demarcando o espaço apropriado para esse tipo de organização e conferindo idoneidade a entidades neles enquadradas.3 Esses identificadores permitem que diferentes públicos – trabalhadores, consumidores, investidores e autoridades regulatórias – reconheçam essas empresas no mercado, seja por seu talento, seus recursos ou seu compromisso social. No entanto, algumas das técnicas das quais elas se valem para gerar confiança também limitarão seu acesso ao capital, produzindo o velho conflito entre confiabilidade e escala.
Com um estudo global, nossa equipe de pesquisa detectou uma clara dicotomia no enfrentamento desse dilema jurídico, tanto por parte do poder público como por entes privados.4 A ampla variedade atual de identificadores de empresas sociais se divide em dois grupos: estruturas que impõem limites à distribuição de lucros ou ativos a investidores ou indivíduos ligados às entidades qualificadas e aquelas que não o fazem.
A Bélgica é um exemplo da primeira abordagem. Lá, empresas sociais certificadas no plano federal podem distribuir lucros a investidores, limitada até a taxa máxima de retorno (de 6% atualmente). Na dissolução, o investidor pode receber, no máximo, o total de contribuições feitas; qualquer outro lucro residual deve permanecer investido no objeto social da empresa social que esteja sendo dissolvida.
O segundo grupo não prevê limite de distribuição entre os critérios de qualificação. No modelo colombiano de Beneficio e Interés Colectivo (BIC, benefício e lucro coletivo), por exemplo, não há teto. Empresas classificadas como BIC podem distribuir lucros e ativos como qualquer companhia.
Limites à distribuição, como os da Bélgica, sinalizam idoneidade. Tetos à distribuição de lucros operacionais e residuais diminuem a capacidade dos stakeholders – e de investidores – de se apropriar de lucros. Com isso, se reduziria também o incentivo a desviar da missão social da empresa. Ao mesmo tempo, limites reduzem o atrativo financeiro do investimento, diminuindo o acesso ao capital privado. A capacidade de crescimento da empresa fica sujeita a tal limitação. No modelo da Colômbia, o custo acaba sendo alto demais: ao priorizar o apelo ao investidor, promove-se a formação de capital em detrimento da legitimidade maior conferida por alternativas com limites à distribuição. Os entes classificadores, assim como as empresas que eles buscam promover, enfrentam escolhas difíceis ao tentar conciliar confiança e escala, usando um desses dois caminhos bem distintos.
Distribuir excedentes ou não?
Limites à distribuição variam muito. Quando estritos, vetam totalmente a distribuição de lucros da atividade e do patrimônio residual. Em diversas partes do mundo, essa é a única modalidade para o modelo não rentável ou filantrópico. Organizações sem fins lucrativos (ou instituições de caridade, dependendo do lugar) não podem distribuir dividendos e devem reinvestir todo o lucro na organização e em sua missão. Se dissolvidas, devem transferir os ativos remanescentes a entidades sujeitas a restrições idênticas, garantindo que sejam destinados a atividades sem fins lucrativos ou filantrópicas in aeternum. Como explicou o jurista Henry Hansmann décadas atrás, essa proibição gera confiança. É uma espécie de garantia, para doadores e patrocinadores, de que sua contribuição será destinada à missão da organização – e não desviada para ganhos individuais.5
Financiadores, funcionários, clientes e o público em geral requerem a garantia de que é possível contar com o compromisso assumido por empresas sociais. A confiança, no entanto, é só um dos ingredientes centrais para uma empresa social. Ela também busca capital para crescer, expandir operações e multiplicar o impacto. Formas jurídicas específicas e selos de certificação resolvem esse conflito de duas maneiras: impondo restrições parciais à distribuição, como no caso da empresa social certificada da Bélgica, ou eliminando os limites, como nas BICs da Colômbia. São duas abordagens bastante distintas na hora de promover tanto confiança quanto crescimento.
