Do fazer o bem ao ser bom
Hoje, espera-se que as ONGs vão além de sua missão de bem e adotem um conjunto mais amplo de compromissos e valores. Esse movimento está transformando o setor de modo surpreendente.
Por Shawn Pope e Patricia Bromley
Organizações sem fins lucrativos de todo o mundo estão envoltas em um amplo movimento por responsabilidade social. Elas hoje se engajam em todo tipo de causas que superam em muito suas missões originais. Diversificar seu conselho diretivo por gênero e raça, pagar a seus fornecedores uma remuneração justa, reduzir seu impacto ambiental e emprestar sua voz a causas sociais, do #MeToo ao Black Lives Matter, são apenas alguns exemplos desse desdobramento surpreendente.
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À medida que essa dinâmica avançava, algumas organizações ampliaram formalmente sua missão, a fim de incorporar novos interesses por responsabilidade social. Em 2022, a American Hospital Association, que representa quase 5.000 organizações no setor de serviços de saúde, revisou seu propósito para incluir justiça e equidade. De modo semelhante, a Sierra Club não é mais estritamente voltada para o ambientalismo; o seu plano estratégico para 2030 também fala de antirracismo, sexismo, justiça econômica e de promover equilíbrio entre trabalho e vida pessoal para seus funcionários.
Esse movimento surpreende não só por seu alcance, mas também porque já se espera de antemão que essas organizações sejam boas agentes. Os que advogam em favor da responsabilidade social corporativa costumam justificá-la como um corretivo para os males sociais decorrentes da busca por lucro. Porém a própria finalidade das ONGs é contribuir para o bem público. Nos Estados Unidos, é uma questão legal: a Receita Federal concede a isenção de impostos somente a organizações que proporcionem benefícios públicos. A benevolência dessas entidades encontra-se implícita também na principal teoria sobre sua existência: elas proporcionam os serviços (como alimentar os pobres, cuidar dos doentes) de que a sociedade necessita e que, no entanto, são pouco supridos pelos governos e não suficientemente lucrativos para os investidores tradicionais.
Neste artigo, abordaremos as causas, as características contemporâneas e as consequências desse curioso movimento pela responsabilidade social das organizações não lucrativas. O fenômeno traz profundas implicações para a nossa compreensão da missão dessas entidades e para as demandas impostas à liderança delas. Entidades que ampliem sua visão de responsabilidade podem angariar mais legitimidade, e a expansão de seu propósito pode promover inovação. No entanto seus líderes também terão mais desafios a encarar à medida que a missão se torne menos singular e exija mais habilidade para alcançar objetivos múltiplos e, por vezes, concorrentes.
O nascer do movimento
A partir dos anos 1990, o setor sem fins lucrativos expandiu-se rapidamente nos Estados Unidos e em todo o mundo. Os crescentes recursos e cifras das organizações se traduziram em um maior potencial para o bem, mas também para o mal, e uma série de escândalos de grande repercussão abalou o setor. Acadêmicos e jornalistas relacionam o advento da responsabilidade social nas organizações sem fins lucrativos à necessidade de contrabalançar o crescente poder dessas entidades na sociedade.
