Construindo uma cultura de pertencimento
A Mosaic America fomenta consciência e respeito entre culturas através de sua programação artística.
Por Kathryn Dickason
A área da baía de San Francisco conta com uma rica diversidade de pessoas, apesar da mídia tradicional seguir retratando o Vale do Silício como a terra dos “especialistas” ricos e brancos do setor de tecnologia. As minorias raciais, na verdade, são a maior parte da população dos nove condados da área da baía, e quase 40% dos moradores locais nasceram no exterior.
Ainda assim, em meio a essa diversidade, a segregação racial e étnica persiste não apenas ali, como em todo o país. Essa realidade conflita com o símbolo dos Estados Unidos como um “caldeirão cultural” – metáfora forjada para passar a imagem de uma nação de assimilação cultural harmoniosa. Para Usha Srinivasan, cofundadora da organização sem fins lucrativos Mosaic America, “os Estados Unidos não são um caldeirão cultural, mas um mosaico”, imagem que reprsenta de modo mais preciso a heterogeneidade do país.
Srinivasan e Priya Das fundaram, em 2016, a ONG com sede em Saratoga, na Califórnia, para usar a arte como uma forma de transpor divergências culturais. A missão, afirma Srinivasan, “é fazer com que comunidades americanas passem da diversidade para o pertencimento”. Isto é, que as comunidades minoritárias não apenas sejam incluídas na sociedade, mas que se tenha a garantia de seu acolhimento e aceitação. Para que as pessoas se percebam parte de um lugar “elas devem se sentir empoderadas tanto para contribuir com as instituições sociais, culturais e políticas locais como, simultaneamente, para fazer-lhes exigências”, explica Srinivasan. “E quando todos têm essa sensação de pertencimento, há coesão social.”
Os eventos da Mosaic America apresentam artistas da região e líderes comunitários que ressaltam os pontos comuns dessa humanidade compartilhada, ao mesmo tempo que celebram suas diferenças. Por se tratar de uma organização sem fins lucrativos, a programação é gratuita. Embora utilize a arte como ferramenta para promover o pertencimento, essa não é uma organização artística – seu objetivo é promover coesão social e não a arte pela arte. A instituição foi fundada, em parte, como resposta às crescentes polarizações políticas e culturais do país.
Programação Intercultural
O objetivo da Mosaic America é fomentar a “competência intercultural” ou uma abertura para diversidade cultural entre comunidades, assim como a curiosidade sobre esse tema. O termo intercultural sugere entendimento e respeito mútuos perante todas as culturas – à diferença de multicultural, que reflete coexistência, mas não necessariamente interações significativas entre pessoas diversas. Para alcançar esse objetivo, a organização promove eventos pautados em aspectos regionais e que apresentam artistas de origem indígena e local que conhecem as diversas paisagens agrícolas e culturais da baía de San Francisco.
A Mosaic America já garantiu recursos para trabalhar com centenas de artistas locais; entre eles está Ray Furuta, flautista e compositor que também atuou como diretor musical da ONG. Em 2019, ele e seus companheiros compositores apresentaram a obra Precious Scars. A produção reimaginava a experiência dos campos de confinamento de japoneses e seus descendentes nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial no contexto da criminalização de mexicanos e centro-americanos promovida pelo governo Trump.
Projetos como Precious Scars, explica Furuta, “demonstram como somos parecidos por meio de nossas diferenças. E acho que essa similaridade e essa humanidade compartilhada nos levam ao conceito de pertencimento”. Para realizar o espetáculo musical, foi importante para Furuta, de ascendência japonesa e mexicana, engajar artistas de diferentes origens.
Uma das ações de maior sucesso é o Mosaic Festival. O evento anual híbrido tem como objetivo fazer com que as pessoas “tenham consciência da diversidade de sua região e, talvez mais importante do que isso, se vejam representadas”.
Desde seu lançamento, a Mosaic America enfrentou o desafio de convencer investidores de sua missão. “Ninguém acredita que o pertencimento é uma necessidade indispensável”, conta Das. No início, as cofundadoras trabalharam sem salário, dedicando tempo e energia para um empreendimento que entendem como enobrecedor e indispensável para o desenvolvimento da coesão social.
Elas perceberam rapidamente que havia a necessidade de contratar uma equipe e trabalhar com uma agência de marketing para expandir suas operações, medidas que demandam financiamento contínuo. Os esforços deram resultado e em seu primeiro ano a organização passou a receber doações. A primeira delas – ofertada em 2016 pela cidade de San Jose no valor de US$ 14.250 – possibilitou a contratação de dez artistas e grupos para cocriar obras de arte, além de garantir uma reserva para financiar futuras iniciativas culturais. Esse suporte inicial deu à Mosaic America a oportunidade de crescer e passar de uma organização dependente de voluntários para uma com dois empregados efetivos, quatro prestadores de serviços em tempo parcial e cinco estagiários.