Modelos com restrição parcial permitem que entidades qualificadas distribuam lucros ou bens – em algum grau ou em certos momentos. Algumas certificações e formas jurídicas transmitem com mais força a idoneidade das empresas em questão ao impor restrições severas, ainda que não absolutas. Já outras adotam limitações mais modestas e permitem uma distribuição maior para incentivar o investimento. Modelos que seguem essa rota intermediária, no entanto, rechaçam a distribuição irrestrita de lucros e bens, que é prerrogativa de empresas com fins de lucro.
Tetos de dividendos, como os da Bélgica, são um mecanismo popular de limitação parcial. Empresas pagam dividendos para distribuir lucros operacionais com investidores. Esse retorno financeiro, obtido enquanto a empresa está em atividade (e não só em caso de dissolução), cria um incentivo para o investidor. Em atividades rentáveis, dirigentes têm considerável poder para decidir se devem ou não pagar dividendos e em que montante – desde que não ameacem a viabilidade da empresa. Tetos para dividendos restringem esse poder, ao limitar a parcela dos lucros que pode ser distribuída entre investidores da empresa, independentemente de sua rentabilidade. Podem, portanto, obstruir o acesso da empresa social ao capital, mas o fazem a fim de reforçar sua missão.
Impor limites à distribuição de dividendos altera o equilíbrio entre confiança e escala. Preocupada com o acesso a capital, a Itália estipulou um limite relativamente alto para dividendos pagos por empresas sociais em 2017: 50% do lucro ou excedente operacional anual. No Reino Unido, o ente regulador das CICs (Community Interest Companies) afrouxou as normas relativas a dividendos duas vezes em cinco anos (em 2010 e 2014) com o intuito expresso de despertar o interesse de investidores. Hoje, o teto das CICs é de 35% do lucro anual, mesmo patamar aplicado a empresas com a certificação dinamarquesa de empresa social, a RSV.
Exigências de reinvestimento também limitam a distribuição de lucros operacionais, embora de forma indireta. Exigir que a empresa social reinvista parte expressiva do excedente ou lucro impede que tal parcela seja destinada a investidores. Nesse quesito, as normas variam muito. Na Romênia, uma empresa classificada como social precisa destinar no mínimo 70% do lucro ou excedente financeiro a atividades ligadas a seu objeto social. Na França, empresas registradas como de economia social e solidária (ESS) devem garantir que 50% dos lucros sejam reinvestidos ou destinados a reservas; certificações privadas do Social Enterprise Mark (SEM) na Irlanda e no Reino Unido e da Social Traders da Austrália, por exemplo, exigem um predomínio de gastos sociais.6 Já em Singapura, o principal marco regulatório de empresas sociais destina obrigatoriamente só 20% dos recursos a atividades que tragam impacto social.
A exigência de reinvestimento traz confiança ao transformar compromissos abstratos em porcentagens concretas, mas também impõe desafios de concepção e medição. Para que haja confiança, critérios de reinvestimento devem ser claros e relevantes. O requisito francês de carryover, ou “reserva”, é facilmente observado com o uso de normas contábeis comuns, mas a orientação sobre o uso dos recursos depende de outros atributos da classificação ESS. Certificações que se ancoram nos recursos dedicados a um objeto ou propósito social devem, então, definir os limites entre despesas sociais e de outra natureza e estabelecer parâmetros apropriados. Para determinar se uma empresa dedica pelo menos 50% do lucro obtido no ano anterior para cumprir seu objeto social, a Social Traders criou indicadores condizentes com diferentes modelos de impacto. Para empresas sociais que trabalham com inserção no mercado de trabalho – ou seja, cuja atividade envolva basicamente a capacitação profissional de um público-alvo –, custos com pessoal pesam mais; já para as que busquem ter impacto com a doação de lucros, o tamanho da contribuição determina a conformidade.7
Asset locks são travas que podem dar proteção adicional contra a malversação de recursos de empresas sociais – como no regime belga. No caso de dissolução da empresa, quaisquer ativos remanescentes após a satisfação de obrigações perante credores devem ser obrigatoriamente repassados a entidades cujo objeto social é semelhante ao da empresa social sendo extinta. Como o nome sugere, esse “lock”, ou “trava”, mantém os recursos no setor social – embora também impeça em definitivo que eles sejam acessados por partes privadas, incluídos aí potenciais investidores que, em uma empresa sujeita a asset locks, têm seu potencial de retorno severamente restringido. Adotar um mecanismo desses manda dois sinais igualmente fortes: que o incentivo a qualquer desvio da missão social será minimizado e que o retorno de investidores será limitado.
