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Cuidar de quem cuida

A saúde mental está em crise no mundo; o terceiro setor no Brasil tem desafios específicos a enfrentar

Por Daiany França Saldanha, Sophia Maggi de Goes, Rodrigo Alvarez e Camila Stefanelli Meireles

Shutterstock

A pandemia de covid-19 escancarou o problema da saúde mental de forma geral, incluindo o impacto no mundo do trabalho. Estudos da Organização Mundial da Saúde e da Organização Internacional do Trabalho mostram que, globalmente, 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos anualmente devido à depressão e à ansiedade. No Brasil, uma pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul revelou que, em 2020, 80% da população relatou aumento nos níveis de ansiedade e 68% apresentou sintomas de depressão. 

Se a situação já é preocupante de forma geral, no terceiro setor ela se agrava ainda mais. De acordo com pesquisa da Sitawi Finanças do Bem e da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, o setor emprega 5,88% da força de trabalho do país. Estudos realizados em 2023 pela Phomenta e pela Mobiliza/Plataforma Conjunta mostram que muitos profissionais de organizações da sociedade civil (OSCs) enfrentam um desequilíbrio entre vida pessoal e profissional, com um número expressivo relatando sintomas de depressão e ansiedade.

Neste artigo, buscamos apresentar dados que ajudem a refletir sobre a saúde mental e o bem-estar dos profissionais do terceiro setor no Brasil, além de sugerir recomendações para aprimorar as políticas organizacionais e o suporte oferecido a esses profissionais nas OSCs.  

 

Panorama no terceiro setor

Os problemas de saúde mental afetam de forma desproporcional diferentes grupos dentro das OSCs. Em uma pesquisa realizada pela Phomenta em 2023, 55% dos profissionais do terceiro setor descreveram sua saúde mental como “regular” ou “ruim”, enquanto 45% a classificaram como “excelente”, “boa” ou “muito boa”. De forma semelhante, um estudo da Mobiliza/Plataforma Conjunta, também de 2023, revelou que apenas 20% dos profissionais de captação de recursos afirmaram estar “evoluindo/prosperando com excelência”, enquanto a maioria, 64%, relatou estar “em crise/lutando”.  

O excesso de tarefas e demandas, combinado com a escassez de recursos ou a baixa qualidade dos recursos disponíveis, frequentemente não alocados para remunerar adequadamente os principais envolvidos no trabalho das OSCs, cria um ciclo vicioso. Esse fenômeno é bem descrito no clássico artigo “O desafio de romper o ciclo”.

Na pesquisa da Phomenta, 64% dos profissionais mencionaram o excesso de demandas e tarefas, enquanto o estudo da Mobiliza/Plataforma Conjunta apontou que 53% relataram sobrecarga e excesso de trabalho. Além disso, 50% dos entrevistados pela Phomenta destacaram a falta de recursos adequados, alinhando-se aos 49% que, segundo a Mobiliza/Plataforma Conjunta, mencionaram a insuficiência de equipe. 

A dificuldade em equilibrar a vida pessoal e profissional também foi um ponto relevante na pesquisa da Phomenta: 40% dos profissionais relataram sentir a balança “um pouco desequilibrada em favor do trabalho”, e 23% afirmaram que ela é “muito desequilibrada em favor do trabalho”. Os profissionais das OSCs frequentemente trabalham até tarde e durante os fins de semana, sacrificando momentos de lazer e convivência familiar para atender às demandas de suas organizações. 

A dificuldade das OSCs em cobrir seus custos operacionais contribui diretamente para esse ambiente laboral estressante e sobrecarregado, como indica o depoimento de uma das participantes do estudo da Mobiliza/Plataforma Conjunta: “Sou coordenadora de uma organização pequena, mas que é referência no que faz, trabalhamos com a população em situação de rua na região Sul do país. Toda a captação, articulação, incidência política e organização ainda ficam comigo […] eu me sinto imensamente sobrecarregada”.

Quem sofre mais

A pesquisa da Phomenta indica que, nesse quadro desafiador, mulheres em geral, mulheres negras, especificamente, e jovens são os mais afetados por problemas de saúde mental. 

Quase 60% das mulheres demonstram algum nível de preocupação com a sua saúde mental, um índice significativamente maior do que o registrado entre os homens, dos quais menos de 45% expressaram preocupações semelhantes. Esse dado é ainda mais alarmante quando consideramos as interseccionalidades de gênero e cor/raça: mulheres pretas e pardas relatam enfrentar maiores desafios, com 62% delas avaliando sua saúde mental como “regular” ou “ruim”. 

As questões relacionadas a gênero e raça no terceiro setor encontram um paralelo dramático na pesquisa “Esgotadas”. O estudo da Think Olga oferece um mergulho na saúde mental das brasileiras, revelando que, antes mesmo da pandemia, mais de 1 bilhão de pessoas viviam com algum tipo de transtorno mental no mundo, sendo as mulheres mais da metade desses casos. 

