Como parcerias podem ajudar ONGs a trabalhar com IA
Organizações movidas pelo propósito devem olhar para além do setor de tecnologia e colaborar com instituições acadêmicas, comunidades, artistas e fundações com o objetivo de incorporar a inteligência artificial (IA) em suas atividades
Por Michelle Flores Vryn & Meena Das

A inteligência artificial (IA) pode impulsionar o terceiro setor quando é projetada para servir às comunidades defendidas por ele. Quando as ONGs pensam em incorporar a IA no seu trabalho, muitas recorrem a empresas de tecnologia na expectativa de obter ferramentas, conselhos de implementação e orientação ética. No entanto, quando entidades movidas pelo propósito — fortemente pautadas pela defesa das pessoas, das comunidades e da equidade — se associam exclusivamente ao setor privado, podem se deparar com diversos obstáculos, incluindo:
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A compreensão limitada das necessidades da comunidade: o conhecimento específico sobre o terceiro setor é essencial para alinhar a IA ao propósito das ONGs, algo que muitas empresas de tecnologia não possuem.
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Os vieses incorporados aos modelos de IA: sem contribuições diversas, os modelos de IA podem exacerbar preconceitos ou retratar de forma inadequada as comunidades atendidas pelas ONGs.
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Os recursos escassos: as soluções tecnológicas muitas vezes presumem orçamentos ou capacidades maiores do que as ONGs podem prover, gerando dependência de ferramentas que não se encaixam no contexto dessas organizações.
Para garantir que a tecnologia seja implementada de forma alinhada aos valores das ONGs, que construam confiança e sirvam ao bem comum, precisamos de colaborações criativas e diversificadas envolvendo vários setores. Buscar parcerias fora do universo das empresas de tecnologia ajuda as ONGs a desenvolver soluções de IA que sejam adaptadas ao seu contexto, além de equitativas e compatíveis com recursos escassos.
Mas, o mais importante, é que os profissionais do terceiro setor reflitam sobre a questão: como será um setor sem fins lucrativos fortalecido pela IA que coloca o bem-estar humano, a autonomia comunitária e a tecnologia ética em primeiro lugar?
Responder a essa pergunta significa não apenas reagir à tecnologia emergente, mas moldar proativamente o seu futuro. Em vez de simplesmente se adaptarem às capacidades da IA, as ONGs deveriam se questionar:
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Quais problemas realmente precisamos que a IA resolva?
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Quais vozes devem estar no centro da tomada de decisões sobre IA?
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Como garantimos que a IA permaneça uma ferramenta de empoderamento e não de controle?
Substituindo a abordagem tecnocêntrica pela colaboração multissetorial
Apesar de toda a sua experiência na construção de ferramentas e infraestrutura, as empresas de tecnologia geralmente carecem do tipo de entendimento setorial e sobre padrões éticos necessários ao mundo filantrópico. Quando as ONGs se associam exclusivamente a empresas de tecnologia, correm o risco de priorizar a eficiência e os dados em detrimento do impacto, da ética e das necessidades das comunidades. As ferramentas desenvolvidas a partir de uma abordagem centrada na tecnologia podem negligenciar vieses, equidade e acessibilidade.
A IA é como um jardim: sem diversas “sementes” (dados) e um cuidado criterioso (colaboração), pode crescer de forma desordenada e incontrolável, gerando resultados desalinhados com as missões das ONGs. Empresas de tecnologia talvez não compreendam como a IA pode aprimorar — em vez de prejudicar — as conexões humanas que estão no cerne do trabalho social.
As ONGs que atendem populações vulneráveis precisam de cautela extra ao implementar a IA para evitar o aumento de desigualdades existentes ou a criação de novos dilemas éticos. Ao colaborar com um conjunto mais amplo de parceiros — incluindo especialistas em ética, grupos comunitários e instituições acadêmicas — as ONGs conseguem proteger seus compromissos éticos de forma mais efetiva.
Como os desafios enfrentados pelas ONGs são complexos, expandir as parcerias para incluir o meio acadêmico, as ciências sociais, as políticas públicas e as artes pode ajudá-las a descobrir modos mais inovadores de superar obstáculos e formas criativas de usar a IA. A colaboração multissetorial viabiliza uma abordagem holística de resolução de problemas, combinando conhecimento técnico com um entendimento profundo de questões sociais e comunitárias.