Mesmo em sistemas que restringem parcialmente a distribuição, asset locks não são universais. A obrigatoriedade de reinvestimento pelo regime de empresas sociais do Cazaquistão, pela certificação de empresas sociais de Abu Dhabi (nos Emirados Árabes Unidos) e pelo selo privado Social Traders na Austrália não conta com essas travas como complemento. Essas certificações preveem a possibilidade de retorno financeiro para investidores em caso de dissolução, embora restrinjam a distribuição de excedentes operacionais. Mas são a exceção. A maioria dos modelos de restrição parcial combina tetos de distribuição ou a obrigatoriedade de reinvestimento com asset locks, como no caso belga. Apesar do risco de afugentar investidores, entraves pesados à distribuição de excedentes parecem indispensáveis para reguladores desse grupo.
Sem amarras
Outras formas jurídicas e certificações veem o valor de gerar confiança e o de promover o crescimento de forma bem diferente. Assim como a certificação colombiana BIC, esses modelos rejeitam qualquer restrição à distribuição de excedentes. O entendimento é o de que qualquer restrição – incluindo tetos de distribuição de dividendos, obrigatoriedade de reinvestimento ou asset locks – configuraria um risco inadmissível para a formação de capital, independentemente de gerar confiabilidade.
A disseminação dessa visão desimpedida da empresa social pode ser atribuída em parte à B Lab – a organização sem fins lucrativos sediada nos Estados Unidos cuja missão se traduz por algo como “usar o poder da atividade empresarial para promover o bem coletivo”. O selo da B Lab, o B Corp, é destinado a “empresas com fins lucrativos interessadas em considerar outros stakeholders e valores ou outra missão além de dar lucro para seus investidores”.8 Empresas com o selo B Corp podem continuar distribuindo excedentes ou ativos como qualquer empresa rentável. Para ter a certificação, no entanto, deve cumprir uma série de requisitos ligados a sua atuação e a seu propósito – segundo a B Impact Assessment, a avaliação de impacto da B Lab –, bem como atender a critérios de governança e transparência.
Com suas filiais regionais, como o Sistema B na América Latina, a B Lab tem defendido que governos no mundo todo adotem sistemas alinhados com seu ideal de empresa social livre de restrições – com considerável sucesso. O selo B Corp e campanhas maiores de reforma do arcabouço jurídico têm contribuído para o surgimento de várias outras formas jurídicas e certificações que seguem esse padrão.9 Além das BICs da Colômbia e do Peru, a “benefit company” na província de British Columbia, no Canadá, a “public benefit corporation” (PBC) do estado americano de Delaware e a categoria “benefit corporation”, hoje presente na maioria dos outros estados americanos, já adotam elementos do modelo da B Lab – entre eles, a liberdade para a distribuição de lucros.
Mas nem sempre a ausência de restrições pode ser atribuída à influência da B Lab. Em resposta a pressões internas, certificações na China evoluíram no sentido de rejeitar uniformemente qualquer entrave à distribuição de lucros.
