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Parceria entre iguais

A ONG internacional Care mudou sua forma tradicional de prover ajuda humanitária, criando uma plataforma para melhorar as ações e os serviços prestados com entidades locais

Por Jane Wei-Skillern e Annelie Strat

Durante o segundo dia da Assembleia Geral da HPP de abril de 2023, mulheres líderes de organizações membros selecionadas da HPP debatem ideias. (Foto cortesia de Mary Therese Norbe)

Em 1945, os ativistas cívicos Arthur Ringland e Lincoln Clark enviaram petições a 22 instituições de caridade americanas para criar uma organização sem fins lucrativos que enviasse kits de auxílio à Europa, destruída pela Segunda Guerra Mundial. De lá para cá, a Care passou a operar em 109 países, com a missão de erradicar a pobreza por meio de programas de resposta a crises, de alimentação e nutrição, de saúde e de desenvolvimento econômico.

Em novembro de 2013, a Care se viu diante de uma das mais fortes tempestades do planeta, o tufão Hayan. Ele atingiu as Filipinas, onde a organização atuava desde 1949, matando mais de 7.000 pessoas e destruindo mais de 1 milhão de lares.

Com suas parceiras locais – empresas terceirizadas que administravam os programas –, a organização forneceu abrigo, alimentos e auxílio financeiro a 318 mil filipinos. A iniciativa, no entanto, foi prejudicada pela necessidade de trazer colaboradores do exterior quando a escala da crise superou a capacidade local. Em 2017, uma análise interna mostrou que não foram cumpridas as metas de resposta ao tufão – como a distribuição de alimentos, que devia ocorrer em 72 horas, mas em alguns casos demorou até seis dias, pois não havia organizações parceiras nas regiões mais remotas e afetadas.

A Care concluiu que dependia demais de sua própria equipe e não havia sido capaz de aproveitar os recursos, o conhecimento e a capacidade das organizações locais. A Care notou a necessidade de estabelecer relacionamentos mais robustos com os parceiros. Para que tivesse um impacto duradouro e efetivo nas Filipinas e em outros países, teria de trabalhar com suas parceiras de igual para igual, e não tratando-as como terceirizadas.

Em 2016, essa mudança de estratégia levou à criação da Plataforma de Parceria Humanitária das Filipinas (HPP), uma aliança informal entre a Care e quatro ONGs locais que gerenciam todas as suas iniciativas de resposta a emergências no país. Hoje, a plataforma já conta com 30 organizações parceiras, que atuam nas mais de 7.000 ilhas do arquipélago filipino.

 

Multiplicadora de forças humanitárias    

 

A HPP não é uma organização autônoma, mas um coletivo de organizações independentes que se uniram para desenvolver o conhecimento e a liderança locais e, assim, realizar programas eficazes. A HPP enfatiza a humildade e a parceria entre iguais. A Care e as outras ONGs compartilham informações e coordenam suas atividades para obter o maior impacto possível, evitando duplicar trabalho e promovendo esforços humanitários complementares.

“Com a HPP, as parceiras não estão apenas recebendo ordens da ONG maior”, afirma Jennifer Furigay, coordenadora da organização sem fins lucrativos Assistência e Cooperação para a Resiliência e o Desenvolvimento Comunitários (Accord), que já era parceira da Care antes da criação da HPP. Nenhuma entidade domina ou exerce influência desproporcional sobre a estratégia geral da aliança. A liderança sênior da Care insistiu nessa estrutura para criar relacionamentos melhores não só lá, mas no mundo todo.

“Nossa liderança se interessou de imediato na força que uma estratégia de rede tem”, diz a presidente e CEO da Care, Michelle Nunn. “Tanto o conselho quanto os executivos perceberam que trabalhar assim não só seria mais sustentável e econômico, mas também teria maior impacto. Como disse um dos membros de nossa equipe: ‘Essa não é só a nossa forma de trabalhar, é o que nós somos’.”

A HPP possui comitês de finanças, compras e comunicações. Seus membros também colaboram na realização de treinamentos técnicos, como simulações de preparo para resposta a desastres. A organização promove planejamento conjunto, simulações e criação e implementação de projetos junto a entidades locais. Entre suas parceiras do setor privado, há provedoras de serviços financeiros das Filipinas, como a Palawan Express e a Cebuana Lhuillier, que auxiliam com cadeias de fornecimento e transferências monetárias.

 

Os parceiros HPP participam de um treinamento facilitado pelo CALP sobre habilidades básicas de dinheiro e vouchers (CVA) para funcionários do programa, realizado na cidade de Cebu em janeiro de 2023. (Foto cortesia da CARE Filipinas)

As instituições da HPP a veem como uma multiplicadora de forças humanitárias que lhes permite planejar e responder a emergências com eficácia muito superior à que teriam atuando sozinhas. A HPP mantém um fundo de resposta a emergências com o apoio da Care Filipinas e com um protocolo predefinido para fornecer pronto financiamento e suporte a membros da aliança em caso de necessidade. As parceiras têm autorização para conduzir avaliações e distribuir fundos próprios, e a Care reembolsa despesas de até US$ 2.000 por organização.

