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Como os negócios podem enfrentar o populismo

No mundo todo, o populismo ressurge, mas empresas ainda podem agir corretamente e apoiar forças democráticas liberais

Por Zena Al-Esia, Andrew Crane, Kostas Iatridis e Ayşe Yorgancioğlu

 

Ilustração por Gérard DuBois

Quando a Disney decidiu ir contra o projeto de lei “Don’t Say Gay”, aprovado e sancionado na Flórida pelo governador Ron DeSantis em março de 2022, a empresa sabia que iria apanhar – mas não sabia o quanto. A lei, que proíbe que escolas públicas do estado falem sobre “orientação sexual ou identidade de gênero”, é acusada pelo movimento LGBTQ+ de tentar reduzir a visibilidade da comunidade e marginalizá-la na educação e na sociedade. DeSantis vendeu o projeto como uma medida necessária para combater a “ideologia de gênero ‘woke’” [o termo, que significa “desperto”, indica a consciência para causas sociais e políticas e é usado negativamente pelos que a elas não se alinham]. A oposição pública à lei colocou a Disney no centro de uma briga inédita por poder – que fez o governador revogar, em fevereiro de 2023, o caráter especial de distrito independente da Walt Disney World na Flórida. Com a decisão, DeSantis ganhou o controle do conselho gestor do distrito da Disney World, criando um novo comitê de supervisão, administrado por aliados seus.

Ataques a minorias sociais por questões morais – ou, mais dramaticamente, “guerras culturais” – não são novidade. Mas eles vêm sendo crescentemente usados por políticos como parte de uma estratégia populista para acumular poder. Populismo, segundo o cientista político Cas Mudde, é a corrente política que divide a sociedade em dois grupos opostos – o povo e a elite corrupta – para, então, defender que a política deve ser uma expressão da vontade do povo. Em resumo, é uma posição antielitista e antissistema que busca gerar divisão para conquistar poder.

Nos Estados Unidos, o populismo ganhou força em meados do século 19, quando o campo e sindicatos resolveram protestar contra banqueiros e políticos corruptos, cujas decisões tinham deixado agricultores endividados e sem recursos legais contra os altos valores de armazenamento e transporte da colheita. Essa aliança deu origem ao Partido do Povo – depois Partido Populista –, fundado em 1892 para lutar por reformas que beneficiassem a classe trabalhadora e regulassem o setor privado. Seu alvo específico eram monopólios que ganhavam com altas tarifas sobre o maquinário e bancos que faziam exigências duríssimas para liberar crédito e cobravam juros escorchantes do agricultor. O movimento foi perdendo força aos poucos, culminando na fusão do Partido do Povo com o Partido Democrata em 1896, que juntos indicaram o popular orador e jurista William Jennings Bryan como candidato à Presidência naquele ano.

 

À medida que o impacto de táticas populistas sobre o setor privado aumenta, as condições para uma ação empresarial responsável pioram. As empresas passam a navegar de forma passiva  por um cenário regulatório complexo e, muitas vezes, imprevisível

 

Nos últimos tempos, o populismo avançou pela América Latina, pela Europa e por outros lugares onde há gente que se sente abandonada pelo governo e desprovida de redes de segurança devido à rápida expansão da globalização e do capitalismo de livre mercado. Líderes autoritários como o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, e o premiê da Hungria, Viktor Orbán, adotam um discurso populista que explora tensões econômicas e culturais em torno de questões como imigração e comércio com outros países e declaram representar os interesses do povo. Outros políticos, incluindo os atuais líderes de Índia, Itália e Turquia e mandatários que deixaram o poder recentemente, como o brasileiro Jair Bolsonaro, o ex-premiê britânico Boris Johnson e o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, se apropriaram do populismo como estratégia política. Até líderes autoritários sabidamente partidários de táticas repressivas de hard power, como vigilância, assédio e repressão violenta de cidadãos, como o presidente chinês Xi Jinping e o príncipe herdeiro da Arábia Saudita Mohammed Bin Salman, adotam cada vez mais uma abordagem populista e se apresentam como paladinos do povo, em uma estratégia de soft power para mobilizar as massas.