Entre 2015 e 2018, quatro cidades chinesas formalizaram o modelo de empresas sociais, seguindo diferentes abordagens. Pequim e Chengdu não impuseram nenhuma restrição; já as certificações de Shenzhen e Shunde vieram com a obrigatoriedade expressa de reinvestimento. No caso de Shunde, também há um mecanismo de asset lock. Hoje, nenhuma dessas restrições permanece em vigor. Foram abandonadas por entidades certificadoras em Shenzhen e Shunde durante o processo inicial de revisão dos critérios, para flexibilizar as normas e torná-las mais compatíveis com o contexto chinês.
No momento, Taiwan está às voltas com o dilema, considerando tanto propostas para um regime de “empresa de interesse público”, que restringiria a distribuição de lucros, quanto um de “empresa de benefício”, que não imporia tais limites.
Confiança e escala
A Escolha por mais ou menos restrições a lucros, na elaboração de formas jurídicas e certificações, reflete a visão de cada ente sobre o equilíbrio entre confiança e escala. Restringir parcialmente a distribuição ajuda a persuadir investidores, consumidores, funcionários e reguladores de que uma empresa social vai trabalhar por seu objetivo social. O ganho vai depender da intensidade dos limites ao pagamento de dividendos e da obrigatoriedade de reinvestimento – e se a eles se somam mecanismos de asset lock. O universo de investidores dispostos a fazer o sacrifício exigido para bancar empresas sociais certificadas na Bélgica pode não ser tão grande quanto o dos dispostos a investir em instrumentos tradicionais, mas limitar a capacidade de enriquecimento de investidores sinaliza àqueles que optam por investir que sua confiança não será traída. Além disso, ao investir, esses indivíduos, por sua vez, indicam seu próprio compromisso com a missão social da empresa para outros stakeholders importantes.
Modelos sem restrições, como o colombiano BIC, tentam equilibrar de outra maneira a confiança e a escala. Governos e atores privados que concebem essas formas jurídicas e certificações reconhecem que restrições à distribuição de excedentes podem fortalecer a confiança, mas priorizam o crescimento. Empresas sociais são incumbidas de solucionar desafios sociais imensos e renitentes. A distribuição irrestrita de lucros permite a plena participação de investidores e, por conseguinte, uma maior escala para financiar essas ambiciosas missões sociais.
Restringir a distribuição – ainda que parcialmente – reduz o poder do investimento na formação de capital. A meia-volta nas certificações de Shenzhen e Shunde e a escalada no teto de dividendos do CIC Regulator refletem essa realidade. Para não tolher o crescimento, modelos sem restrições apostam em outros mecanismos para garantir confiança.
Convergência entre modelos
Pondo de lado o dilema sobre restringir ou não a distribuição de lucros, no amplo universo de jurisdições que estudamos, vimos uma grande convergência em relação a outros aspectos importantes. Embora cada modelo descrito por nossa equipe de especialistas reflita o ambiente cultural, político e jurídico para o qual foi adaptado,10 quase todos se baseiam em uma combinação de requisitos ligados ao propósito da atividade, ao modelo de governança e à transparência para definir a categoria da empresa social.
Requisitos de propósito ou programa limitam as empresas certificadas a atividades ou setores centrados em impacto social. Certos modelos trabalham com um amplo universo de atividades permitidas, sem discriminar o setor. É o caso da empresa social certificada na Bélgica, da Sociedad BIC no Peru e do selo de fornecedor de impacto da Ākina na Nova Zelândia – cuja lista de propósitos sociais ou ambientais aceitos é vasta.11 No Reino Unido, para se enquadrar no regime das CICs, a empresa precisa apenas passar em um “teste de interesse comunitário”; ou seja, basta que “uma pessoa razoável considere que [as atividades da empresa] estejam sendo realizadas em benefício da comunidade”.12
Outros modelos são mais estritos quanto a propósitos ou programas aptos. A colombiana BIC, por exemplo, sofreu ajustes logo no início para exigir que toda empresa certificada indique, em seus estatutos, como seu modelo de negócios e práticas ambientais e de trabalho vão contribuir para o bem social. Nos casos mais extremos, o modelo aceita apenas entidades com uma só finalidade, caso da cooperativa social na Hungria, voltada apenas a ações de inserção no mercado de trabalho. Restringir o acesso de organizações a formas jurídicas ou a selos de empresa social com base em propósitos ou programas considerados aptos garante ao público que as certificadas estarão de fato comprometidas com metas sociais.
