Imprimir artigo

Como a sabedoria indígena pode apoiar a saúde mental dos jovens

Como o trabalho da Two Feather Native American Family Services tem olhado para o bem-estar de jovens sub-representados por meio da cura emocional, mental, física e espiritual

Por Virgil Moorehead Jr.

iStock/Dmitri Zelenevski

 

Conhecida por seus recursos naturais — imponentes sequoias, rios poderosos, abundante vida selvagem e uma costa impressionante — a região da baía de Humboldt, no noroeste da Califórnia, abriga oito etnias reconhecidas federalmente, caso dos hupas, yuroks, karuks, wiyots e tolowas. Há muito tempo as tradições culturais indígenas da região valorizam a interdependência entre os seres humanos, a terra, a água e o mundo que vai além do humano.

Assim como em grande parte da América nativa, uma intensa recuperação cultural está em andamento ali, unindo passado e presente e transformando visões de mundo e tradições indígenas há muito suprimidas pela colonização. Essa é uma boa notícia para nossos jovens, muitos dos quais enfrentam desafios de saúde mental enraizados em traumas intergeracionais, pobreza e alienação social. Embora o financiamento para enfrentar a crise de saúde mental juvenil nos Estados Unidos tenha aumentado — com crescente apoio para jovens indígenas — o dinheiro sozinho não resolverá o problema de desconexão dessa população em relação a si mesma, à família, à comunidade e à natureza, nem a crise de sentido atrelada a isso.

Felizmente, o interesse por abordagens interculturais para promover o bem-estar dos jovens e explorar o que constitui uma vida com significado está crescendo. E a sabedoria indígena tem muito a oferecer a essa pauta.

Ao longo do meu doutorado em psicologia, realizei uma pesquisa durante um encontro formal de curandeiros e profissionais de saúde nativos. Os participantes enfatizaram a importância das relações no processo de cura indígena, que vão além da relação entre paciente e curandeiro, incluindo laços com o Criador, a família, a comunidade e o mundo em geral. Para esses guardiões da sabedoria, criar ambientes que promovam saúde e cura requer o que eles chamam de “relacionalidade sem amarras”.  A valorização da interconexão de toda a vida e de nossa responsabilidade uns com os outros e com a Terra é inerente a essa relacionalidade.

Tenho explorado como isso se traduz na prática ao longo dos últimos seis anos, atuando à frente de uma organização que oferece serviços de saúde mental culturalmente afirmativos para jovens e famílias indígenas em todo o condado de Humboldt. A construção de relacionamentos está no centro do nosso trabalho na Two Feathers Native American Family Services, trazendo lições para aqueles que buscam promover a saúde mental e o bem-estar de jovens sub-representados.

 

Mudando a narrativa

 

Embora seja psicólogo de formação, reconheço que a cura ocorre em muitos níveis — mental, emocional, físico e espiritual. Cresci em uma comunidade tribal a poucos quilômetros de onde agora vivo e trabalho. E, como muitos dos jovens que atendemos, também enfrentei sentimentos de vergonha e inadequação, que alimentaram minha dependência química quando eu tinha 20 anos. O que me ajudou a mudar de perspectiva — e a escolher um novo caminho — foram as relações de afeto que me ajudaram a me reconectar com minhas qualidades e minha autoestima.

Como aprendi, a jornada de cura começa com o relacionamento consigo mesmo e com os outros. Muitos jovens indígenas crescem em ambientes onde traumas históricos e contemporâneos, pobreza e narrativas sociais negativas concorrem para moldar suas identidades desde o nascimento. Por muito tempo, a narrativa dominante tem sido a de que as populações indígenas são deficientes, inadequadas e inferiores. Esses estigmas, perpetuados pela mídia e introjetados nos sistemas educacional e de saúde, reforçam as próprias patologias que descrevem. Sentimentos de baixa autoestima são tão profundamente enraizados e inconscientes que não podem ser resolvidos por intervenções convencionais de saúde mental, como treinamentos de competência intercultural.

A Two Feathers Native American Family Services realiza um programa de bem-estar juvenil, baseado em evidências e definido pela comunidade, no Sumeg State Park em Trinidad, Califórnia (foto cortesia de Two Feathers Native American Family Services)

O uso frequente de indicadores sociais para caracterizar os jovens indígenas — como taxas de depressão, de abuso de substâncias, de evasão escolar, de violência e de suicídio — só contribui ainda mais para os sentimentos de vergonha entre os adolescentes e para as baixas expectativas entre aqueles que são responsáveis por seu cuidado.

