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O problema das mesas

Nas discussões sobre diversidade e equidade, mesas são comumente usadas como símbolo de inclusão. Seja por design ou conveniência, elas são tidas como um local para amenizar problemas de marginalização, exclusão, negligência, discriminação e outros danos.

Por Aida Mariam Davis

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(Foto de iStock/akinbostanci)

 

Mudanças no ambiente de trabalho impulsionadas pela pandemia deram a muitos de nós mais flexibilidade em nossos empregos. Bloqueios e distanciamento social muitas vezes resultavam em reuniões de qualquer canto de nossas casas que pudesse nos dar um pouco de privacidade – do armário, do balcão da cozinha ou até da banheira. No ano passado, cheguei a fazer uma reunião com alguém que estava em um dos lugares mais improváveis possível: uma casa na árvore.

Como ex-organizadora comunitária e fundadora da empresa de consultoria Decolonize Design, tenho a oportunidade única de conhecer pessoas onde quer que estejam  há mais de uma década. Sendo uma organização, fazemos parceria com indivíduos e instituições que estão trabalhando para transcender o statu quo e os padrões de profissionalismo branco em seus rituais formais e informais, rotinas e políticas. Este trabalho nos conectou a Zuri, uma mulher dinâmica que recentemente assumiu uma função estratégica de crescimento com um de nossos clientes, e que participou da  reunião online de sua casa na árvore no norte da Califórnia.

A casa era mais árvore do que casa, pois sua arquitetura era essencialmente uma plataforma aninhada entre ramos exuberantes. Zuri me disse que cuidava de uma propriedade rural e que poucos meses antes de a Covid-19 obrigar todos a ficarem em casa, um acidente  a deixou incapacitada. Durante o tempo de recuperação e solidão que se seguiu, ela explorou  que tipos de espaços a mantinham conectada ao seu propósito. Com grande precisão e clareza,  explicou que está no seu melhor estado “quando está bem acima do solo, mas ainda enraizada”. Na casa da árvore, ela estava livre, conectada com o que a fazia se sentir viva. Para mim, foi também um lembrete sutil de resistência ao local de trabalho tradicional e recusa ao statu quo. No contexto africano, a árvore representa a esperança de uma nova vida. Elas têm um significado espiritual especial para os povos indígenas em todo o mundo por sua capacidade de perdurar por gerações e oferecer conexão com os ancestrais. Árvores também sustentam abrigo e refúgio para aves e muitos outros mamíferos para que possam continuar sua jornada, onde quer que ela os leve. Como um símbolo, prática espiritual e lugar – as árvores são mais do que apenas acessórios em nosso ambiente natural, elas nos oferecem uma maneira de nos conectarmos mais profundamente com nosso trabalho e mundo.

Durante nossa conversa, Zuri fez um rápido tour por seu espaço. Havia algumas almofadas e iluminação extra, mas, notavelmente, não havia móveis, nem mesmo uma mesa para trabalhar. Sendo uma pessoa com deficiência, mesas “padrão” não caberiam no espaço ou não seriam da altura que ela precisava. No entanto, o que ficou evidente foi que ela não apenas não queria uma mesa, mas também que o móvel não tinha propósito para ela.

Mesas podem ocupar muito espaço. Normalmente projetadas para que se possa locais para trabalhar, comer ou conversar, elas não atendem às necessidades de todas as pessoas o tempo todo. Mesas de jantar, por exemplo, mesmo com um design bonito, podem não ter gavetas e compartimentos funcionais. Mesas podem ter utilidade, mas ser inadequadas para uma refeição de uma dúzia de pessoas. Mais importante, elas não são o único lugar para comer ou trabalhar e, certamente, nem sempre são os melhores lugares para isso. A própria necessidade de uma mesa deve ser questionada.

Nas discussões sobre diversidade, equidade e inclusão (DEI), a mesa é frequentemente usada como um símbolo de inclusão. Nas corporações e na imprensa mundial fala-se em “alongar a mesa”, acrescentando mais assentos ou abrindo espaço. Seja por design ou conveniência, elas são tidas como um local para amenizar problemas de marginalização, exclusão, negligência, discriminação e outros danos. No entanto, a suposição que orienta essa lógica é a de que os assentos são neutros e, portanto, igualmente acessíveis.

Mas visibilidade e representação na mesa não se traduzem necessariamente em poder ou influência. Por muito tempo, os povos oprimidos pediram, exigiram e até imploraram por um lugar à mesa. A realidade, no entanto, é que a mesa foi projetada por alguns poucos selecionados para alguns poucos selecionados. Para a mesa funcionar, é necessário que os povos oprimidos assimilem a premissa, cedam um pouco de sua humanidade e sofram indignidades contínuas.