De fato, nos Estados Unidos o número de instituições explodiu: de menos de 13 mil em 1940 para mais de 1,5 milhão no ano passado.1 E nisso muitas delas se tornaram pantagruélicas. A Fundação Bill & Melinda Gates, por exemplo, nasceu em 2000 e hoje administra cerca de US$ 50 bilhões em ativos – cifra superior ao PIB de mais de cem países. Ao mesmo tempo, o número de organizações não governamentais internacionais aumentou de modo significativo, de aproximadamente 1.000 em 1950 para 76 mil em 2023.2
As organizações não lucrativas cresceram não apenas em número, tamanho e alcance global, mas também em notoriedade: um punhado de grandes escândalos na década de 1990 fomentou uma reação ao seu recém-conquistado status. Alguns dos maiores nomes da época estavam envolvidos nessa onda, incluindo a United Way, maior ONG de financiamento privado do mundo. Em 1992, o seu CEO, William Aramony, foi condenado pelo uso indevido de aproximadamente US$ 1,2 milhão em doações, em parte gasto em assuntos extraconjugais. Especialistas em serviço social, Margaret Gibelman e Sheldon Gelman identificaram 11 escândalos importantes que irromperam entre 1992 e 1998, enterrando a ilusão de que entidades não rentáveis seriam imunes a irregularidades.3
A partir disso, uma série de critérios e certificações invadiu o setor. Exemplos notórios de uso indevido de recursos por parte de instituições derivaram na criação de observatórios, como o CharityWatch, fundado em 1992, e de organizações que checam a boa reputação dessas entidades, como a GuideStar (hoje Candid) em 1994. A preocupação com peculato, evasão de divisas e incompetência generalizada deu vez a iniciativas como a Charity Navigator, fundada em 2001 para avaliar ONGs quanto ao uso e eficiência de recursos.
Também fez parte dessa infraestrutura de responsabilização o surgimento de organizações que divulgavam boas práticas de governança (por exemplo, a BoardSource, fundada em 1988) e transformavam princípios éticos em códigos de conduta que qualquer organização pudesse adotar, independentemente de sua área de atuação – caso, por exemplo, da Associação Mundial de Organizações Não Governamentais (Wango, na sigla em inglês, fundada no ano 2000). O passo seguinte seria a certificação das ONGs, e é por isso que hoje existem muitas agências como o Standard for Excelence Institute (fundado em 1998) e a NonProfits First (fundada em 2005). De modo geral, essas iniciativas buscavam não apenas reparar a combalida fé no setor, mas também conduzir as organizações não lucrativas a práticas racionais, eficazes e profissionais. Como resultado desse trabalho, a benevolência que se supunha inerente às ONGs passou a ser vista como algo aplicável a elas, mediante uma variedade de certificações externas.
Dimensões do movimento contemporâneo
À medida que o movimento por responsabilidade social dentro das organizações não lucrativas evoluía, o seu caráter também se modificava. Ele nasceu contra o pano de fundo de escândalos de vulto e, talvez por isso, pautado por uma lógica de controle social. O movimento inicial ganhou ímpeto com o esforço por supervisão externa, na forma de certificações, credenciamentos e códigos de conduta.
Em contrapartida, hoje o movimento é conduzio por ONGs que incorporam de forma proativa uma gama crescente de questões sociais a seus valores essenciais. Isso as leva além de sua missão estrita e de suas responsabilidades básicas, como agir de forma lícita e ética, fazendo com que evidenciem seu dever para com uma extensa variedade de stakeholders e tomem a dianteira em questões sociais emergentes.
Em especial, identificamos no movimento contemporâneo cinco aspectos, que analisamos a seguir.
Ir além da missão | Embora a benevolência das organizações não lucrativas seja tradicionalmente associada à sua capacidade de promover uma missão numa área determinada (por exemplo, a pesquisa do câncer ou o déficit de moradia), hoje elas também se voltam para a relação entre essa missão e um quadro mais amplo de questões sociais. A sustentabilidade, por exemplo, tem sido abarcada por um sem-número de ONGs cujo principal foco não é a proteção ambiental. Universidades como Oxford e Harvard, por exemplo, vetaram investimento de seus fundos em combustíveis fósseis, enquanto outras entidades passaram a apoiar a causa abolindo o papel, permitindo o teletrabalho e adotando a tecnologia verde.
A questão da diversidade também domina o setor. Hoje se espera que todas as entidades a contemplem o máximo possível. A Fundação Bill & Melinda Gates, por exemplo, fez o experimento de reduzir o viés de gênero adotando padrão duplo-cego para processos de concessão.4 A fundação também criou e contratou um chefe de divisão para diversidade, equidade e inclusão (DEI, na sigla em inglês) para suas práticas internas.