Diretrizes de governança encarregam indivíduos da própria empresa social de proteger sua missão, reforçando os controles internamente. A certificação de empresa social na Bélgica, por exemplo, é concedida apenas a cooperativas – e aposta em um esquema democrático de governança para garantir que as empresas honrem seu compromisso social. Regimes de cooperativa social presentes em vários outros pontos da Europa também contam com membros, beneficiários ou ambos para atestar que empresas certificadas ajam com legitimidade. A certificação italiana de empresa social exige a criação de um conselho supervisor que exerça esse papel de governança; no caso de empresas sociais de grande porte, seus stakeholders podem eleger um dos membros do conselho. O CIC no Reino Unido, a RSV na Dinamarca e o nível ouro do SEM exigem a participação de partes interessadas na governança, embora sem estipular estruturas ou processos específicos.
Nos Estados Unidos, novos formatos de empresa com fins específicos se baseiam em diretrizes de governança. A PBC de Delaware impõe três obrigações a fiduciários de empresas enquadradas no regime: equilibrar “interesses pecuniários de acionistas, interesses daqueles afetados materialmente pela conduta da corporação e benefícios públicos especificados em seus documentos de incorporação”.13 Estatutos de empresas similares em outros estados americanos exigem que seus diretores levem em conta uma série de impactos em stakeholders em seus atos; na Colômbia, diretores de BICs devem considerar o benefício e interesse coletivos ao tomar decisões.
Empresas sociais prometem empunhar ferramentas do meio corporativo para enfrentar grandes desafios do mundo. Para honrar essa promessa, precisam conquistar a confiança e atrair recursos de uma série de agentes. Para isso, é preciso haver garantias. Formas jurídicas específicas e certificações especiais podem ajudar.
Nos Estados Unidos, investidores de PBCs e de benefit corporations podem recorrer à Justiça para que diretores dessas empresas cumpram seus deveres administrativos; já na Colômbia, tanto acionistas quanto qualquer pessoa que se sinta lesada por uma BIC podem pedir que o governo revogue a certificação de empresas que descumpram as normas. Para qualquer tipo de empresa em Delaware, alterações nos documentos de incorporação devem ser aprovadas pela maioria dos acionistas, e isso se replica nas PBCs – inclusive quanto a mudanças no propósito de benefício público consagrado nesse documento. Leis que regem benefit corporations em outros estados americanos também exigem que mudanças no objeto da empresa sejam aprovadas por acionistas. A adoção de qualquer um dos dois regimes satisfaz aos critérios de governança da B Lab para empresas americanas que almejem o selo B Corp. As distintas soluções de governança têm um único propósito: garantir que entidades qualificadas cumpram sua missão social.
Requisitos de publicidade se valem da transparência para reforçar a confiança. Exigir a divulgação pública de informações garante que acionistas, stakeholders, reguladores ou o público em geral acompanhem e fiscalizem as atividades da empresa social. Na Colômbia, acionistas devem não só receber, mas também aprovar relatórios anuais de impacto de BICs. Em outros lugares, o acesso a informes varia consideravelmente. Benefit companies na Colúmbia Britânica e a maioria das benefit corporations de estados americanos devem publicar relatórios anuais informando como conduzem suas atividades e buscam o benefício público. PBCs de Delaware devem produzir informes a cada dois anos, mas só são obrigadas a entregá-los aos acionistas. Já a CIC do Reino Unido e RSVs da Dinamarca apresentam informes anuais a entes reguladores, o que facilita o acesso público.