Para muitos populistas, como DeSantis, é politicamente vantajoso atacar grandes empresas, que são retratadas como aliadas da elite corrupta e interessadas apenas em mais lucro. Esses políticos dizem defender os interesses da classe trabalhadora explorada por máquinas de fazer dinheiro como a Disney. Para piorar, populistas de direita e esquerda convergem na hostilidade contra conglomerados, já que ambas as facções classificam a hegemonia empresarial como um inimigo comum do povo – ainda que por razões distintas.

Isso dito, medidas populistas para supostamente satisfazer necessidades do povo são, com frequência, mais teatro do que realidade. Líderes autoritários usam vocabulário e discurso populistas para concentrar poder, fingindo lealdade ao povo – em nome do qual dizem falar, mas no qual projetam suas próprias opiniões. Essa narrativa permite aos populistas ganhar capital político e vilanizar empresas contrárias a sua agenda. Além disso, populistas apostam na desinformação e no embuste para atiçar a tensão social.

O populismo traz vários desafios para empresas como Disney, Ben & Jerry’s e Starbucks – todas adeptas da responsabilidade social empresarial (RSE), que significa adotar práticas que, além de lucro, rendem benefícios à sociedade. Nosso time de pesquisadores da Universidade de Bath, no Reino Unido, examinou esses dilemas para trazer novas ideias e novos recursos à busca do equilíbrio entre democracia e capitalismo. A seguir, mostramos de que maneira o populismo ameaça práticas empresariais responsáveis e explicamos por que uma empresa deveria adotar uma estratégia responsável, apesar desses desafios. Para encerrar, sugerimos uma estrutura geral de posturas responsáveis contra o populismo.

 

O perigo do populismo para a RSE

 

Segundo um estudo de 2023 do Carnegie Endowment for International Peace, o populismo “tem efeitos negativos na economia e na atividade empresarial”, em virtude da corrupção na política e do clientelismo. Yascha Mounk, professor de relações internacionais da Universidade Johns Hopkins, também crê que a economia de países liderados por populistas é mais volátil. Até agora, no entanto, o impacto do populismo na RSE não foi examinado com atenção nem pelo meio acadêmico, nem pela imprensa.

Identificamos três sérias ameaças do populismo a ela. Uma é abalar a reputação de empresas com acusações caluniosas de elitismo, outra é deslegitimar iniciativas em prol da sociedade ao declarar que o único propósito de uma empresa é o crescimento da economia e a terceira é manipular o mercado para impedir que haja condições para a atuação empresarial responsável.

PRIMEIRO, o populismo pode influenciar de forma negativa o modo como o público enxerga o papel de empresas na sociedade, levando a uma vigilância intensa e a desafios para manter práticas empresariais responsáveis. Ao retratar empresas como aliadas de uma elite corrupta, o líder populista busca minar fontes tradicionais de poder do meio empresarial: redes e associações setoriais. O populista retrata iniciativas de RSE como mero disfarce para incrementar o lucro, não para servir ao público.

Tachar empresas de desonestas condiz com a grande estratégia populista de polarização. Líderes populistas buscam alimentar a desconfiança da população não só quanto a empresas, mas também quanto a outros grupos considerados cultos e de elite, como acadêmicos e jornalistas – gente que trabalha com a linguagem e a informação. Populistas como DeSantis, por exemplo, tratam empresários do setor de tecnologia no país como a “elite do Vale do Silício” ao criticar iniciativas de RSE que, diz ele, “impõem uma agenda ideológica ao povo americano”. A intenção é convencer a população a acreditar que as empresas não estão do lado do povo.

 

Diante do populismo, uma empresa não precisa se abster de iniciativas de RSE. Aliás, pode agir como uma primeira linha de defesa quando ações do tipo exigem respostas rápidas, especialmente se elas se valerem de produtos ou serviços de uma empresa para promover sua agenda

 

SEGUNDO, líderes populistas tentam deslegitimar iniciativas socialmente responsáveis com base na tese de que desviam a empresa do propósito de criar mais empregos e fazer a economia crescer. É um argumento intimamente ligado à visão do economista Milton Friedman de que o único propósito de uma empresa é buscar o lucro dentro de sistemas econômicos e regulatórios vigentes. A ideia é fazer pressão para que a empresa se atenha a uma função econômica estrita e, assim, controlar o escopo de suas atividades. Nessa veia, populistas como DeSantis e o senador americano Josh Hawley atribuíram a quebra do Silicon Valley Bank, em março de 2023, a suas políticas de diversidade, equidade, inclusão e mudanças climáticas, desmoralizadas por populistas como uma cartilha “woke” que impediu o real objetivo do negócio. Do outro lado, especialistas do setor, como a CEO da Amadeus Capital Partners, Anne Glover, corretamente apontaram que o colapso se deveu a uma combinação de má gestão, juros altos e pânico de investidores.