Por exemplo, a iniciativa HumaneAI reúne ONGs e startups de IA com o objetivo de desenvolver ferramentas com foco em privacidade, projetadas especificamente para as necessidades do terceiro setor. Junto a defensores de privacidade de dados, essa iniciativa visa garantir que as ONGs possam adotar a inteligência artificial ao mesmo tempo em que garantem a segurança dos usuários (especialmente em assuntos delicados, como saúde mental e direitos humanos). Outro exemplo é a Climate Change AI, uma organização ambiental que utiliza machine learning para enfrentar desafios climáticos urgentes a partir da colaboração entre cientistas, especialistas em tecnologia e comunidades. A organização visa construir conhecimento e soluções que fortaleçam os esforços de conservação do meio ambiente.
Já o AI Equity Project, projeto do qual somos fundadoras, explora os desafios e as oportunidades para ONGs norte-americanas na adoção da IA, tendo como objetivo a promoção da equidade, a redução da disparidades de acesso e a capacitação das organizações em práticas de IA inclusivas e centradas no ser humano.
As colaborações criativas que miram para além das empresas de tecnologia podem envolver:
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O meio acadêmico e os think tanks
Universidades e centros de pesquisa estão na linha de frente dos estudos sobre as implicações sociais, éticas e políticas das tecnologias emergentes, com um nível de reflexão crítica e rigor que complementa o propósito das ONGs. Ao fazer parcerias com think tanks acadêmicos, as ONGs têm a possibilidade de se apoiar em pesquisas baseadas em evidências sobre como a IA pode — e deve — ser utilizada de forma responsável, especialmente em áreas que envolvem direitos humanos, privacidade e equidade social. Pesquisadores especializados em ética podem ser parceiros na formulação de diretrizes para a coleta de dados e na garantia de que as análises de IA respeitem a privacidade, além de ativamente reduzirem seus vieses. Parcerias acadêmicas também oferecem às ONGs acesso a conhecimentos e ferramentas especializadas que muitas vezes não estão disponíveis em soluções comerciais. Colaborações com instituições que pesquisam justiça algorítmica, por exemplo, podem ajudar a identificar e mitigar possíveis vieses em modelos de IA, fator crucial para organizações que atendem populações marginalizadas ou vulneráveis. -
As organizações comunitárias
A adoção eficaz da IA no trabalho de ONGs exige mais do que competência técnica: requer uma abordagem culturalmente responsável com a participação das comunidades. As organizações comunitárias trazem um conhecimento profundo sobre as necessidades, desafios e valores das populações locais, permitindo que as ONGs projetem soluções de IA que reflitam as experiências reais das pessoas. Por exemplo, uma ONG focada em insegurança alimentar poderia colaborar com bancos de alimentos e abrigos para compreender problemas específicos de acesso à alimentação, incorporando esses dados em uma ferramenta de IA que faça previsões de demanda de forma mais precisa. Além disso, as organizações comunitárias trazem responsabilidade e confiança ao processo, pois os membros da comunidade tendem a confiar mais em um projeto quando organizações conhecidas estão envolvidas.
As organizações comunitárias também podem oferecer feedback contínuo sobre programas que utilizem IA, ajudando as ONGs a realizarem ajustes frequentes para melhorar a relevância e a acessibilidade das ferramentas. Esse ciclo de feedback é fundamental para manter a IA ética, pois permite responder continuamente às necessidades e aos desafios em evolução na comunidade. -
Envolver artistas e contadores de histórias
A arte e a narrativa oferecem perspectivas singulares e centradas no ser humano sobre como a IA pode apoiar e fortalecer as missões das ONGs, servindo como uma ponte entre tecnologia e empatia. Ao colaborar com artistas e contadores de histórias, as ONGs conseguem comunicar dados complexos de modo visualmente atraente, criando identificação e ajudando o público a enxergar o impacto real por trás dos números. Por exemplo, uma ONG atuante na área de saúde poderia fazer parceria com artistas para apresentar as histórias dos pacientes, ajudando os doadores e formuladores de políticas públicas a compreender melhor o impacto humano das disparidades em saúde. Profissionais de storytelling também desempenham um papel vital ao garantir que a IA seja usada para valorizar as vivências dos indivíduos, em vez de reduzi-los a meros pontos de dados.
