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Invocando ouro líquido do ar

A organização sem fins lucrativos Dar Si HMAD utiliza a antiga tecnologia de coletar neblina para lidar com a escassez de água no Marrocos

Por Atharv Agrawal, Wajed Nadine El-Halabi e Jina Yazdanpanah

As redes CloudFisher ficam no topo do Monte Boutmezguida, na província de Sidi Ifni, no Marrocos. (Foto cortesia de Dar Si Hmad)

Nos picos enevoados da cordilheira do Anti-Atlas, no sudoeste do Marrocos, vivem os amazighs (“povo livre”), grupo cultural e étnico que compreende cerca de três quartos da população do país. Suas aldeias na província montanhosa de Sidi Ifni ficam social e geograficamente isoladas em uma região extremamente árida, com temperaturas e desertificação crescentes.

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O maior desafio ambiental da região tem sido a escassez de água devido ao declínio das chuvas. Os amazighs, cuja subsistência depende da agricultura e da pecuária, sempre percorreram longas distâncias até poços e cisternas familiares. Em períodos de seca, tiveram de comprar água a preços altos ou andar até distantes comunas rurais para obtê-la. A escassez prejudica a economia local, fazendo com que homens em idade de trabalhar partam, enfraquecendo as estruturas sociais e a cultura amazigh.

Aissa Derhem, um amazigh de Taloust, conheceu a coleta de neblina nos anos 1980, quando cursava seu doutorado em matemática na Universidade Laval, em Quebec, no Canadá. Essa prática para obter água existe desde pelo menos o período romano. A tecnologia moderna usa os chamados grandes coletores de neblina (LFCs, na sigla em inglês), feitos com uma rede de malha que retém a neblina por condensação. A água adere à rede, corre para o fundo dos LFCs e é levada a um reservatório para armazenamento e distribuição.

Derhem percebeu que essa tecnologia poderia ajudar comunidades como a dele, especialmente porque a neblina era abundante no topo das montanhas do Anti-Atlas. Mas só quando voltou para o Marrocos, no início dos anos 2000, depois de lecionar na Universidade Laval, foi atrás da ideia.

Em 2006, procurou Robert Schemenauer, cofundador da ONG canadense FogQuest, que projeta e implementa tecnologia de coleta de neblina para comunidades rurais de países em desenvolvimento. Schemenauer o pôs em contato com uma equipe de especialistas e estudiosos da FogQuest da Universidade de La Laguna, em Tenerife, Espanha, para avaliar o potencial de coleta de neblina no monte Boutmezguida. Seu cume está idealmente exposto ao nevoeiro, que vai para o interior a partir da costa, e sua altura fornece abrigo natural para as redes de neblina.

Após quatro anos estudando o potencial das montanhas, em 2010, Derhem e sua esposa, a antropóloga e ativista Jamila Bargach, fundaram a Dar Si Hmad (DSH), organização sem fins lucrativos de coleta de neblina e cadeia de abastecimento de água que atende ao povo amazigh. Bargach lecionou na Escola Nacional de Arquitetura na capital marroquina, Rabat, e foi uma das fundadoras de um abrigo para mulheres em Casablanca. Ela foi responsável por formalizar as operações da DSH, inclusive elaborando uma estratégia de arrecadação de fundos e a condução de pesquisas demográficas básicas.

“Quando falo da organização, não consigo separá-la da minha vida pessoal”, diz Bargach. “Sempre que conto essa história, é quase uma experiência religiosa ou espiritual para mim. Durante anos, todos os dias a neblina estava à nossa mesa de jantar.”

Desde que foi fundada, a DSH instalou 1.700 m2 de redes de coleta de neblina no cume do Boutmezguida, canalizando água para as casas de 16 aldeias da região. Hoje, é o maior projeto de coleta de neblina do mundo.

 

O efeito líquido

A DSH lançou seu piloto em 2011, em colaboração com a FogQuest, para avaliar a adequação da rede e a produção de água na região do Anti-Atlas. Embora a produção tenha sido positiva, a recepção inicial dos aldeões não foi. Eles desconfiavam da tecnologia estrangeira. Em testes, ficou claro que eles também tiveram especial dificuldade para gerenciar as necessidades de várias famílias por meio de uma torneira comunitária. Em resposta a isso, a DSH redesenhou o abastecimento para levar a água a cada casa.

Entre 2012 e 2015, a DSH recebeu apoio financeiro do fundo de desenvolvimento da fundação alemã Munich Re. Em 2017, a Munich Re conectou a DSH à Water Foundation, o que permitiu a adoção da tecnologia CloudFisher. Esta, mais atual, usa redes em forma de favo, que dobram a produção de água e requerem menos manutenção do que as FogQuest. Com isso, pôde expandir seu serviço para 150 residências, 82% dos lares das aldeias em que a DSH opera.

Essa implantação também teve apoio do ministério alemão de Desenvolvimento Econômico e Cooperação, que deu financiamento para a instalação das novas redes, assim como para os programas de apoio da DSH, incluindo oficinas comunitárias de Wash (água, saneamento e higiene, na sigla em inglês) e projetos educacionais.