Toni Morrison capturou lindamente a precariedade da mesa em “O Olho Mais Azul”. Ela descreve estruturas pelas quais passamos regularmente, mas não questionamos e enquadramos como “móveis sem memórias” — itens e ideias que temos como verdadeiros e necessários, mas que não têm significado obrigatório em nossas vidas. A “mobília” a que Morrison se refere são os rituais, rotinas, estruturas e organizações que moldam nossas crenças e comportamento; as coisas que estamos condicionados a aceitar sem questionar.

Refletindo e analisando os rituais, estruturas e rotinas de nossa vida econômica, descobrimos que não há, como disse Morrison, “nenhuma memória a ser apreciada”. A mesa, embora seja um elemento comum em nossas casas e mentes, simboliza o statu quo: não fala sobre as coisas como deveriam ser ou novas formas de ser e fazer. A metáfora existe em um contexto de amnésia histórica onde as pessoas confiam em conceitos familiares para se permitirem subconscientemente evitar perguntas como, “Por que a mesa foi criada?”, “Quem a criou?”, “Seu uso é sustentável por várias gerações ou apenas sobreviverá alguns anos?”.

Essas perguntas são especialmente importantes para as organizações nos dias de hoje, quando se “comprometer” com diversidade, equidade, inclusão, pertencimento e justiça virou moda, mas não realidade. Palavras sem ação apenas criam mais danos, que surgem com a representação sem poder, o teatro da diversidade e a ilusão de inclusão.

Como exemplo temos as pressões recentes por mais “diversidade” nos conselhos corporativos e filantrópicos. Em 2021, um estudo do Urban Institute sobre o setor sem fins lucrativos constatou que, apesar de uma melhora modesta no número de organizações com membros de cor no conselho, as posições de presidente do conselho e diretor executivo ainda eram esmagadora e teimosamente brancas. Promessas para diversificar os conselhos corporativos produziram resultados ainda mais sombrios. A suposição implícita por trás desse saldo é de que o conselho de diretores, como uma mesa de superintendentes, é a melhor maneira de governar e gerenciar a liderança da organização. Isso também valida a ideia de que, se tivermos mais pessoas com experiências diversas à mesa, funcionará de forma diferente. É uma lógica rasa e superficial que sugere que qualquer grupo de pessoas é um monolito, que uma única mulher negra pode representar os interesses de todos os negros. É como puxar um assento à mesa, mas sem alterar o design e construção da mesa ou sua funcionalidade. Também muitas vezes, as pessoas que foram excluídas são convidadas a entrar em mesas pré-existentes, a participar sem ter poder, ou ainda privadas  da segurança psicológica básica para dar feedback honesto sem medo de retaliação. Nesse cenário, vemos que a mesa não oferece proteção para os recém-chegados e, em alguns casos, expõe as pessoas ao mal porque não foi pensada com a intenção de segurança e cuidado.

A diretoria não é o único lugar com esses rituais e estruturas de exclusão. A maioria dos trabalhadores é convidada a participar de uma mesa pré-concebida em todos os tipos de locais de trabalho ao redor do mundo. Por exemplo, juntar-se a uma organização que tem uma tradição de celebrações no local de trabalho. Enquanto muitas pessoas gostam de festas, um funcionário com problemas com bebida pode encarar uma festa com grande dificuldade. Para uma funcionária negra, as comemorações podem representar um lugar onde o assédio ou desrespeito ocorrem, ou, para um cuidador, isso pode ser um evento inconveniente e caro. Para gays ou funcionários trans, podem ser feitas perguntas inapropriadas ou desconfortáveis sobre sua família ou quem eles amam. Padronizar isso com base no que a maioria prefere ou acha mais confortável transmite que só há uma maneira de comemorar. Tanto nas expectativas faladas e nas não ditas pede-se aos funcionários que ajustem sua maneira de trabalhar, conhecer e viver à da cultura dominante. Temos que nos lembrar de não aderir a apenas uma maneira de trabalhar. Nem todo problema pode ser resolvido na mesa ou por meio dela. Não existe um jeito padrão ou “normal” de ser. Sem uma consideração cuidadosa, a mesa pode ser um lugar caro, traumático e repleto de ansiedade para pessoas que são coagidas a assimilar a cultura dominante.

Essas formas de envolver pessoas nos locais de trabalho são tóxicas. Não é surpreendente, então, que os prejudicados estejam cada vez mais escolhendo o descanso como resistência e silenciosamente optando pela demissão. Esta longa, natural e evolucionária reação a ambientes de trabalho duros, hostis ou prejudiciais – recentemente nomeada de  quite quitting (algo equivalente a sair silenciosamente”) – está enraizada no compromisso de autopreservação e dignidade. Uma mesa que rotineiramente se recusa a cumprir suas promessas não é digna de confiança ou compromisso.