Metas ambientais, sociais e de governança (ESG) despertam a fúria de populistas, para quem isso solapa o propósito da empresa – crítica que já fez surgir uma série de leis. Uma delas, criada no Texas em 2021, proíbe que empresas trabalhem com bancos que tenham políticas de ESG contrárias a empresas de combustíveis fósseis e armas de fogo. Outra foi sancionada por DeSantis em maio de 2023 proibindo os servidores do estado de realizarem investimentos em ESG. “Queremos que [empresas de investimento] ajam como fiduciárias, não que se metam nessas viagens ideológicas”, disse ele. Trump chegou a caracterizar a adoção de políticas ESG como um “lixo da esquerda radical que jamais atrairia investimentos por si só”.

A crítica ao ESG faz parte de um ataque geral à sustentabilidade, já que narrativas populistas defendem expressamente o crescimento econômico e o consumo desregrado de recursos naturais. Em geral, essa defesa contempla apenas os interesses de poucos, enxerga só o curto prazo e legitima ações ambientalmente destrutivas. O populista rejeita ações de proteção do clima e de sustentabilidade por não trazerem benefícios políticos ou econômicos claros e imediatos. Isso ficou evidente em 2017 com a política energética America First, de Trump, que derrubou proteções ambientais e autorizou projetos de infraestrutura como o polêmico gasoduto Keystone XL, para converter os Estados Unidos em produtor global de petróleo e gás. No Brasil, Bolsonaro fez o mesmo ao subverter a legislação ambiental que protege a Amazônia a fim de agradar o lobby do agronegócio – para o temor de acadêmicos e ambientalistas, que previam com isso a destruição da floresta, da biodiversidade e de comunidades indígenas locais.

Dependendo de quão persuasiva e virulenta seja, essa propaganda populista pode jogar consumidores contra uma empresa. Foi o que ocorreu no início de 2023 com a Bud Light, da Anheuser-Busch. As vendas da cerveja caíram quase 25% depois de uma campanha de marketing com Dylan Mulvaney, uma influencer transgênero popular no TikTok. A iniciativa provocou a ira transfóbica da mídia conservadora, com alguns chegando a pedir um boicote nacional à cerveja e comentaristas postando imagens de caixas da bebida destruídas. À luz dos quase 500 projetos de lei anti-LGBTQ+ apresentados nos Estados Unidos só em 2023, o exemplo da Bud Light mostra como a retórica populista alimenta uma guerra cultural maior – nesse caso específico, transfobia – que ameaça alienar os stakeholders de uma empresa.

A reação da Anheuser-Busch foi ceder à pressão do mercado. A cervejaria abandonou não só a campanha, mas também a influenciadora, que foi alvo de assédio e até de ameaças de morte. E, no final, a empresa soltou uma declaração vaga: “Nossa intenção nunca foi entrar em uma discussão que divide as pessoas. Nosso negócio é uni-las para tomar uma cerveja”. Esse comunicado não demonstrou solidariedade a Mulvaney ou à comunidade trans e indicou a volta da cervejaria ao statu quo, que é ganhar dinheiro e abdicar de seu contrato social. Mais tarde, diante da ameaça de perder o selo de “perfect corporate equality” (“igualdade corporativa perfeita”, na tradução literal) da Human Rights Campaign pelo tratamento dispensado a pessoas LGBTQ+ na empresa, a Anheuser-Busch buscou salvar sua reputação com uma doação de US$ 200 mil para o projeto Communities of Color Initiative da associação National LGBT Chamber of Commerce. Quando a postura de uma empresa se choca com bandeiras populistas, sua gestão pode se ver obrigada a assumir a responsabilidade de forma mais contundente ou abandonar a causa. Virar a casaca em questões de direitos civis é um problema seríssimo, pois a inconstância nos atos da empresa pode prejudicar a própria causa que se pretendia apoiar e alimentar a descrença da sociedade na responsabilidade empresarial.

