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A Dignidade Como Alicerce

Uma nova abordagem identifica ofensas raciais e outras formas de discriminação com o intuito de criar ambientes de trabalho aos quais todos sintam pertencer.

Por Aida Mariam Davis 

Ilustração de Nyanza D
Ilustração de Nyanza D

As ações em prol da diversidade, equidade e inclusão (DEI) se tornaram dominantes como política para as empresas que tentam criar ambientes de trabalho mais inclusivos. Empregadores bem-intencionados e também funcionários aderiram à proposta como solução para a desigualdade e outras formas de discriminação por meio de treinamentos sobre preconceito implícito, auditorias de diversidade e métricas de representatividade.

Lamentavelmente, a DEI tem sido insuficiente para lidar com os desafios individuais e institucionais nos locais de trabalho – particularmente agressões à dignidade pessoal. Esforços feitos em nome da DEI podem reforçar padrões de mudanças superficiais, assimilação e desrespeito que oprimem funcionárias e funcionários negros e indígenas e deixam todos os empregados sem ferramentas adequadas para desmantelar práticas organizacionais discriminatórias.

A empresa de consultoria global Decolonize Design tem se pronunciado a respeito das muitas limitações e danos da DEI. Nossa abordagem alternativa à DEI é pertencimento, dignidade e justiça (PDJ ou BDJ, nas iniciais em inglês), com uma visão de ambiente de trabalho no qual, além de bem-vindos e valorizados, todos ao mesmo tempo se sentem seguros. A dignidade, mais do que a diversidade, é a base para a construção de ambientes de trabalho que reconheçam e valorizem a humanidade de cada pessoa. É o pilar sobre o qual organizações podem construir ambientes baseados em pertencimento e justiça.

 

Dignidade como valor organizacional

 

A dignidade é o conceito que sustenta o valor inerente a todos os seres humanos, independentemente de posição de poder e privilégio. Historicamente, esse tem sido um dos valores mais bem compreendidos e respeitados. Em tempos modernos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, escrita depois da Segunda Guerra Mundial, em 1948, começa com o reconhecimento da “dignidade inerente” a todas as pessoas, que é a “base da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. A Declaração de Viena, de 1993, reafirmou que “todos os direitos humanos derivam da dignidade e do valor inerentes aos seres humanos”.

Para pessoas negras e indígenas, a dignidade é a afirmação litigável da individualidade sagrada e inviolável de cada um – um valor essencial a pessoas oprimidas que sofreram séculos de desumanização e discriminação. A nuance particular dessa definição – de que a dignidade é a afirmação litigável da individualidade – é baseada na opressão sistêmica e geracional vivida por pessoas negras e indígenas, de modo a enfatizar o esforço intencional de reconhecer a dignidade historicamente negada aos povos nas culturas ocidentais. Por exemplo, as mulheres do Coletivo Combahee River – uma organização feminista negra ativa em Boston, nos Estados Unidos, desde 1974 – articularam, em sua famosa declaração de 1977, que seu trabalho antiopressor era baseado na ideia de que “mulheres negras são inerentemente valiosas, que nossa libertação não é uma necessidade complementar à de outra pessoa, mas decorrente da nossa necessidade de autonomia como seres humanos”.

No contexto do ambiente de trabalho, isso se traduz na habilidade de participar da organização, sabendo que suas identidades serão reconhecidas, respeitadas e protegidas contra preconceitos. Segundo Donna Hicks, pesquisadora do Weatherhead Center for International Affairs da Harvard University, dignidade é essencial a relacionamentos fortes entre empregados e executivos. Sua ausência gera desconfiança e evita responsabilização. Em Dignidade: Seu Papel Essencial na Resolução de Conflitos, Hicks defende que “todos ansiamos por ser tratados com dignidade; é nosso maior denominador comum”. E que a dignidade “é a cola que segura todos os nossos relacionamentos”, pessoais e profissionais. É importante diferenciá-la de “respeito” no sentido de que é “a base das nossas interações” – a premissa de que todas as pessoas “são dignas de cuidado e atenção”, independentemente se as respeitamos ou não.

“Quando as pessoas sentem que seu valor é reconhecido nas relações, elas experimentam uma sensação de bem-estar que lhes permite crescer e prosperar”, explica Hicks. “Do contrário, se sua dignidade é rotineiramente ferida, as relações são vividas como fonte de dor e sofrimento.” Fundamental para o argumento de Hicks é que uma mudança cultural exige que a dignidade não seja simplesmente compreendida em nível pessoal, mas em nível sistêmico, porque “sem uma compreensão sistêmica da dignidade e de seu papel em nossa vida e em nossas relações – sem que todos na organização participem –, aspectos disfuncionais da cultura mais ampla” influenciam negativamente nas relações pessoais no ambiente de trabalho.

 

 Violações da dignidade

 

A dignidade é fundamental para espaços de trabalho prósperos. Infelizmente, a maioria dos locais de trabalho não discute as ofensas verbais e não verbais diárias que criam um ambiente hostil e inseguro. Essas agressões à dignidade das pessoas, que Hicks denominou “violações da dignidade”, são incessantes, acumulativas e podem causar sérios danos a funcionárias e funcionários negros e indígenas.

Primeiro, essas violações permitem que empregados que se beneficiam da cultura branca dominante resguardem seu conforto. Em outras palavras, elas mantêm o status quo, enquanto negros e indígenas são, no máximo, encorajados a minimizar essas violações ou dar outro nome a elas. Nos piores casos são coagidos a se assimilarem à cultura dominante do local de trabalho ignorando essas violações. Exemplo disso é a linguagem das “microagressões”, usada para descrever ofensas pessoais como quando uma pessoa não negra bem-intencionada pede para tocar o cabelo natural de um ou uma colega negro, ou quando um funcionário negro é requisitado a mostrar credenciais ao entrar no seu local de trabalho para provar seu vínculo.