A organização obteve apoio de vários financiadores e stakeholders externos. A Munich Re doou mais de € 400 mil por cinco anos, até 2018. Em 2013, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) doou US$ 60 mil. Com o apoio dela, a DSH contratou especialistas, construiu uma estação meteorológica de monitoramento no topo do Boutmezguida e instalou sistemas de água alimentados por energia renovável.

Além da coleta de neblina, a DSH tenta fomentar a cultura de sustentabilidade, valendo-se de iniciativas de educação e ciência nas comunidades. A organização criou um centro de pesquisa em sustentabilidade e uma escola de campo etnográfica para oferecer essas iniciativas e treinamentos em Wash.

 

Desafios da água abundante

Apesar da expansão do programa, a DSH enfrentou obstáculos consideráveis. A cultura tradicional afetou a implementação do projeto de coleta de neblina mais do que os contratempos técnicos. Enquanto os amazighs que se envolveram na fase experimental, em 2006, abraçaram o projeto, outros o rejeitaram. Em resposta, a DSH organizou programas educativos e de conscientização, como cursos sobre a água para crianças e aulas de alfabetização para mulheres, a fim de envolver e educar os aldeões. Esse engajamento transmitiu aos locais a noção de que o investimento era sério, o que criou confiança e aumentou a aceitação do projeto.

Em 2011, quando o sistema de coleta de neblina já estava funcionando, a DSH se deparou com a resistência a um novo modo de vida. A cultura amazigh se ancorava na escassez de água, bem como em adversidades cruzadas como isolamento geográfico, marginalização social e dificuldades econômicas. Antes da chegada da DSH, a coleta de água consumia quase quatro horas por dia, sendo gerida exclusivamente por mulheres e vista por elas como um rito de passagem.

 

“Executar um programa como esse requer correr alguns riscos, ou você não alcançará as pessoas que almeja”

 

O projeto da DSH, especialmente depois do sistema CloudFisher, subverteu os papéis de gênero no núcleo da sociedade amazigh, diminuindo o poder e a primazia de mulheres que tinham o papel de “guardiãs da água”. Como explica Bargach, “uma vez que você obtém a água, você a tem, a possui… ela lhe confere poder. Quando ela entra direto em sua casa, você perde esse poder”. Bargach acrescenta que essa mudança afetou também a dinâmica social entre as gerações de mulheres. “As mulheres mais velhas dizem: ‘Passei a vida toda pegando água e agora [as mais jovens] não trabalham’.”

A DSH rapidamente reconheceu o risco da perda cultural e o fato de que a gestão da água era uma das poucas partes da vida amazigh em que as mulheres tinham autoridade. Em 2014, a empresa criou os FogPhones, dispositivos móveis projetados para que mulheres monoglotas e pouco alfabetizadas monitorassem e relatassem as condições do sistema de distribuição de água usando imagens via mensagens de texto. Os FogPhones permitiram que as mulheres recuperassem algum poder por meio do controle do fluxo de informações a respeito do sistema.

Além desses desafios sociais, o frágil entorno das operações da DSH enfrenta ameaças contínuas devido às mudanças climáticas. Neste ano, a estação chuvosa chegou em março, meses atrasada. Regiões famosas pela apicultura estão padecendo a morte das árvores de argan, essenciais para a atividade, pela seca. As infestações de cochonilhas reduziram os arbustos de cactos. Em três anos, quase 300 mil hectares de terra se aridificaram. Dados os riscos crescentes decorrentes da crise do clima, a DSH reluta em rotular seu trabalho como sustentável. “Dizer isso poderia ser demais”, afirma Bargach sobre a impossibilidade de medir a sustentabilidade em um ambiente tão instável.

A coleta de névoa da DSH é um trabalho em andamento. Atingiu marcos consideráveis, utilizando água de neblina para a agricultura e revitalizando terras desertificadas, reduzindo doenças transmitidas pela água e o tempo de coleta de água e aumentando as oportunidades de emprego e frequência escolar feminina. A DSH continua a responder às condições sociais e ambientais em constante mudança por meio da colaboração ativa com parceiros externos e especialmente com os amazighs, que têm autoridade para tomar decisões no projeto e em programas relacionados. Os outrora céticos aldeões são hoje os maiores defensores do projeto. A DSH tem planos de expandi-lo para mais 12 aldeias no Anti-Atlas.

“As pessoas perguntavam o que estávamos fazendo. Caçando diamantes?’”, lembra Mounir Abbar, gerente de projetos da DSH. “Aqueles que riram de nós perceberam que a água é o verdadeiro diamante.”

OS AUTORES

Atharv Agrawal é consultor em energia, sustentabilidade e infraestrutura na Guidehouse.

Wajed Nadine El-Halabi é líder de educaão para a cidadania global do Alberta Council for Global Cooperation.

Jina Yazdanpanah é engenheira desenvolvedora de uma calculadora de emissões de carbono com a Isla Urbana.



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