Embora proveja boa parte dos recursos da HPP, a Care não toma as decisões sobre sua alocação. Em vez disso, a entidade colabora com suas parceiras na concepção e aplicação dos programas e serviços. A matriz nos EUA cobre todos os custos operacionais e de manutenção da HPP, porém, mais recentemente, tem atraído financiadores externos, como a Fundação Tijori, em virtude do histórico da HPP.

“Antes da HPP, [atuávamos] sozinhos”, afirma Jimmy Khayog, membro da HPP e diretor-executivo da ONG Cordillera Serviços de Resposta a Desastres e Desenvolvimento. “Hoje temos recursos para fornecer auxílio imediato antes mesmo de concluí- da a avaliação de danos.” A capacidade de resposta em campo nas primeiras 24 horas após um desastre não só já salvou vidas, mas também fez aumentar a captação de recursos dessas organizações locais.

Com os membros da HPP contribuindo com seus contatos locais, conhecimento e capacidade, a Care pode se concentrar nas tarefas que só ela tem capacidade de fazer, como captar recursos, organizar conferências e custear o desenvolvimento profissional de membros da HPP. A Care também utiliza sua reputação global para atrair recursos para as parceiras da HPP, proporcionando confiança e capacidade de responsabilização a doadores não familiarizados com organizações locais de menor porte e que queiram trabalhar com uma rede mais ampla.

A HPP fortaleceu as propostas de custeio de iniciativas da Care nas Filipinas. “As propostas partem das próprias comunidades nas quais o trabalho acontecerá, das organizações e dos moradores locais”, afirma Lance Gutierrez, gerente de desenvolvimento de negócios da Care Filipinas. “Elas são mais precisas, porque representam as necessidades, perspectivas e conhecimento dessas comunidades.” Os programas e serviços também se mostram mais eficientes, pois a participação local gera projetos melhores, evitando desperdício de recursos, e mais sustentáveis, porque os membros da HPP ajudam a aumentar a capacidade local.

“A única forma de atingirmos as metas da Care nas Filipinas é trabalhar com nossas parceiras da HPP”, diz Leigh Fuentes, coordenadora de parcerias da entidade no país. “A reputação dessas parceiras, suas raízes e relações nas comunidades são o que nos permite alcançá-las.”

 

Cuidados em escala

 

Por maior que seja a importância da HPP para a Care e suas parceiras, ela representa uma conquista ainda maior para as comunidades filipinas cujas vidas dependem dos serviços prestados pelas ONGs.

Desde 2016, a HPP respondeu, em média, a seis desastres por ano. Após o tufão Rai atingir o país em 2021, o governo filipino reconheceu a Care como a organização internacional responsável pela maior resposta humanitária, depois da Cruz Vermelha – cuja equipe é quase dez vezes maior que o time local da Care. A entidade só conseguiu prover auxílio em tal escala devido à HPP, cujas entidades têm capacidade de resposta eficaz nas 17 regiões do país.

“Temos uma rede de 30 parceiras comunitárias e capacidade de mobilizar quase 3.500 colaboradores – número quase 70 vezes superior ao da equipe da Care – poucas horas após um desastre”, diz David Gazashvili, ex-diretor da Care Filipinas. “Nossos parceiros trabalham onde vivem. Por isso, conhecem melhor as necessidades locais, falam a língua local e entendem a cultural local.”

 

Em vez de vir da Care, as propostas partem das próprias comunidades nas quais o trabalho acontecerá

Recentemente, a HPP expandiu seu trabalho para além da ação humanitária, passando a atuar em desenvolvimento econômico e preparo para resposta a desastres. Os membros da HPP colaboram com governos locais para incluir a gestão de riscos em planos de desenvolvimento.

Por exemplo, as entidades associadas oferecem kits “build back better” para reparo de abrigos ou seja, voltados para melhorar as condições anteriores à emergência, com ferramentas, materiais de construção como chapas corrugadas, pregos especiais, martelos e telas de alumínio, e orientações técnicas para ajudar as comunidades na reconstrução pós-crise. Essa estratégia possibilita a recuperação autônoma das comunidades, oferecendo às famílias recursos e conhecimento, em vez de terem de esperar e pagar caro pelos serviços de terceiros.

Após o sucesso nas Filipinas, a Care já está desenvolvendo plataformas de parceria similares no Nepal, no Maláui, no Sudão do Sul e no Níger, e há planos de incluir mais países. Não se trata simplesmente de duplicar os recursos ou a estrutura da HPP, e sim de empregar os princípios centrais que levaram a aliança ao sucesso: confiança, humildade e colaboração mútua. A HPP é prova de que redes sustentadas por esses valores obtêm resultados melhores e mais sustentáveis às comunidades.

 

AS AUTORAS

Jane Wei-Skillern é professora sênior do Centro de Liderança no Setor Social da Escola de Administração Haas, na Universidade da Califórnia em Berkeley.

Annelie Strath é especialista independente em avaliação e reforma de políticas educacionais e já prestou serviços à Unesco, ao Unicef e ao Banco Mundial.



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