Curiosamente, poucos desses regimes incluem mecanismos de fiscalização ou mesmo penalidades em caso de descumprimento dessas normas – o que, segundo evidências iniciais, é frequente.14 Além disso, não há consenso sobre indicadores de desempenho. Incorporar transparência aos modelos de empresa social só vai promover a confiança quando houver acesso a informações relevantes e quando o respeito à norma for generalizado.
Tipos de empresas e certificações especiais definem categorias jurídicas nas quais potenciais fontes de capital, stakeholders e o público em geral podem confiar, aumentando o acesso a recursos e o apoio da sociedade – indispensáveis para o sucesso da empresa social. Adotar diretrizes ligadas a propósito, governança e transparência nesses modelos contribui para a confiabilidade dessa atividade. Esses critérios se repetem em países de diferentes rendas, ordenamentos jurídicos e independentemente de que os modelos que os impõem restrinjam ou não a distribuição de lucro.
Incentivos à empresa social
Além do apoio indireto conferido pela classificação como empresa social, esses negócios também podem receber ajuda do Estado.15 Formas jurídicas e certificações especiais transmitem a terceiros tranquilidade para investir, trabalhar, fazer negócios ou interagir com a empresa social. Outra forma de apoio, mais direto, vem de subsídios públicos ou benefícios para aumentar recursos ou reduzir custos da empresa social. Governos do mundo todo já testam essa abordagem.
Benefícios fiscais podem ir para a própria empresa social ou para seus apoiadores. Na Suíça, são limitados e concedidos à organização em si. Empresas dedicadas a “propósitos idealistas” (não rentáveis) e cujo excedente financeiro seja baixo são isentas de tributação sobre lucros de até US$ 20 mil aproximadamente. O modelo de empresa de interesse público proposto por Taiwan prevê alíquotas reduzidas àquelas que se qualifiquem. De 2016 a 2022, o município americano de Filadélfia ofereceu a 50 detentoras do selo B Corp (em anos posteriores, a 75) um abatimento de US$ 4.000 no Imposto de Renda (IR).16
Em outros experimentos, o benefício fiscal vai para quem investe nas empresas sociais. Atualmente, na Bélgica, os primeiros € 200 de juros recebidos por investidores de certas empresas sociais certificadas são isentos de IR. Investimentos em títulos de renda fixa ou ações em CICs do Reino Unido foram incluídos no esquema Social Investment Tax Relief (SITR), criado pelo país em 2014. Com o SITR, o contribuinte podia abater 30% do custo de investimentos qualificados do IR devido e não devia tributos sobre ganhos de capital resultantes. Embora o Parlamento britânico tenha estendido o regime até abril de 2023 (além do previsto originalmente), o esquema não foi renovado.17
Preferência em compras é uma forma de dar a empresas sociais tanto suporte material quanto prova de conceito, formando uma base de clientes para seus produtos ou serviços. Cooperativas sociais europeias e RSVs dinamarquesas podem receber tratamento preferencial à luz das diretrizes de compras adotadas por Estados-membros da União Europeia. A Romênia permite que autoridades públicas reservem contratos para empresas classificadas como sociais. Nos Estados Unidos, dois condados dão preferência em licitações a propostas recebidas de benefit corporations ou de B Corps.18 A Colômbia pretende priorizar BICs em processos licitatórios, mas só como critério de desempate. A Social Traders e a Ākina criaram seus selos privados com a meta expressa de garantir prioridade a empresas sociais em processos de compras. Seus esquemas de empresa social e fornecedores de impacto certificados foram feitos para identificar empresas aptas a receber tratamento preferencial na Austrália e na Nova Zelândia, respectivamente.
Os incentivos para empresas sociais estão só começando a ser testados. Até aqui, sua trajetória parece seguir a divisão entre modelos que impõem ou não limites à atividade da empresa social. A maioria dos esquemas de benefício fiscal e de preferência em compras para empresas sociais está vinculada a formas jurídicas ou a certificações que limitam a distribuição de excedentes financeiros, a fim de reforçar a idoneidade das entidades qualificadas. É o caso da empresa suíça com propósitos idealistas, da empresa de interesse público de Taiwan, das CICs do Reino Unido, das cooperativas sociais da União Europeia, das RSVs da Dinamarca e dos selos Social Traders e Ākina: todos adotam tetos para pagamento de dividendos, obrigatoriedade de reinvestimento, asset locks ou uma combinação dessas restrições.