Parcerias com artistas e contadores de histórias não apenas tornam os insights gerados pela IA mais acessíveis, mas também reforçam a missão das ONGs, garantindo que a tecnologia seja um elo de compreensão e empatia — não uma barreira. Em resumo, o envolvimento de profissionais criativos pode humanizar a IA, assegurando que a tecnologia apoie, ao invés de prejudicar, a conexão humana. -
Fundações filantrópicas
Muitas fundações se interessam por financiar iniciativas de transformação social movidas por IA, além de atuar como facilitadoras, reunindo diversos grupos de interesse para fomentar colaboração e aprendizado coletivo. Para as ONGs, formar parcerias com fundações pode oferecer tanto recursos financeiros quanto oportunidades de cooperação necessárias para integrar a IA de forma responsável.
As fundações podem apoiar projetos de IA financiando pesquisas, programas-piloto e iniciativas de capacitação, garantindo que as ONGs tenham os recursos para experimentar a tecnologia sem comprometer sua estabilidade financeira. Por exemplo, a Ford Foundation já financiou projetos que exploram a interseção entre IA e justiça social, ajudando ONGs a utilizarem IA para combater desigualdades, respeitando compromissos éticos.
Além do financiamento, as fundações atuam como plataformas de diálogo multissetorial, reunindo especialistas em tecnologia, a academia e o setor social para abordar os desafios éticos e operacionais da IA. Elas também ajudam as ONGs a acessar informações e conhecimentos úteis, criando parcerias que conectam tecnologia, ética e impacto social. Ao colaborar com fundações, as ONGs podem participar de workshops, mesas redondas e outros fóruns que as ajudem a dialogar com especialistas em IA e a refinar suas estratégias. As fundações também podem ampliar a conscientização sobre os desafios enfrentados pelas ONGs na adoção dessa tecnologia, contribuindo para a formulação de políticas e padrões que promovam o seu uso equitativo e responsável.
Para ONGs interessadas em adotar IA, mas sem saber por onde começar, seguem algumas dicas práticas para construir parcerias de sucesso centradas na comunidade:
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Crie um roteiro para as parcerias: defina e articule a razão e o objetivo do uso da IA antes de buscar parceiros. Reflita sobre quem deve ser incluído no processo. As partes interessadas identificadas devem ajudar a esclarecer os objetivos da ONG e suas prioridades éticas, garantindo que os parceiros entendam o propósito por trás da tecnologia.
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Identifique parceiros guiados por valores: busque parceiros que priorizem impacto social e alinhamento com o propósito da organização. Muitos destacam seus valores nos sites institucionais e mostram como eles se aplicam na prática. Os parceiros ideais trazem não apenas conhecimento técnico, mas também um compromisso com equidade e práticas éticas.
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Estabeleça padrões éticos claros: crie coletivamente os “Valores que guiam o uso da IA”, uma declaração de compromissos éticos da organização, de preferência feita com a contribuição da comunidade, que visa orientar os projetos relacionados à IA. Esse arcabouço deve definir princípios sobre privacidade, inclusão e uso de dados, ajudando todos os parceiros a manterem-se alinhados.
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Equilibre prazos: as agendas de setores diferentes, como o meio acadêmico, podem ser bem diferentes daquelas das ONGs, portanto, é preciso flexibilidade e comunicação regular para garantir o alinhamento. Reserve tempo para ouvir as necessidades de cada parceiro na colaboração.
Para que as ONGs adotem a IA de forma bem-sucedida e ética, é fundamental ampliar as parcerias para incluir o meio acadêmico, as organizações comunitárias, os artistas, as startups éticas, as fundações filantrópicas e os formuladores de políticas públicas. Somente por meio dessas alianças diversas a IA pode reforçar as conexões humanas e promover a equidade.
AS AUTORAS
Michelle Flores Vryn, é uma profissional experiente de marketing e captação de recursos no setor sem fins lucrativos, com ampla experiência em áreas como biodiversidade, ensino superior e engajamento cívico. Ela foi co-fundadora de iniciativas de pesquisa, como o AI Equity Project, e atua no Conselho Global de Administração da AFP, impulsionando a evolução das estratégias de captação de recursos e o desenvolvimento de marcas de organizações sem fins lucrativos.
Meena Das é CEO da Namaste Data, uma consultoria de equidade em dados e IA que auxilia organizações sem fins lucrativos a projetar práticas éticas, centradas nas pessoas. Com 17 anos de experiência no setor de tecnologia e no terceiro setor, ela desenvolveu princípios como “community-centric data” (dados centrados na comunidade) e foi co-fundadora de iniciativas como o AI Equity Project. Ela é apaixonada por tornar tecnologias complexas acessíveis à geração de impacto social.