TERCEIRO, o populismo pode minar o funcionamento do mercado. Líderes populistas agem de forma impulsiva, alterando normas e regulações para consolidar e aumentar o próprio poder. Essas mudanças podem incluir políticas que promovem o controle estatal de empresas, a imposição de novas tarifas, o aumento da burocracia, barreiras ao comércio externo e até o abandono de acordos internacionais, como fizeram o Reino Unido ao sair da União Europeia e os Estados Unidos ao deixar o Acordo de Paris. O motor dessas mudanças é a meta populista de semear a divisão na sociedade – a luta maniqueísta do “bem contra o mal” e a divisão da população em um “nós contra eles”. Simplista e divisiva, a estratégia de demonizar o “outro” tem como alvo minorias e grupos sub-representados – especialmente migrantes, refugiados e gente em busca de asilo –, convertidos em bodes expiatórios e culpados pela desigualdade econômica de uma nação e por seus índices de criminalidade.

O “nós contra eles” é um mantra hipernacionalista com influência negativa na visão que a população tem de companhias estrangeiras. Durante o governo Trump, empresas da China foram ameaçadas de boicote depois que algumas delas entraram para uma lista de entidades vetadas por questões de segurança nacional devido a ligações com os militares chineses. Uma delas, a Huawei, foi proibida de fazer negócios nos Estados Unidos. Trump instituiu várias outras medidas contra firmas chinesas, incluindo bancos de investimento, e chegou a retirar algumas das Bolsas de seu país. A virulenta retórica anti-China de Trump – o que incluiu culpar abertamente o país pela pandemia de covid-19 – contribuiu, e muito, para a escalada na violência contra asiáticos no país.

O hipernacionalismo também atinge companhias estrangeiras sob o pretexto de aumentar o “controle estatal” da atividade empresarial. Na Hungria, Viktor Orbán usou medidas regulatórias e econômicas, como impostos e tetos de preços, para expulsar firmas internacionais dos setores bancário, de telecomunicações e de energia e deixar o Estado assumir o comando. Em 2022, o governo pressionou a Vodafone a vender suas duas holdings húngaras ao Estado, alegando que a medida era crucial para “a segurança do fornecimento de serviços de telecomunicações” e, portanto, de “importância estratégica nacional”.

À medida que o impacto de táticas populistas sobre o setor privado aumenta, as condições para uma ação empresarial responsável pioram. Nesse cenário, o foco de empresas pode mudar. Em vez de uma ação totalmente engajada de responsabilidade social, passam a navegar de forma passiva por um cenário regulatório complexo e, muitas vezes, imprevisível. Essa mudança pode levar a empresa a ser mais reativa a alterações em políticas – e não proativa na busca de iniciativas com responsabilidade. Em última análise, isso pode ter impactos consideráveis na saúde e na integridade de sistemas de mercado.

 

Como e quando reagir

 

Apesar dos inúmeros desafios impostos pela guinada populista, muitas com-panhias não desistiram da responsabi-lidade empresarial de defender e pro-mover ideais democráticos e direitos humanos. A atitude de RSE da Ben & Jerry’s é prova do papel positivo que uma firma pode desempenhar no combate a pautas populistas mundo afora. Vejamos a resposta da fabricante de sorvetes a uma lei de migração no Reino Unido – a Illegal Migration, de 2023 – que impede refugiados de pedir asilo ao país quando chegam por mar. Ao apresentar o projeto de lei no Parlamento em 2022, Suella Braverman, então secretária de Interior, declarou que a lei refletia “a vontade do povo britânico”. Em resposta, a Ben & Jerry’s criticou abertamente Braverman e políticos que apoiavam o projeto de lei. Além disso, lançou uma campanha nas redes sociais, chamada Safe Routes for Refugees, para sugerir alternativas mais seguras para quem se dirigia ao Reino Unido em busca de asilo, incluindo um sistema digital de solicitação de visto que elimina a necessidade da viagem por mar.