A tendência de patologizar e rotular – e de os rótulos se fixarem – é a razão pela qual nossa equipe de aconselhamento adota uma abordagem terapêutica narrativa. Desenvolvida na década de 1980 por terapeutas da Nova Zelândia, a terapia narrativa convida os participantes a observar sua própria história, permitindo-lhes cultivar uma visão sistêmica. 

Os jovens desenvolvem a consciência de como suas atitudes, comportamentos e autoconceito foram formados. Eles começam a perceber que não são o rótulo que lhes foi atribuído; são, na verdade, o subproduto de um sistema complexo. O objetivo é que eles adquiram autonomia sobre os problemas que enfrentam. Eles não se tornam o problema. A terapia narrativa se alinha com a sabedoria e com as práticas de cura nativas por meio de sua ênfase na narração de histórias e na interconexão dos indivíduos dentro de seus contextos sociais, culturais e históricos.

Medicina sem pressa

 

Curar o trauma coletivo transmitido ao longo das gerações é um processo longo. Se você se machuca em relacionamentos, se cura em relacionamentos — e isso leva tempo. Jovens em crise podem ser difíceis de alcançar, literal e figurativamente, com a maioria dos jovens indígenas vivendo em áreas rurais isoladas e pequenas cidades. Muitos crescem sem saber como confiar em outras pessoas após terem sofrido decepções com a família, o sistema educacional e a sociedade em geral. Esse trabalho tem a ver com coerência e se expor. E fazer isso exige uma equipe comprometida, humilde, genuína e curiosa.

Os membros da nossa equipe atuam como “tias” e “tios” para os adolescentes que estão desconectados. Nosso trabalho é ajudá-los a dar e receber amor e cuidado e a ter autonomia sobre suas vidas. Isso exige, em última instância, uma equipe que se destaque na construção de relacionamentos e que se sinta confortável em se expor. Aprendemos com nossos erros ao priorizarmos as credenciais acadêmicas em vez das habilidades interpessoais em nossos processos de contratação e ao fomentar um ambiente de trabalho hiperprodutivo à custa do bem-estar da equipe.

Construir relacionamentos autênticos com os jovens — e dentro da comunidade — começa com a criação de uma cultura organizacional carinhosa e entusiasmada. Muitos dos membros de nossa equipe, 60% dos quais são indígenas, vivenciaram os mesmos desafios que os jovens que atendemos. A equipe precisa ter a oportunidade e o apoio para se desenvolver por meio de treinamento, coaching e mentoria — tudo dentro de uma cultura que valoriza o aprendizado contínuo. Culturas de cuidado não brotam do nada. Elas evoluem a partir dos valores de uma organização e pelo estabelecimento de normas de bom senso, como desligar o celular nas reuniões, prever momentos de pausa para o café e para refeições em equipe ou mesmo reconhecer quando a busca pela realização está custando caro em termos de bem-estar e moral da equipe.

 

Aprendendo com a cultura indígena

 

Na Captain John High School, uma escola alternativa na Reserva Indígena Hoopa Valley, alunos e professores se reúnem em uma roda de conversa semanal. Cada um tem sua vez de responder a perguntas sorteadas de dentro de uma meia. Os tópicos variam, indo desde o que planejam fazer no fim de semana até descrever um momento em que se sentiram injustiçados. Esse encontro é uma ocasião em que os estudantes se sentem seguros para se abrir sobre suas vidas e na qual relações de confiança são formadas dentro da comunidade escolar.

A roda de conversa é uma das muitas práticas tradicionais que usamos para conectar os jovens à sua cultura e a formas de se relacionar transmitidas ao longo do tempo. Essas atividades ensinam habilidades, como autoconhecimento e empatia, e transmitem valores, como igualdade e respeito. Em contraste com a ênfase no individualismo na cultura ocidental, essas práticas reforçam nossa responsabilidade compartilhada uns com os outros.

Trajes tradicionais para a Dança das Flores — uma cerimônia de transição para a vida adulta das meninas (foto cortesia de Two Feathers Native American Family Services)

Por meio da participação em práticas culturais indígenas — como bordado, tecelagem, canto, dança, escultura e confecção de tambores — os jovens indígenas se conectam à sua identidade cultural e fortalecem os laços com seus pares. Tais atividades constroem a consciência plena e aguçam os sentidos. Os jovens passam um tempo juntos em meio à natureza — identificando plantas e coletando materiais brutos para usar na criação de roupas tradicionais e em oferendas utilizadas em cerimônias sagradas. Essas práticas ajudam a combater os efeitos negativos que a tecnologia digital tem sobre a autoestima dos jovens, como isolamento e baixa autoestima.