A questão da diversidade ilustra dois outros pontos acerca do movimento. Em primeiro lugar, em alguns casos, as instituições não lucrativas ampliam suas missões para permitir um escopo mais alargado de impacto social. No início deste ano, por exemplo, a Associação Hospitalar Americana (AHA) expandiu sua missão com respeito à equidade (trechos novos destacados em itálico): “A missão da AHA é promover a saúde de todos os indivíduos e comunidades. A AHA comanda, representa e atende a hospitais, sistemas de saúde e outras organizações relacionadas, responsáveis por comunidades e comprometidas com um atendimento equitativo e com a melhoria da saúde para todos”. Em segundo lugar, a questão da diversidade revela que o crescimento do fenômeno da responsabilidade tem se intensificado. De fato, uma vez que esse fator permeia o terceiro setor, ela exige atenção em cada vez mais frentes. A ênfase em raça e gênero tem se ampliado para incluir idade, nacionalidade, sexualidade, nível de escolaridade e deficiências. Por exemplo, vemos uma crescente conscientização das organizações sem fins lucrativos em relação à necessidade de criar oportunidades de voluntariado de qualidade para a população baby boomer5 e também em relação à acolhida, em universidades, de estudantes de primeira geração e daqueles com diferenças de aprendizado, como o autismo.
Enfatizar a vivência de valores sem fins lucrativos vai além da legalidade e da ética | As iniciativas dos anos 1990 para a responsabilidade enfatizavam a ética e, no mínimo, a legalidade. Ambas as dimensões continuam a ser importantes, como fica visível pela ubiquidade dos códigos de conduta do setor,6 os quais proporcionam diretrizes para o comportamento do funcionário com relação a tudo, de assédio sexual a denúncias de irregularidades.7 Existem hoje debates éticos e legais sobre, por exemplo, o que os funcionários podem dizer em mídias sociais; se as identidades de doadores devem ser secretas; sobre a legitimidade de pagar um resgate para hackers em caso de sequestro do sistema operacional da organização.
Hoje, porém, o setor se orienta mais por valores. A ética se traduz em prescrições morais de comportamento que têm impacto externo nas organizações, como regras e padrões que reflitam de maneira ampla as crenças comuns sobre o que é certo e errado. Por outro lado, os valores são ideais internos que diferem de uma entidade para outra e refletem seu apreço individual pelas aspirações culturais mais importantes para ela.
No início dos anos 2000, os valores se tornaram um tópico mais destacado, e especialistas passaram a aconselhar as organizações sem fins lucrativos a identificar um pequeno conjunto de prioridades, a fim de formalizá-lo numa declaração de valores essenciais. Hoje estes são lugar-comum em todo o setor e facilmente localizáveis nos sites das entidades. Esses documentos incorporaram muitas das dimensões e dos interesses do movimento de responsabilidade social, como “diversidade”, “gestão ambiental” e “responsabilização”.
Ir além da prestação de contas a doadores e comunidades servidas, a fim de incluir uma extensa gama de stakeholders | A prestação de contas é outra das responsabilidades que as organizações têm elaborado com mais profundidade. Uma ONG é responsável, por exemplo, para com doadores, comunidades servidas, por qualquer dano não intencional e quanto aos financiamentos. A prestação de contas está intimamente ligada ao dever de explicar e justificar, à prática de reportar e à própria atividade contábil – no sentido de registrar, verificar e analisar os recursos da organização. Quando entidades se tornam mais responsabilizáveis, por exemplo, por reportar suas despesas a auditorias externas, elas podem se tornar mais disciplinadas, com isso reduzindo desperdícios e abatendo despesas gerais desnecessárias. Quando entidades medem e reportam seus impactos sociais, elas podem se mostrar mais sensíveis a maneiras de aperfeiçoar seus programas. Quando divulgam seus doadores e submetem suas decisões de concessão a escrutínio público, podem afastar a percepção de que seriam controladas por “dinheiro sujo” ou nepotismo.
A responsabilização também implica responder por falhas ou malversação. Como tal, é um estímulo para evitar o malfeito antes que ele ocorra, introduzindo controles em diversos pontos e adotando melhores práticas e procedimentos supervisionados por indivíduos treinados e qualificados. A responsabilização preserva a confiança nas organizações, reforçando a lisura dos processos para quem está de fora.
