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Arquivando a história indígena

A Native Bound Unbound está documentando digitalmente a história há muito ignorada das populações indígenas escravizadas nas Américas

Por Tim Keary

Um documento de 1739 detalha uma incursão de escravos na Amazônia. (Foto cortesia de Native Bound Unbound).

Para o historiador Estevan Rael-Gálvez, a história não é simplesmente um registro do passado. Ela nos permite aprender não apenas com os triunfos, mas também com as atrocidades humanas. A importância da história o inspirou a criar o Native Bound Unbound, um projeto de arquivo digital dedicado a documentar a vida de populações indígenas escravizadas nas Américas entre os séculos 15 e 19.

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O tráfico de escravos começou em 1495, quando espanhóis capturaram 1.600 indígenas no Caribe. Esses nativos, entre eles crianças, foram embarcados para a Espanha para serem vendidos, ou “distribuídos” entre colonizadores.

A Native Bound Unbound tem suas origens em décadas de pesquisa histórica de Rael-Gálvez no México, norte do Novo México e sul do Colorado. Mas o projeto em si só foi estabelecido em janeiro de 2022, depois que sua ideia recebeu US$ 1,5 milhão da Andrew W. Mellon Foundation, em dezembro de 2021. A sede do projeto é a Escola de Pesquisa Avançada, em Santa Fé, Novo México, da qual Rael-Gálvez é um dos diretores. O programa se encontra em fase inicial, com o historiador e cerca de 50 voluntários construindo um repositório centralizado de registros digitais sobre a vida de pessoas escravizadas, com base em materiais coletados em bibliotecas, museus e coleções particulares por todo o mundo.

“Em conjunto, esses documentos de arquivo e expressões culturais abrangem histórias indeléveis de pessoas, lugares, momentos no tempo que, quando reunidos, refletem uma história única, tanto da brutalidade sofrida quanto da resiliência daqueles que passaram pela escravidão”, diz Rael-Gálvez, que também atua como diretor-executivo e principal pesquisador do projeto.

Alguns voluntários estão processando materiais de fontes primárias e secundárias provenientes da América do Norte, América do Sul, Europa e do Caribe. Outros estão traduzindo e transcrevendo documentos em inglês, espanhol, português e francês. Um grupo de programadores voluntários está construindo o site por meio do qual pesquisadores, descendentes de populações indígenas escravizadas e o público em geral poderão acessar o repositório.

Guillaume Candela, professor de História Colonial Latino-Americana na Universidade de Leeds, é consultor e pesquisador associado do projeto. Ele é responsável por processar fontes primárias produzidas no rio da Prata nos séculos 16 e 17.

Para Candela, a Native Bound Unbound visa mais que a simples preservação histórica. A iniciativa também identifica os povos indígenas como protagonistas de sua própria história. “Uma das grandes missões do projeto é desconstruir a colonialidade dos manuscritos do passado para destacar o [papel ativo] dos povos nativos das Américas ontem e hoje”, ele explica.

Na prática, isso implica analisar e interpretar fontes primárias para recontar eventos pela perspectiva das populações indígenas. Candela identificou mais de 700 figuras indígenas que haviam “caído no esquecimento”. Cada perfil proporciona aos descendentes das comunidades nativas uma oportunidade de reconstruir sua própria identidade cultural e a história familiar – um conhecimento tradicionalmente restrito à história oral.

Candela observa que “a visibilidade ampliada e o acesso a essas histórias tornarão possível apresentar projetos educacionais e científicos de alto nível, além de beneficiar os descendentes dessas comunidades oprimidas e exploradas”.

A Mellon Foundation é a única financiadora da Native Bound Unbound. De acordo com Justin Garrett Moore, funcionário da Mellon, “a Native Bound Unbound tem o potencial de servir como ferramenta para que descendentes de indígenas americanos escravizados acessem a memória geracional e possam se ver refletidos na história e na esfera pública”.

Pesquisadores como o historiador Linford D. Fisher, da Universidade Brown, também salientam o foco crucial da Native Bound Unbound na história da escravização dos indígenas nas Américas. Trata-se de uma parte considerável “da história da escravidão que tem sido ocultada”, observa Fisher, uma vez que, segundo as estimativas, de 2 milhões a 5,5 milhões de americanos nativos foram escravizados entre 1492 e 1880.

O propósito final da Native Bound Unbound, diz Rael-Gálvez, é tornar-se um espaço cultural que permita “recuperar e compartilhar a história da escravização dos indígenas nas Américas a fim de dar destaque a uma narrativa menos conhecida que a do tráfico transatlântico de escravos, a qual teve impacto sobre milhões de africanos”.

O AUTOR

Tim Keary é um jornalista e escritor freelance que aborda inovações tecnológicas e aspectos sociais.



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