Contudo, o termo “microagressões” não abarca totalmente a seriedade da violação de dignidade da ação – esta não só viola a humanidade da pessoa negra. Se ela expressar quanto se sente violada pessoalmente, será rotulada de “sensível” ou “raivosa”, o que deslegitima ainda mais sua individualidade e sua experiência de racismo. Os empregados ofensivos rebatem a responsabilidade e renomeiam a ofensa para escapar do desconforto de serem confrontados com seu próprio comportamento racista, mas aqueles que recebem esses insultos sofrem as consequências de longo prazo tanto do racismo quanto da traição institucional que sentem pela aparente indiferença por parte da organização.

Além disso, violações de dignidade que não são consideradas absolvem os funcionários da responsabilidade pelas consequências emocionais e psicológicas de suas decisões. Por exemplo, quando uma pessoa branca diz a uma pessoa negra “Você é tão articulada!”, a implicação é que pessoas negras geralmente não o são. “O subtexto”, escreveu Lynette Clemetson no New York Times, “é inerentemente ofensivo, porque sugere que o recebedor do ‘elogio’ é notoriamente diferente de outras pessoas negras”.

Outro exemplo aparentemente inocente é quando uma mulher branca diz: “Como mulher, entendo como é ser uma pessoa negra”. Aqui, a pessoa branca invalida e desconsidera a experiência da pessoa negra, alegando que é igual à sua própria experiência de gênero. Isto é, a presumida compreensão de uma igualdade percebida não considera a real diferença do racismo e a real ofensa do racismo. Racismo e misoginia são sistemas discriminatórios, mas não são equivalentes na forma ou na expressão.

Por fim, violações de dignidade normalmente ilustram a desconfiança e o escrutínio constantes que mulheres e homens negros e indígenas sofrem de outros funcionários não negros, aliados à suposição implícita da sua deficiência quando comparados a seus pares brancos. Isso muitas vezes aparece como exagero, manipulação psicológica racial e negação de experiências, e resulta no enfraquecimento da dignidade. A manipulação psicológica racial pode surgir de várias formas, mas algumas das mais comuns são sugestões passivo-agressivas de que empregados negros estão dando uma “carteirada racial” ou são “muito sensíveis”. Estes comentários, feitos para ignorar ou desacreditar experiências, levam funcionários marginalizados a questionar sua percepção da realidade.

Como uma empresa de consultoria predominantemente negra e indígena, e comandada por negros, nós da Decolonize Design também vivenciamos violações de dignidade. Bem recentemente, um potencial cliente requisitou de forma explícita facilitadores brancos para nossas sessões de treinamento. Quando questionado sobre por que tinha feito esse pedido, o cliente sugeriu que facilitadores negros são de algum modo incapazes de “envolver completamente” as pessoas brancas da equipe da organização. Essa demonstração racista foi uma negação da nossa expertise, da nossa experiência e do valor do nosso trabalho. Foi absolutamente desumanizadora. Nosso feedback foi específico em ressaltar a violação da dignidade que vivenciamos nessa troca. Contudo, a resposta que recebemos – de que nossa violação constituiu simplesmente um “desalinhamento” – foi uma deliberada reformulação para ignorar a violação e sua responsabilidade por conduzi-la. Isso exemplifica a negação da realidade que profissionais negros encaram diariamente.

A recusa em discutir violações de dignidade consiste na esquiva de responsabilidade e na recusa em lidar com o trabalho necessário para  reparar danos. A consequência dessa renúncia é um deslocamento do trabalho emocional para a pessoa violada, que recebe então o fardo não só de lidar com a violação, mas também de encontrar uma solução para tornar sua vida profissional administrável e seu local de trabalho tolerável.

Em vez de ignorar, repudiar ou renomear violações de dignidade, devemos adotar uma nova abordagem que ofereça um caminho para a reparação do dano baseado na resolução do conflito e na responsabilização.

 

Uma abordagem centrada na dignidade

 

A postura intransigente de que todas as pessoas têm valor, particularmente aquelas que são menos valorizadas pela sociedade, é essencial para uma abordagem centrada na dignidade, que cria os pré-requisitos para a restauração da conexão e da comunidade depois de um conflito. Apesar de não existir uma abordagem que abarque tudo, as organizações devem proteger a dignidade vigilantemente por meio da aprendizagem comunitária e de procedimentos concretos como políticas do local de trabalho escritas que incluam de forma explícita a linguagem da dignidade.

Um ambiente de trabalho no qual os valores de dignidade e responsabilidade são assegurados cria um campo fértil para a segurança psicológica nos relacionamentos e no local de trabalho. Culturas negras e indígenas postulam que a dignidade não só pertence aos indivíduos, como também se expande além da individualidade e envolve nossas relações mais importantes, incluindo família, comunidade, ambiente de trabalho e nação. Todos merecemos locais de trabalho que identificam ativamente – e depois eliminam – práticas que formal ou informalmente sustentam crenças e comportamentos de desumanização e racismo.

No lugar da estrutura superficial da DEI, sejamos honestos e trabalhemos pela afirmação da dignidade, porque reconhecer e reparar danos é o modo como cuidamos dos nossos locais de trabalho e os transformamos. A dignidade é essencial para a resolução de conflitos. E organizações comprometidas em construir ambientes equitativos deveriam se certificar de que a defesa da dignidade está à frente dos seus esforços.

 

A AUTORA

 

Aida Mariam Davis (@aidamariam) é fundadora e CEO da Decolonize Design (@decolonizedesign).



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