As responsabilidades das organizações vão além do benefício social que aportam, abrangendo também o fomento a um campo de ação saudável e pujante para todos.
O entendimento sobre a quem as entidades devem prestar contas tem se expandido. Além dos grupos dotados de laços diretos com organizações sem fins lucrativos, incluindo doadores, diretores, funcionários e comunidades servidas, hoje se incluem nesse público todos os grupos que de algum modo são afetados pelas operações de uma organização – em outras palavras, os stakeholders, termo que atualmente pode abranger até as gerações por vir e o ambiente natural.
Especialistas, em particular, solicitam às organizações que exerçam a gestão de stakeholders. Isso exige identificá-los, levantar suas necessidades e interesses, tratá-los com dignidade e respeito, mantê-los informados e criar canais para incluí-los nas tomadas de decisão. Sob esse ponto de vista, as entidades podem considerar, por exemplo, que seus funcionários, não apenas pessoas movidas por um ideal comum, mas stakeholders com interesses legítimos, concretos e acessíveis, como pagamento, segurança no emprego, progressão na carreira e condições de trabalho.8 Esse trabalho de gestão não é apenas um imperativo moral, mas também um esforço estratégico que pode trazer benefícios operacionais, como maior confiança, empatia e satisfação entre os muitos grupos envolvidos no trabalho de uma entidade não lucrativa.
Ir além dos limites da organização quanto a cidadania e empreendimento coletivo | O aspecto “social” da responsabilidade sugere não apenas relações com stakeholders, mas também uma sociedade mais ampla e um empreendimento coletivo sem fins lucrativos. As responsabilidades das organizações vão além do benefício social que aportam, abrangendo também o fomento a um campo de ação saudável e pujante para todos. Mais especificamente, cidadania designa comportamentos, voluntários e muitas vezes não formalmente recompensados, vistos como contribuições para o bem público que todos, idealmente, deveriam fornecer.
Atualmente, organizações não lucrativas exercem essa cidadania de muitas formas. A YMCA, a Feeding America e a United Way estão entre as milhares que pagam a folga de seus funcionários no dia de eleições. Outras têm emprestado sua voz para questões que afetam todo o setor, como quando a Code for America, o Greenpeace e o Sierra Club assinaram uma petição para impedir a venda do registro online “.org” para investidores que visem lucro. Outras ainda, por sua vez, têm subscrito práticas que não são necessariamente desenhadas para elas, mas favorecem o setor como um todo, como o uso de formulário padrão para aceitação de pedidos de subvenção. Além disso, algumas entidades permitem que seus pares contratem seus trabalhadores e compartilham contatos de doadores com organizações em campos de atuação semelhantes. Com essas iniciativas, apoiam o setor e promovem o espírito cívico em seu meio.
Ir além da governança e da boa gestão para incluir liderança | A responsabilidade social começa no topo da organização não lucrativa e é exercida de modo mais orgânico e suave quando diretores, executivos e altos cargos estão alinhados e comprometidos. De modo específico, o movimento influenciou o foco tradicional e estrutural em governança e gestão e trouxe uma ênfase mais recente e dinâmica em liderança.
“Governança” é um termo que se refere à administração de alto nível por meio de regras e procedimentos, incluindo o modo como membros do conselho diretivo e de gerenciamento são nomeados, contratados, estruturados, monitorados, remunerados e mantidos independentes entre si. De modo semelhante, “gerenciamento” refere-se à gestão e ao uso efetivo dos recursos humanos e físicos e ao estabelecimento de protocolos e melhores práticas para incorporar a missão da entidade nos níveis inferiores da organização. Governança e gestão eficientes integram a responsabilidade social ao cerne da organização não lucrativa. Por exemplo, o modelo de governança com múltiplos stakeholders serve para garantir que grupos impactados pela entidade estarão representados no conselho e participarão na tomada de decisões, incluídos aí os funcionários e as comunidades atendidas, além de doadores e especialistas do setor. As entidades podem promover responsabilidade social por meio de regimes de compensação, por exemplo, vinculando a remuneração de executivos a metas de diversidade ou sustentabilidade. Por meio de tais arranjos, a responsabilidade social se incorpora à organização, em vez de ser um acessório.