O acadêmico indígena Michael Yellow Bird é autor de vários textos sobre o poder de cura das cerimônias e práticas culturais indígenas. Segundo ele, dançar, cantar e compartilhar outras atividades em grupo alimentam a noção senso de pertencimento e ativam substâncias químicas do bem-estar no cérebro, como a ocitocina e a dopamina.

Essas práticas fortalecem a conexão dos jovens com os valores indígenas profundamente enraizados nas relações interpessoais. Kishan Lara-Cooper, membro da tribo hoopa, escreveu sobre antídotos culturais para o trauma de fundo histórico e racial, entre os quais está o conceito de K’winya’nya ’awhiniw, ou “o caminho humano”. A expressão diz respeito a viver uma vida equilibrada e harmoniosa, honrando e respeitando a si mesmo, aos ancestrais, à comunidade, ao meio ambiente e a toda a criação.

Jordan, de 18 anos, de etnia karuk, descreve esses valores da seguinte forma: “Trata-se de ter boas intenções e me responsabilizar. De tratar as pessoas da maneira como você gostaria de ser tratado”. Nessa perspectiva, um ponto-chave é a noção de que o “eu” está completamente integrado a uma construção social maior.

Ao lado do conceito do K’winya’nya ’awhiniw está a concepção segundo a qual cada pessoa tem uma habilidade ou talento natural a oferecer à comunidade. Enquanto no contexto ocidental apenas uma minoria dos estudantes é considerada “dotada”, na visão indígena cada pessoa possui um dom único. O desafio, ou a oportunidade, está em identificar qual é o seu dentro da comunidade.

 

Rumo a uma ética de responsabilidade compartilhada

 

A cultura contemporânea americana só pode avançar se cultivar esse senso de responsabilidade compartilhada. No auge da pandemia de covid, o cientista político Robert Putnam se juntou a mim em uma conversa online sobre o tema de seu último livro, The Upswing: How America Came Together a Century Ago and How We Can Do It Again [a ascensão: como os EUA se uniram um século atrás e como podemos fazer isso de novo; Simon & Schuster, 2020, sem tradução no Brasil]. 

Na plateia estavam professores e prestadores de serviços para jovens da nossa região. Putnam descreveu os níveis históricos de polarização política, desigualdade econômica e egocentrismo cultural no país. “Se vamos fazer uma mudança em direção a um futuro melhor, então que isso comece por encarar as nossas obrigações para com os demais”, disse.

Com base em nossa experiência, organizações que atendem a jovens e que buscam promover uma melhor relação interpessoal em seu trabalho podem começar por:

1 – Contratar funcionários que sejam comprometidos com a missão e capacitados de se relacionar com os jovens;

2 – Priorizar o papel da construção de relacionamentos dentro da organização, incentivando os membros da equipe a criar comunidades e conexões onde quer que estejam;

3 – Fortalecer a relação dos jovens consigo mesmos, convidando-os a compreender melhor as forças que moldaram suas vidas e a reescrever suas histórias com base em seus objetivos;

4 – Nutrir uma cultura organizacional na qual os funcionários cresçam juntos como equipe e se sintam apoiados na busca de seu próprio aprendizado, cura e desenvolvimento;

5 – Conectar os jovens por meio de práticas culturais, tradições e atividades que fortaleçam a identidade, construam a noção de comunidade e reforcem o senso de responsabilidade em relação aos outros;

6 – Apoiar os jovens na identificação de seus dons naturais e de como estes contribuem para a comunidade de forma mais ampla;

7 – Envolver as famílias e a comunidade em esforços para apoiar o bem-estar dos jovens por meio de eventos e atividades que promovam conexões e alegria.

Em nossa conversa, Putnam descreveu o papel histórico dos jovens à frente de mudanças sociais positivas. Sonhadores por natureza, eles imaginam como o mundo poderia ser. Nosso papel como profissionais de desenvolvimento juvenil, pais, professores e cuidadores é preparar a geração jovem de hoje para ser capaz de dar e receber amor – e de reimaginar o futuro –, começando pela nossa responsabilidade com os demais e com o mundo.

 

O AUTOR

Virgil Moorehead Jr., PsyD (de etnia yurok e tolowa), é diretor-executivo da Two Feathers Native American Family Services em McKinleyville, Califórnia.

 



Newsletter

Newsletter

Pular para o conteúdo