No Brasil, a situação era particularmente grave: sete em cada dez pessoas diagnosticadas com depressão e ansiedade eram mulheres. São dados especialmente relevantes para as OSCs, considerando que o terceiro setor é majoritariamente composto por mulheres, conforme evidenciado no texto de 2019 “O trabalho das mulheres nas organizações sociais no Brasil: desigualdades e paradoxos”, de Graciela Hopstein e Martina Davidson.

Por fim, ao analisarmos especificamente os dados sobre os jovens, percebemos que, segundo a pesquisa da Phomenta, aqueles de 18 a 24 anos apresentaram os maiores índices de saúde mental “regular” ou “ruim”, 69% e 70%, respectivamente. 

Esse cenário é corroborado por um estudo do Instituto Cactus em parceria com a Atlas Intel, que revela uma deterioração alarmante da saúde mental entre jovens brasileiros de 16 a 24 anos. Eles registram índices particularmente baixos no Icasm (índice desenvolvido especificamente para medir aspectos da saúde mental), com 534 pontos, bem abaixo da média nacional de 635.  

A dificuldade das OSCs em cobrir seus custos contribui diretamente para um ambiente laboral estressante e sobrecarregado

 

Um trabalho em três níveis

Partindo da premissa de que as questões de saúde mental no mundo do trabalho, incluindo o do terceiro setor, são complexas, as recomendações para enfrentá-las devem considerar uma visão integral da realidade. Assim, indicamos recomendações em três níveis de atenção: da sociedade, das organizações e dos profissionais do terceiro setor. 

Sociedade e filantropos | Há uma baixa compreensão das necessidades do setor por parte da sociedade e em especial pelos investidores sociais/filantropos. Neste aspecto, recomendamos:

  • fortalecer a prática do grantmaking no Brasil, valorizando a flexibilidade, a abertura para apoiar com recursos livres e por prazos mais extensos, nos modelos de investimento social privado;

  • ampliar as práticas de investimento social para o desenvolvimento institucional e para fortalecer a capacidade de mobilização de recursos das OSCs;

  • aprofundar pesquisas no setor que identifiquem qual o custo real do desenvolvimento institucional das OSCs e promover debates e reflexões acerca dos efeitos associados aos modelos prevalentes de investimento social privado na saúde mental de profissionais do setor. 

OSCs/Lideranças sociais | Há pouca reflexão sobre o desenvolvimento institucional das OSCs. Neste aspecto, recomendamos:

  • aprofundar as reflexões a esse respeito, reconhecendo e valorizando as características da organização e seus conhecimentos inerentes;

  • investir no planejamento estratégico institucional, cuidando de forma realista da dimensão do tempo. O trabalho institucional, muitas vezes, requer prazos largos e trabalho frequente e sistemático para obter os resultados esperados;

  • investir na saúde mental de seus colaboradores, em especial mulheres/mulheres negras e jovens, criando espaços e oportunidades para discutir o tema e buscar estratégias institucionais para lidar com ele.

Profissionais do setor | Por fim, há pouca clareza sobre os papéis e responsabilidades das pessoas dedicadas no setor e baixa integração entre as diversas áreas dentro de uma organização. Quanto a isso recomendamos:

  • compreender melhor quais as necessidades de equipe e o perfil de profissionais necessários, a partir do planejamento estratégico institucional;

  • fomentar a integração institucional, criando mais espaços de troca e reflexão;

  • buscar aprimoramento, formação permanente e apoio da organização para a construção de seus membros como profissionais do campo. 

A partir das pesquisas da Phomenta e da Mobiliza/Plataforma Conjunta e das nossas próprias experiências laborais e percepções acerca do campo, confirmamos os sérios desafios relacionados à saúde mental e bem-estar de profissionais do terceiro setor. 

É importante reconhecer as limitações deste artigo – os dados das pesquisas dependem de dados autorrelatados e falta ainda uma análise longitudinal que acompanhe as mudanças ao longo do tempo. Embora as recomendações apresentadas sejam fundamentadas em pesquisas e boas práticas, estamos cientes de que sua implementação pode variar significativamente entre diferentes OSCs, dependendo de suas capacidades e contextos específicos.

Esperamos que, ao implementar programas de suporte ativo, capacitação e desenvolvimento institucional, as OSCs possam criar um ambiente de trabalho mais saudável e seguro para todas e todos. Com isso, desejamos não apenas melhorar a qualidade de vida dos profissionais do terceiro setor, mas também contribuir com a mudança social tão almejada. 

OS AUTORES

Daiany França Saldanha é doutoranda e mestra em mudança social e participação política na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo.

Rodrigo Alvarez é sócio e diretor da Mobiliza, consultoria especializada em estratégias de captação de recursos. 

Sophia Maggi de Goes é coordenadora de redes, conhecimento e parcerias no Instituto ACP.

Camila Stefanelli Meireles é coordenadora executiva da Plataforma Conjunta. Graduada em marketing e comunicação e pós-graduada em administração pela Fundação Getulio Vargas.



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