Diante do populismo, uma empresa não precisa se abster de iniciativas de RSE. Aliás, pode agir como uma primeira linha de defesa quando ações do tipo exigem respostas rápidas, especialmente se elas se valerem de produtos ou serviços de uma empresa para promover sua agenda. O X (antigo Twitter) suspendeu permanentemente a conta de Donald Trump dois dias após o ataque ao Capitólio nos Estados Unidos em 2021 – por violação do protocolo de garantia da segurança pública da empresa. Trump e seus aliados tinham usado a plataforma para convocar e orientar seus apoiadores (o X, hoje controlado pelo bilionário populista Elon Musk, pôs fim à suspensão de Trump em agosto de 2023). A decisão do antigo Twitter por banir Trump resultou, em grande medida, da considerável pressão feita por stakeholders, incluindo usuários e anunciantes, que foram a público pedir à empresa que tomasse medidas imediatas. Nesse caso, é importante reconhecer que os motivos para uma empresa agir “corretamente” podem não ser altruístas, mas também uma decisão estratégica ligada a seus resultados financeiros.

 

Embora empresas responsáveis possam incluir distintos públicos na hora de decidir que postura adotar em temas fundamentais, é preciso estar ciente de que a propaganda populista é feita para manipular a opinião pública e pode influenciar a posição dos stakeholders acerca de temas ligados à RSE

 

Empresas com recursos financeiros consideráveis, redes influentes e cacife jurídico podem contestar tentativas populistas de exceder a autoridade legislativa. Foi o que a Disney fez. Após o revés inicial, usou sua equipe jurídica e fartos recursos para explorar uma brecha legal em seu contrato com o estado para frustrar o plano do governador DeSantis de retirar sua autonomia: uma formidável “cláusula real” segundo a qual o regime de autonomia administrativa da Disney permanecerá em vigor até 21 anos após a morte do último descendente do rei Charles 3º. Além disso, o patrimônio de mais de US$ 151 bilhões da Disney – que supera a riqueza de muitas nações – permitiu à empresa congelar toda doação de campanha a políticos que apoiaram o “Don’t Say Gay”. Na campanha eleitoral de 2020, a Disney doou um total de quase US$ 4,8 milhões a candidatos dos dois principais partidos na Flórida. Devido à iniciativa de DeSantis, a empresa prometeu doar essa cifra – US$ 5 milhões – a organizações que apoiam direitos LGBTQ+. Além de usar seu altíssimo cacife financeiro para questionar políticos populistas, no ano passado a Disney fez, em junho, Mês Internacional do Orgulho LGBTQ+, sua primeira “Pride Nite” oficial, em um claro gesto de destemor que honrou, em vez de apagar, a comunidade.

Já na Polônia, o partido populista no poder, o Prawo i Sprawiedliwość (PiS, “lei e justiça”), propôs em agosto de 2021 uma polêmica lei de meios de comunicação, a chamada Lex TVN, que imporia limites à participação estrangeira em emissoras polonesas. O principal canal de TV independente do país, a TVN, de propriedade da americana Discovery Inc., ameaçou entrar na Justiça. A TVN também obteve o apoio de autoridades americanas e emitiu alertas a investidores e empresas sobre o clima para investir e operar na Polônia. Essa pressão concertada levou o presidente Andrzej Duda a vetar o projeto em dezembro de 2021.

Uma empresa pode desempenhar um papel ativo na proteção do interesse público ao privar populistas de seus bens ou serviços ou ao se contrapor abertamente a iniciativas desse cunho. É preciso, contudo, definir com cuidado que brigas comprar e considerar agir apenas quando as medidas estão em conflito com seus valores. Fazer uma espécie de teste, pelo qual a companhia examine se seus valores divergem de agendas populistas, pode permitir que empresas responsáveis determinem qual o melhor caminho a seguir. O assunto em pauta está em conflito com os valores da empresa? A medida populista em questão prejudica seus clientes e stakeholders? Uma resposta afirmativa a qualquer uma dessas perguntas indica que uma postura empresarial responsável pode ser o caminho correto.

Concluído este teste, é hora de formular um plano de ação com base em dois fatores: recursos e urgência. Esse modelo, que pode ser compreendido no quadro abaixo, sugere quatro abordagens para lidar com o populismo. Podem ser utilizadas isoladamente ou combinadas, dependendo dos recursos de que a empresa dispõe e da urgência do assunto.