Mais recentemente, o discurso de acadêmicos e profissionais do campo sobre a gestão de organizações não lucrativas tem enfatizado a liderança. Nele as entidades aparecem não só como um sistema que demanda um planejamento adequado, mas que deve estar imbuída de vida e direção. Bons líderes não só mantêm a máquina funcionando, eles também inspiram e motivam os membros da organização. Cada vez mais se espera que os líderes sejam visionários, que estabeleçam objetivos ousados e relevantes, capacitem e empoderem seus subordinados. Como reflexo dessa mudança, além de declarar sua missão, seus valores essenciais e códigos de conduta, as organizações têm divulgado também sua visão. Com isto, inspiram os stakeholders com utopias ambiciosas que a organização pode fazer prosperar por meio de seu trabalho social, como um mundo “onde todos tenham um lugar decente para viver” (da Habitat for Humanity) ou onde “nenhuma criança vá dormir com fome” (da Feed the Children).
A liderança é importante para a responsabilidade social por diversas razões. Em primeiro lugar, porque os líderes são não apenas funcionários da organização, mas também figuras de proa, e deles se espera que sirvam de modelo para os valores da entidade. Em segundo lugar, dado que a responsabilidade social muitas vezes envolve ações que estão apenas vagamente relacionadas com a missão da organização, líderes experientes devem ter carisma, persuasão e criatividade excepcionais para transformar ideias em um plano de ação coerente para stakeholders. Em terceiro lugar, líderes são frequentemente convocados a tomar decisões difíceis, como quando administradores de universidades se expõem ao risco de desagradar ex-alunos, por removerem dos campi monumentos a benfeitores que foram proprietários de escravos.
Implicações
Da liderança à gestão de stakeholders e à cidadania, o movimento contemporâneo por responsabilidade social nas organizações não lucrativas impõe demandas extraordinárias. Exibir comprometimento com questões sociais mais amplas pode trazer benefícios operacionais, fortalecendo a legitimidade e a reputação de uma entidade. A atenção à responsabilidade social pode também imbuir o trabalho das organizações com uma razão de ser mais significativa, o que pode ajudar a melhorar o moral e as possibilidades de recrutamento. Por último, uma vez que muitas das atividades associadas incrementam a visibilidade, elas potencialmente aumentam a conscientização, o que pode levar a mais doações e engajamento voluntário.
Além disso, a consciência mais aguda de questões sociais intrinsecamente ligadas à atuação da organização pode fomentar inovações. Por exemplo, o Museu de Artes Fotográficas de San Diego, como muitos outros museus, ampliou seu acesso implementando uma política de “pague o quanto quiser”. Para combater a desigualdade de gênero nos salários, a Hillel Foundation, maior organização voltada à vida de judeus nos campi, fez um teste com faixas de remuneração fixas para funcionários em diferentes posições, as quais eram conhecidas por todos. A fim de promover a saúde mental e tornar os locais de trabalho mais acolhedores para pessoas com deficiência, muitas organizações prestadoras de serviço introduziram licenças remuneradas ilimitadas.
O movimento pela responsabilidade das organizações sem fins lucrativos também traz riscos. A atenção às responsabilidades sociais não essenciais pode desviar o foco de sua missão original, em especial num setor que parece sempre operar com orçamentos apertados. As possibilidades de falhar na missão original, costumeiramente atribuídas à pressão de doadores ou à busca por financiamento, podem agora ser introduzidas na organização, vindas de todos os lados, de uma miríade de stakeholders. Com o tempo, as organizações sem fins lucrativos que não se atenham à sua vocação essencial e a suas competências-chave podem ver sua identidade e suas habilidades se tornarem menos eficazes, à medida que tentam fazer tudo para todos.
O movimento pela responsabilidade das organizações sem fins lucrativos também traz riscos. A atenção às responsabilidades sociais não essenciais pode desviar o foco de sua missão original.
