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O novo cenário racial

Por Michael França e Fillipi Nascimento

 

Movimento pelos direitos civis pode estar começando

Quando Rosa Parks se recusou a ceder o lugar no ônibus para um homem branco e isso virou o estopim para a maior onda de protestos na luta antissegregacionista da história americana, ela não tomou essa atitude de forma isolada. Algo estava sendo construído havia décadas naquela sociedade. Lá, a segregação racial foi diferente daquela verificada no Brasil. Porém, em 1900, já havia a formação de uma ampla elite intelectual negra nos Estados Unidos, composta por acadêmicos, escritores, artistas e líderes comunitários.

 Essa elite negra teve um papel fundamental na reflexão e no direcionamento dos movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos no curso dos séculos XIX e XX. Figuras como W.E.B. Du Bois, Booker T. Washington e Marcus Garvey promoveram o debate das questões relacionadas a igualdade, justiça e emancipação, e deram as bases para a formação do movimento dos direitos civis na década de 1960.

Algumas das contribuições do movimento, como a aprovação da Lei dos Direitos Civis de 1964 e da Lei dos Direitos de Voto de 1965, demonstraram o poder da ação coletiva na desarticulação de políticas e práticas discriminatórias. Essas conquistas também serviram como referências para o argumento de que mudanças sociais e institucionais poderiam conduzir a maior igualdade racial.

No Brasil, a ausência de políticas públicas voltadas para a educação e a persistência das estruturas sociais racistas que limitaram o acesso dos negros ao ensino formal após a abolição da escravidão no país explicam, em parte, por que a formação de uma elite intelectual negra ocorreu de forma tardia. Ainda assim, nas primeiras décadas do século XX ela já contava com vários nomes.

Figuras como André Rebouças, Luiz Gama, Lima Barreto, Lélia Gonzales e Abdias Nascimento são apenas alguns exemplos de intelectuais negros que se dedicaram a combater o racismo e a promover a valorização da identidade e da cultura negra no Brasil. Por meio de suas produções, eles denunciaram as injustiças sociais e colaboraram para a construção de uma consciência racial mais forte no país.

Para estudiosos das relações raciais como Antônio Guimarães, a contribuição desses e de outros pensadores representou um ponto de virada na matriz ideológica nacional, fortemente baseada na crença de que o embranquecimento da população seria sinal de progresso social. Essa narrativa permeava a sociedade e era reforçada tanto pelas instituições quanto pelas representações midiáticas.

Cabe ressaltar que a busca pela branquitude sempre esteve associada a uma tentativa de se livrar dos estigmas e das discriminações sofridas pelos negros, na esperança de obter melhores oportunidades e aceitação social. Ela foi uma ferramenta discriminatória com o objetivo de clarear a população e seu efeito no imaginário social brasileiro foi tão grande que afetou inclusive a forma como os próprios negros encaravam a negritude. Essa pressão foi tão intensa que muitos negros chegaram a adotar práticas como o alisamento do cabelo e o uso de produtos de clareamento da pele, além de excluírem outros aspectos da cultura afro-brasileira de suas vidas. Essa negação da identidade negra em troca da assimilação social revelava as estruturas de um racismo ainda persistente na sociedade brasileira.

Em que pesem todos os esforços realizados pelos movimentos sociais no Brasil ao longo dos anos, é possível afirmar que o país ainda não vivenciou uma grande onda de pressão pelos direitos civis, nos moldes daquelas que ocorreram em outros contextos internacionais. No entanto é preciso reconhecer que isso está começando a mudar com a emergência de um novo cenário racial no país.

 

Novo cenário racial

 

Temos observado, nas últimas duas décadas, transformações significativas na maneira como a identidade negra no Brasil tem sido percebida, representada e valorizada. De um ponto de vista mais amplo, essas mudanças refletem um movimento de conscientização que teve o Movimento Negro Unificado (MNU) como um dos seus percursores  e  que tem ganhado cada vez mais força no país. Nesse cenário, uma das mudanças mais evidentes é aquela contemplada na identificação racial da população brasileira.