A empresa precisa, primeiro, determinar se tem capacidade para se opor a iniciativas populistas que estejam em conflito com seus valores. Embora a oposição exija recursos consideráveis, até companhias com recursos limitados podem adotar estratégias menos onerosas, fundadas na ação coletiva, como soltar declarações conjuntas ou fazer campanhas coletivas nas redes. Nos Estados Unidos, por exemplo, membros de uma rede nacional de pequenas empresas, a Main Street Alliance, soltaram em conjunto uma petição e um comunicado condenando uma decisão de Trump de 2017 que barrou a entrada de cidadãos de sete países de maioria muçulmana. A moção permitiu que essas pequenas empresas se opusessem a uma medida populista sem dilapidar recursos.

 

Um segundo fator é a urgência, que se impõe quando o populista autoritário altera leis ou normas ou incita a população à desobediência civil e à violência. Nesse caso, é preciso reagir rapidamente, especialmente se os populistas estiverem usando produtos ou serviços da empresa para promover seus atos nocivos – como ocorreu quando o Twitter baniu Trump por ter usado a plataforma para organizar o ataque ao Capitólio e falar com seus seguidores.

Em situações em que não há urgência, há inúmeras alter-nativas para a ação direta caso a empresa tenha recursos disponíveis e esteja disposta a se contrapor diretamente a líderes populistas. Entre elas está a criação de campanhas de alta visibilidade que envolvam a sociedade civil e busquem sua colaboração para produzir um impacto maior, como a campanha “Safe Routes for Refugees” da Ben & Jerry’s. Outra possibilidade é fazer doações a grupos ativistas para apoiar suas atividades ou patrocinar uma campanha educativa, como fez a Disney ao doar recursos a grupos LGBTQ+.

Aliás, não é nenhuma novidade ver companhias assumindo a responsabilidade que competiria ao Estado de zelar por seus cidadãos. Não é de hoje que o mundo empresarial preenche lacunas de governança – na saúde e em questões ambientais como o desmatamento – onde o poder público foi incapaz ou omisso no enfrentamento de problemas sociais, políticos e ambientais. Em condições de governança descentralizada, atores privados, incluídas aí empresas, volta e meia intervêm para abordar e elaborar soluções. Certas empresas podem tomar medidas contra populistas autoritários que não priorizam o bem-estar da população e até exercer uma força contrária a excessos.

É claro que nem toda empresa pode partir para a ação direta, seja por não querer, seja por não poder confrontar o populista. Propomos uma ação coletiva e medidas que não envolvam confronto como alternativas para minimizar tanto o risco de retaliação populista quanto o uso de recursos.

A ação coletiva é uma estratégia que reduz o risco de atrair a ira de populistas contra uma empresa específica. No contexto da RSE, isso significa colaborar com atores com ideias parecidas – tanto outras companhias como organizações da sociedade civil – e adotar uma postura comum sobre uma questão social específica. Na ação coletiva, a união faz a força, pois assim a necessidade de empenho e expertise se distribui entre participantes, reduzindo assim o volume de recursos, financeiros ou não, exigidos de cada ator individualmente. Em 2017, por exemplo, três grandes associações empresariais alemãs – a da Indústria de Baden, a Indústria de Engenharia Mecânica e a Associação para uma Saxônia Liberal, Aberta e Cosmopolita – se mobilizaram para lançar uma campanha midiática contra o partido populista conservador Alternative für Deutschland (AfD). Uma das razões citadas para a ação coletiva foi a defesa da democracia liberal, além de objetivos estratégicos ligados à atividade empresarial, como proteger companhias associadas que dependem de exportação.

Já uma estratégia de não confronto tenta minimizar o envolvimento direto com líderes populistas ao concentrar esforços no problema em si, não no indivíduo. A campanha da indústria farmacêutica para combater a desinformação sobre a vacina contra a covid-19 (e imunizantes de modo geral) enfatizou a informação científica para conquistar a confiança do público e refutar fake news, em vez de atacar líderes populistas que difundiam desinformação e pseudociência. Antes disso, em 2020, nove grandes laboratórios farmacêuticos, entre os quais Pfizer, Johnson & Johnson e AstraZeneca, já haviam soltado uma declaração conjunta sobre produção de vacinas sem citar diretamente nenhum líder populista. Em vez disso, se comprometeram a “ficar do lado da ciência [pois] este compromisso ajudará a garantir a confiança do público”.