Raramente há incentivos públicos relevantes sem essas salvaguardas. Em países como China, Colômbia e Peru, e em certos estados e províncias nos Estados Unidos e no Canadá, houve um forte desenvolvimento de formas jurídicas e certificações de empresas sociais sem restrições à distribuição. Até agora, nesses lugares, há menos disposição a vinculá-las a benefícios fiscais e preferências em compras relevantes.
Nossos dados, embora globais, são incompletos e provenientes de experiências incipientes, o que limita as conclusões definitivas. Isso posto, a relação que desponta entre restrições à distribuição de excedentes e incentivo público reforça a importância de conciliar confiança e escala. Para dar benefícios fiscais ou preferência em compras a empresas sociais, legisladores devem ter certeza de que não haverá malversação de recursos públicos. Exigências ligadas a propósitos e programas, à governança e à publicidade de informações fortalecem a crença no compromisso da empresa social. Mesmo restrições parciais à distribuição parecem dar fortes garantias a legisladores e a cidadãos. Além disso, vincular modelos restritivos a incentivos públicos pode mitigar o custo que esses modelos impõem ao capital.
A combinação de limites à distribuição de excedentes e acesso a recursos públicos é um meio-termo feito para gerar confiança e, ao mesmo tempo, permitir o crescimento. A compreensão dessa troca evidencia a necessidade de explorar outras maneiras de buscar tal equilíbrio. Ao investir em normas e fiscalização, um governo poderia fomentar até modelos livres de restrições – pois a garantia de que haverá fiscalização ajudaria a convencer legisladores e cidadãos quanto à legitimidade da missão de uma empresa social e até a justificar incentivos públicos que promovam seu crescimento. Atores privados também podem dar uma contribuição expressiva. No mundo todo, certificações privadas já servem como uma espécie de aval, e soluções como financiamento criativo, contratos com consumidores e estruturas de emprego podem reforçar a confiança sem sacrificar a escala.
Um destino, muitos caminhos
Empresas sociais prometem empunhar ferramentas do meio corporativo para enfrentar grandes desafios do mundo. Para honrar essa promessa, precisam conquistar a confiança e atrair recursos de uma série de agentes. Para isso, é preciso haver garantias. Em certos casos, marcos jurídicos tradicionais já bastam. Quando não, formas jurídicas específicas e certificações especiais podem ajudar. Criar novos modelos requer atenção aos paradigmas normativos e políticos nos quais se inserirão – bem como ao delicado equilíbrio entre sinalizar confiança e permitir escala.
Entender a centralidade desse equilíbrio na elaboração de marcos jurídicos para empresas sociais ajudará governantes, ativistas e acadêmicos a promover a atividade dessas companhias e seu impacto. Legisladores e reguladores podem se concentrar em definir o que querem – fortalecer confiança versus promover crescimento – e, a partir daí, conceber as formas jurídicas e certificações mais adequadas. Ativistas também podem calibrar seus argumentos e intervenções, propondo modelos públicos ou criando certificações privadas condizentes com seus valores. Novos estudos podem usar a dicotomia confiança-escala para criar uma taxonomia de opções jurídicas para a classificação de empresas sociais. Um modelo viável tornaria testes empíricos de distintas estratégias muito mais factíveis e poderia até embasar a replicação futura de estruturas jurídicas atuais.
A AUTORA
Dana Brakman Reiser é Centennial Professor na Escola de Direito do Brooklyn. Editou, com Steven A. Dean e Giedre Lideikyte-Huber, o livro Social Enterprise Law: A Multijurisdictional Comparative Review (Intersentia, 2023).