Vitor Miranda, pesquisador do Centro de Estudos da População, vinculado à Universidade da Pensilvânia, analisou a identificação racial no Brasil, com foco no processo de reclassificação racial. Utilizando dados dos censos demográficos, Miranda demonstrou que, a partir da segunda metade do século XX, houve um aumento significativo no número de pessoas que se identificavam como “pardas”. A partir da década de 1990, contudo, observou-se um aumento no número de pessoas que se identificavam como “pretas”. Miranda destaca que pelo menos 2,2 milhões das 9 milhões de pessoas que se identificaram como “pretas” no censo de 2000 não haviam se definido como tal em 1990. Entre 2000 e 2010, outras 3 milhões de pessoas mudaram a identificação de raça de outras categorias para a categoria “preto”. Essa foi uma tendência comum entre homens e mulheres, concentrando-se mais fortemente entre os jovens e adultos.

Entre as justificativas que se atribuem para essa reclassificação racial estão a intensificação do ativismo negro e a ampliação no acesso de indivíduos negros ao ensino superior (sobretudo a partir dos anos 2000 com a implementação de políticas afirmativas e cotas raciais), processos aos quais se associa a ampliação do reconhecimento da importância da valorização da identidade negra.

O fortalecimento dos movimentos negros é um elemento-chave desse novo cenário racial. Dado o maior grau de coesão e organização, os debates, as mobilizações e outras iniciativas dedicadas ao combate do racismo e à garantia de direitos e oportunidades, os movimentos ganharam ainda mais visibilidade e influência, assumindo maior força na busca por mudanças sociais e políticas.

A ampliação do acesso dos negros ao ensino superior no Brasil também contribuiu para um melhor entendimento da identidade negra ao proporcionar oportunidades educacionais, espaços de diálogo e fortalecimento coletivo, além de contribuir para a produção de conhecimento acadêmico sobre as questões raciais. Esse acesso viabilizou a mobilidade social de parte dessa população e, em certa medida, promoveu o alcance de posições de destaque e de influência política para novas lideranças negras.

Devemos ainda reconhecer os impactos da pandemia da Covid-19, que escancarou as desigualdades sociais existentes no Brasil, revelando a forma como o racismo afeta de maneira desproporcional a indivíduos pretos e pardos. A crise sanitária reavivou debates sobre a urgência do enfrentamento do racismo e sobre a necessidade de ações efetivas para garantir a saúde, a segurança e os direitos da população negra.

Podemos afirmar que esse novo cenário racial que emerge no Brasil se apresenta como um movimento de contracultura ao desafiar velhos ideais elitistas de superioridade branca e de negação das desigualdades raciais. Nele o ativismo negro e a educação superior desempenham um papel fundamental, denunciando o racismo em suas diferentes formas e conscientizando sobre as desigualdades persistentes da sociedade brasileira, além de resgatar e valorizar a história, a cultura e as contribuições do negro na construção do país.

 

Contracultura pressiona ideias elitistas

 

À medida que a população se torna mais consciente das desigualdades e discriminações enraizadas no padrão cultural predominante, aumenta a pressão por mudanças e a busca por justiça e equidade. Esse movimento em direção à diversificação cultural e à ampliação da representatividade abala as estruturas tradicionais de poder e questiona fortemente as noções estabelecidas de hierarquia social. Alguns fatores têm contribuído substantivamente para esse processo, muito embora parte deles tenha passado despercebida no atual debate público brasileiro. Um desses fatores é de natureza demográfica.

No Brasil, as diferenças na taxa de fecundidade entre os estratos sociais têm diminuído nas últimas décadas. Entretanto, já faz algumas décadas que, entre os mais ricos, essa taxa está abaixo do nível de reposição populacional. Entre os mais pobres, contudo, a fecundidade ainda é relativamente maior. Essa disparidade não apenas denuncia a negligência com os direitos reprodutivos das mulheres, sobretudo as de baixa renda, mas também implica uma mudança na composição populacional ao longo do tempo, com um aumento relativo de pretos e pardos, cuja maioria tem origens desfavorecidas. Essa transformação demográfica se reflete diretamente na agenda racial, uma vez que amplia a representatividade desses grupos e a demanda por políticas públicas que considerem suas necessidades.

Outro fator de transformação foi a ampliação do acesso ao ensino superior e dos anos de estudo concluídos no ensino básico. Muito embora esse acesso não tenha sido suficiente para assegurar que todos tivessem um nível de aprendizado equivalente, ele permitiu que parte daquela população desfavorecida questionasse as lógicas estabelecidas e pensasse na reprodução das estruturas de injustiça e desigualdade à qual está submetida. Com o ensino formal, esses grupos passaram a ter melhores condições de analisar criticamente os padrões elitistas e de elaborar narrativas alternativas às do grupo dominante. Isso contribuiu para o fortalecimento dos movimentos negro, que estão progressivamente absorvendo uma nova massa crítica, ganhando capilaridade e ampliando a capacidade de articulação para alcançar posições de maior influência.