 

Pronta para o ataque, o contra-ataque e o que mais vier

 

Fazer frente ao populismo não é tarefa fácil, e qualquer empresa que resolva assumir o desafio provavelmente vai sofrer alguma reação negativa da sociedade, como a vivida pela Bud Light, ou uma retaliação política, como no caso da Disney. Toda companhia precisa saber que o escopo e o conteúdo de sua estratégia de RSE vão sofrer forte pressão política em ambientes populistas. Com a ajuda de nosso modelo, portanto, gestores devem formular estratégias para contestar prioridades e agendas de forças populistas. Deixemos claro que esse modelo não prega uma metodologia única. A companhia pode adotar uma série de abordagens, segundo seus objetivos e sua capacidade – desde a contestação direta de populistas, quando suas políticas ameaçam os valores centrais da empresa, até uma atitude mais moderada para reduzir uma potencial repercussão negativa.

Em contextos populistas, a interação com stakeholders provavelmente também se verá complicada pela disseminação de desinformação e mentiras. Embora empresas responsáveis possam incluir distintos públicos na hora de decidir que postura adotar em temas fundamentais, é preciso estar ciente de que a propaganda populista é feita para manipular a opinião pública – podendo, portanto, influenciar a posição dos stakeholders acerca de temas ligados à RSE. A companhia precisa adotar uma abordagem respaldada por informações para garantir que toda atividade socialmente responsável incorpore subsídios de todos os stakeholders relevantes, garantindo uma boa representação desses interessados nas deliberações. Com isso, as empresas podem formular uma postura política alinhada com a vontade pública, valendo-se de um processo democrático para desmentir a tese populista de que seriam a “elite” agindo contra o “povo”.

Também é preciso entender que o grau de contestação do populismo pela empresa vai depender muito do contexto político no qual ela opera. É preciso que ela esteja atenta ao cenário político como um todo. O populismo pode se manifestar em todo o espectro ideológico, incluindo em regimes democráticos, autocráticos e híbridos. Boa parte da nossa discussão está relacionada a populistas em ambientes democráticos nos quais um sistema de freios e contrapesos institucionais pode ajudar a proteger a empresa de ataques populistas. Efetivamente, a democracia torna possível o confronto do populismo, já que a empresa pode recorrer ao Poder Judiciário para fazer valer a lei. Mesmo em nações onde a democracia está ameaçada, como Polônia e Hungria, empresas como a TVN acharam maneiras de enfrentar ameaças populistas a suas iniciativas socialmente responsáveis.

Uma postura empresarial responsável dá a empresas uma oportunidade única de apoiar processos democráticos que se opõem a narrativas populistas e dar vazão a anseios de stakeholders que muitas vezes são silenciados em sociedades lideradas por populistas autoritários. Isso posto, a natureza complexa e fluida do populismo produz um cenário em constante mudança para a iniciativa privada e pode deixar empresas sem saber como agir de forma responsável. Esperamos sinceramente que nossa análise e suas conclusões ajudem dirigentes empresariais a detectar ameaças e a saber quando reagir a elas. Esperamos, também, inspirar organizações a ir além da responsabilidade mínima de não fazer o mal e assumir o dever positivo de fazer o bem e apoiar forças democráticas liberais.

 

OS AUTORES

Zena Al-Esia integra o Centro de Administração, Empresas e Sociedade da Universidade de Bath, no Reino Unido, e é pesquisadora na faculdade de administração da mesma universidade.

Andrew Crane é diretor do Centro de Administração, Empresas e Sociedade da Universidade de Bath.

Kostas Iatridis é diretor de estudos do mestrado em sustentabilidade e gestão da Universidade de Bath e membro do Centro de Administração, Empresas e Sociedade da instituição.

Ayşe Yorgancioğlu integra o Centro de Administração, Empresas e Sociedade da Universidade de Bath e leciona na Universidade Bilgi de Istambul.



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