O trabalho de sonhar e criar fora do statu quo se estende para além dos limites da cultura interna de uma organização até as comunidades. Uma empresa pavimentando o caminho da criação de alternativas e dizendo “não” àquilo que muitas pessoas acreditam que deve existir para a segurança da comunidade é a Critical Resistance, organização sem fins lucrativos de Oakland. Como uma fundação baseada em membros, eles operam democraticamente e definem coletivamente sua agenda para “construir um movimento internacional para acabar com o complexo industrial de prisões (PIC) ao desafiar a crença de que prender e controlar as pessoas nos torna seguros”. Em vez de se esforçar para reformular a justiça criminal, a Critical Resistance está construindo um movimento global de desmantelamento de prisões. Seus esforços não apenas mudam o ambiente construído, mas também as crenças e comportamentos das pessoas sobre o que segurança e responsabilidade poderiam e deveriam ser. A chave para seu esforço é o foco duplo na campanha para desmantelar o PIC e na defesa de soluções comunitárias e alternativas para danos e conflitos.

Mais do que apenas teoria e crítica, a Decolonize Design oferece uma estrutura de transformação abolicionista para facilitar o processo de uma nova criação. Inspirados em grande parte pelo “corte de meio-fio” (fenômeno que exemplifica como recursos amigáveis para deficientes são usados e apreciados por um grupo bem maior do que o projetado), acreditamos que quando quem é mais negligenciado está no centro, criamos produtos e serviços melhores. Recentemente, trabalhamos com um grande varejista para criar produtos que priorizam pessoas com deficiências. Juntos, desenvolvemos campanhas que permitiam aos clientes comprar um sapato em vez de um par, para incluir  pessoas com um pé. Também testamos embalagens redondas com escrita em braile para que os clientes cegos pudessem saber mais sobre o que estão comprando. No processo de concepção e venda de um sapato, afirmamos a humanidade de nossos irmãos deficientes, reunidos e criados de forma inédita e priorizando a segurança e o cuidado. Ao resistir à padronização de processos, resistimos a formas transacionais de trabalhar e criamos novas formas de relacionamento.

Pensando no que o futuro do trabalho é para mim, lembro-me da corajosa e pioneira liderança de Araminta Ross, que declarou que os negros escravizados não sonhavam com mais escravidão humana – eles sonhavam com a liberdade. Ela e muitos outros abolicionistas nos mostram que a estrela-norte da liberdade existe em nossas vidas quando criamos espaços e lugares para nos definirmos por nós mesmos. Não estou interessada em juntar, reorganizar, redesenhar ou ainda desmontar a mesa. Eu não estou interessada em entrar em uma mesa que foi negada aos meus ancestrais e a muitas outras pessoas merecedoras. Não quero ser discutida à mesa como uma entrada a ser considerada. Não estou sonhando e trabalhando para me sentar em uma mesa que serve regularmente minha humanidade no cardápio.

Eu sonho com um lugar para discutir e deliberar; um lugar para sonhar e decidir que tipo de local de trabalho ou mundo queremos viver. Sonho com um local de trabalho e um mundo que seja vivo e alegre; um lugar sem luminárias ou móveis do passado; um lugar onde podemos construir novos relacionamentos como pares e parceiros; um lugar para descansar e partir o pão. Tricia Hersey, autora de Descanso é Resistência, resiste explicitamente à mesa proverbial e, em vez disso, deseja “um cobertor e um travesseiro à beira-mar”. Lá ela pode ficar bem e inteira – é disso que precisamos.

Muito mais do que um lugar à mesa, recuperemos o espaço sagrado de reunir e criar. Casa na árvore, pátio, cabana, ponte, saunas, curva do rio ou onde quer que você se sinta mais espiritualmente conectado e vivo – vamos nos encontrar lá. O trabalho remoto permitiu que Zuri trabalhasse de maneiras e em espaços que lhe deram conforto, conexão com a natureza e autonomia sobre seu trabalho. Ela não queria um assento à mesa, e encontrou segurança e segurança para produzir seu melhor trabalho em seus termos. Nós devemos projetar nossos espaços de encontro para que todos possam experimentar o mesmo pertencimento, dignidade, justiça e alegria desde o princípio.

A AUTORA

Aida Mariam Davis faz parte de uma longa tradição de poetas, filósofos e profetas que participou de movimentos de libertação na América e no exterior. O trabalho de sua vida é criar um mundo mais justo e alegre, onde todos podemos participar, prosperar e atingir todo o nosso potencial. Seu primeiro livro, Kindred Design, publicado pela MIT Press, está programado para ser lançado no outono de 2023.



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