Um terceiro fator transformador está associado a esse último aspecto: o rompimento com as mídias dominantes. Com o advento das redes sociais e a democratização da produção de conteúdo, indivíduos de diferentes origens socioeconômicas ganharam espaço para compartilhar suas experiências e perspectivas. Esse processo dificultou a reprodução das velhas narrativas que sustentavam ideais elitistas e discriminatórios. A diversidade de vozes disseminadas por meio das redes sociais tem desafiado a hegemonia da mídia tradicional e permitido que as perspectivas de indivíduos marginalizados ganhem visibilidade e influência. É dessa forma que os movimentos negros encontram um canal alternativo de comunicação e mobilização e fortalecem sua coesão e organização.

Todo esse cenário gera um processo dinâmico no qual a demanda e a oferta por perspectivas alternativas ao padrão cultural excludente do elitismo brasileiro se retroalimentam no decorrer do tempo. É certo que, apesar dos avanços e das transformações em curso, esse movimento ainda é subestimado e enfrenta resistências por parte de certos setores. Parte disso se deve a um entendimento raso da complexidade que é a sociedade brasileira. O que pode ser, em certa medida, explicado por um sistema social enraizado em uma estrutura segregacionista que não permite que setores privilegiados enxerguem a transformação que está ocorrendo no tecido social nacional.

A revolução não está sendo televisionada

 

Vimos que a intensificação do ativismo dos movimentos negros no Brasil foi acompanhada por significativas mudanças demográficas e socioeconômicas que contribuíram para uma crescente adesão e organização. As redes sociais ampliaram os canais de expressão e de mobilização que antes eram restritos aos grupos dominantes, contribuindo assim para maior visibilidade da questão racial e para o alcance de um público maior e mais diversificado. Nunca antes na história desse país se falou tanto em racismo e discriminação racial quanto se fala hoje.

Um passo natural é a população negra se lançar na política institucional. Isso tem ocorrido. Os pesquisadores Sergio Firpo, Michael França, Alysson Portella e Rafael Tavares, do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, ao se dedicarem a analisar a desigualdade racial nas eleições brasileiras para deputados federais e estaduais em 2014 e 2018, mostraram que não há um desequilíbrio racial tão acentuado nas candidaturas. Contudo, na hora da eleição, ele aparece fortemente. Até quando, porém? O processo político também envolve aprendizado e, a cada eleição, esse conhecimento está sendo internalizado por uma parcela da população que, durante grande parte da história, esteve muito distante das decisões do rumo do país.

Ao mesmo tempo, gerações de pensadoras, pensadores e ativistas brasileiros como Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro, Conceição Evaristo, Valdirene Assis, Marcia Lima, Cida Bento, Hélio Santos, Adilson Moreira, Silvio Almeida, Thiago Amparo, Irapuã Santana, José Vicente, Luiz Augusto Campos, Frei Davi, Douglas Belchior, entre tantos outros nomes, têm se dedicado a trazer à tona questões cruciais para o entendimento da realidade racial brasileira e para a busca por soluções transformadoras. Suas contribuições têm impactado tanto o meio acadêmico quanto a sociedade como um todo, promovendo maior conscientização sobre as injustiças raciais e estimulado ações que visam a promoção da igualdade e da justiça social.

Em certo sentido, da mesma forma que, em 1º de dezembro de 1955, Rosa Parks se recusou a ceder o lugar no ônibus para que um homem branco se sentasse nos Estados Unidos, os movimentos negros têm dito para milhares de brasileiros também pararem de se levantar. O que antes era apenas um sussurro imperceptível para muitos, hoje está começando a ser ouvido, alto e bom som. E a tendência é de o barulho só aumentar.

OS AUTORES

Michael França foi pesquisador visitante nas universidades Columbia e Stanford. É ciclista, colunista do jornal Folha de S.Paulo, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo, pesquisador do Insper e coordenador do Núcleo de Estudos Raciais da mesma instituição.

Fillipi Nascimento é doutorando do departamento de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, mestre em sociologia e bacharel em ciências sociais pela Universidade Federal de Alagoas. É pesquisador do Neri (Núcleo de Estudos Raciais do Insper).



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