As doações subsequentes vieram da Fundação David and Lucile Packard, do Instituto Devos e da Fundação Knight. Por reconhecer que a Mosaic America está garimpando os bens culturais disponíveis na área da baía de San Francisco, a Fundação Knight lhe concedeu uma doação de US$ 50 mil em 2016 e de US$ 250 mil três anos depois. E em 2021 a Mosaic America recebeu uma doação de US$ 300 mil da Fundação Hewlett, valor destinado a organizações da região que lidam com os enormes desafios impostos pelos custos imobiliários astronômicos, difícil acesso às artes e pela pandemia de Covid-19. Segundo Adam Fong, diretor de programas de artes cênicas da Hewlett, os esforços da Mosaic America para fortalecer comunidades locais fizeram da organização o destinatário ideal dessa doação.
A pandemia foi um desafio para a organização sem fins lucrativos, que, tradicionalmente, promovia apenas eventos presenciais. Felizmente, uma doação extra de US$ 40 mil da Fundação Knight, em 2021, assegurou à instituição os recursos para desenvolver uma programação digital e cultivar um público online. As exibições digitais são, em sua maioria, pré-gravadas, mas incluem segmentos interativos em plataformas como Zoom, Facebook e YouTube. Atualmente, a programação híbrida é um aspecto permanente da Mosaic America.
Mapeamento da História Artística
Um dos mais recentes projetos da organização é o Mosaic Atlas, um mapa digital de instituições de arte, artistas e centros comunitários da baía de San Francisco lançado em 2020. “Percebemos que artistas e produtores culturais estão se distanciando dos centros municipais e, assim, se marginalizando”, relata Das, “e que grupos culturais recém-criados e/ou isolados enfrentam dificuldades para se organizar e entender como obter apoio do município e de outros financiadores.”
As cofundadoras sabiam que seria necessário compreender profundamente os dispositivos culturais da região. Assim, contrataram Jan English-Lueck, professora de antropologia da San Jose State University (SJSU), que pesquisa a diversidade cultural do Vale do Silício. English-Lueck sugeriu Kerry Rohrmeier, professora de planejamento urbano e regional da SJSU e especialista em geografia digital, para comandar o projeto colaborativo que viria a se tornar o Mosaic Atlas.
O projeto envolve um processo de duas etapas. Primeiro, English-Lueck e seus alunos de pós-graduação realizaram entrevistas com artistas, curadores e organizações artísticas. Essas informações estão sendo incorporadas aos StoryMaps, mapas digitais interativos que contam histórias sobre lugares específicos.
O segundo passo do processo cabe a Rohrmeier e seus alunos pós-graduandos, que estão desenvolvendo sistemas de informação geográfica para mapear os dados etnográficos, incluídas experiências audiovisuais fundamentadas em histórias. Fazendo isso, estão criando um software livre, que, eventualmente, estará disponível para que qualquer pessoa com acesso à internet possa explorar a arte e a cultura da baía de San Francisco. Os usuários poderão conhecer o trabalho e a programação de eventos da organização sem fins lucrativos, bem como os artistas locais e acessar virtualmente conteúdos fotográficos e em vídeo produzidos por eles.
O Mosaic Atlas é “mais do que pontos em um mapa”, explica English-Lueck. “Queríamos criar algo que contasse mais uma história humana.” O atlas integra narrativas com experiências vividas na região. Ao incorporar dados do censo e do distrito escolar, também “acrescenta um componente de equidade que eu ainda não havia visto”, acrescenta Rohrmeier. O atlas, em outras palavras, evidencia algumas das comunidades menos visíveis.
English-Lueck acredita que o projeto incorpora a missão da Mosaic America de abrir caminhos para a inclusão. “O atlas vai criar um sentimento de conexão e pertencimento não só dentro das diferentes comunidades e gerações, como entre elas”, afirma. “E este é o ingrediente secreto da Mosaic America: as culturas caminham juntas e assim criam algo novo.” Esse esforço desafia diretamente os silos de redes socioculturais, que, nos últimos anos, se tornaram mais enraizados. “Os moradores da baía de San Francisco tendem a viver entre seus próprios grupos culturais e a se misturar apenas entre si”, explica Das.
O projeto do Mosaic Atlas deve estar disponível para o público em dois anos. A Fundação Hewlett financiou a primeira fase do projeto, conta Fong, porque “é o tipo de trabalho empírico extensivo para ajudar e beneficiar artistas e grupos locais por muitos anos”.
Ao longo dos próximos dois anos, Srinivasan e Das planejam usar o Mosaic Atlas para evidenciar culturas sub-representadas no Vale do Silício e em outras regiões.
As cofundadoras também esperam estabelecer divisões da Mosaic em campi universitários e corporativos, que são, essencialmente, cidades fechadas em suas próprias culturas. “Se nossa abordagem der certo aqui no Vale do Silício, saberemos que dará certo em qualquer outro lugar dos Estados Unidos”, afirma Srinivasan
A AUTORA
Kathryn Dickason é pesquisadora do Center for Ballet and the Arts da New York University; publicou diversos textos sobre cultura, arte e religião.