Uma potencial preocupação para líderes de organizações sem fins lucrativos é a redução de sua credibilidade em razão de promoções de responsabilidade social que pareçam excessivamente corporativas. De fato, mesmo o uso da linguagem da “responsabilidade social” para descrever as atividades pode ser problemático, uma vez que, no mundo corporativo, a expressão aparece frequentemente ligada a exercícios de branding enganosos e ineficazes. Pior ainda, as entidades poderiam ser acusadas de greenwashing, de superficialidade (isto é, exibindo uma aparência de preocupação com o ambiente ou com a diversidade construída por meio de mudanças mais simbólicas do que significativas) ou de privarem sua missão original de recursos. Para um setor fundado na noção de bem público, as consequências desse tipo de críticas podem ser muito mais deletérias do que seriam no mundo empresarial.
Em quais das múltiplas responsabilidades sociais uma organização não lucrativa deveria manter o foco? Dadas as pressões para que instituições desenvolvam identidades claras e distintivas, que ecoem suficientemente junto a segmentos e a doadores específicos, para fazer com que abram a carteira, tais entidades poderão ser mais bem-sucedidas se mirarem causas adjacentes ao cerne de seu trabalho. Se é verdade que, em algum nível, todas as organizações devem ser responsáveis, éticas e bem administradas, na prática, elas também precisam decidir quanto desejam se aprofundar em cada aspecto dessa responsabilidade. Elas devem apenas cumprir com suas obrigações sociais ou tentar excedê-las, tornando-se pontas de lança num tema específico? Ao ponderar sobre essa questão, as organizações podem se mirar em exemplos de entidades que têm praticado a responsabilidade social com base em seus focos centrais de interesse. A Girl Scouts, por exemplo, expandiu um compromisso existente com os assuntos da mulher, proporcionando a seus funcionários um período de licença parental remunerada relativamente longo, de 12 semanas. De modo semelhante, a Every Texan, entidade defensora de justiça econômica em políticas públicas com sede em Austin, respondeu de forma cooperativa e afirmativa ao empenho por sindicalização de seus próprios funcionários.
O movimento pela responsabilidade social tem produzido muitos efeitos práticos. Para dizer o mínimo, ampliou o conjunto de interesses em torno dos quais se estruturam os papéis e responsabilidades. Como resultado de seus esforços por equilibrar um crescente número de stakeholders e causas sociais, essas entidades têm se tornado operacional e estruturalmente mais complexas, impondo mais exigências aos líderes. Empreendimentos sociais, por exemplo, assumem formas híbridas para poderem equilibrar melhor seus objetivos comerciais e sociais. Além disso, as organizações têm demandado líderes com visão e carisma, capazes de se conectar com os mais diferentes stakeholders.
Um dos aspectos mais notáveis do setor não lucrativo contemporâneo é a rapidez cada vez maior com que novas causas sociais têm gerado uma maré de ações, políticas e testemunhos. Recentemente o movimento #MeToo e o Black Lives Matter deram ímpeto a ondas assim, além de terem reforçado a atenção aos direitos das pessoas trans, à linguagem de gênero neutro, ao direito ao aborto e à guerra na Ucrânia. A maior amplitude e frequência dessas questões sem dúvida reflete a natureza da sociedade de hoje – o caráter viral das mídias sociais, a polarização crescente nos Estados Unidos e em outros países, os níveis avançados de globalização. Desse modo, o surpreendente e, para muitos, bem-vindo desenvolvimento da responsabilidade social expandida das organizações tem tudo para se intensificar.
NOTAS
1 Patricia Bromley, “The Organizational Transformation of Civil Society”, The Nonprofit Sector: A Research Handbook, Walter W. Powell e Patricia Bromley (org.), Stanford: Stanford University Press (3. ed., 2020).
2 Estes são os números de organizações categorizadas como A, B, C ou D no Yearbook of International Organizations.
3 Margaret Gibelman e Sheldon R. Gelman, “Very Public Scandals: An Analysis of How and Why Nongovernmental Organizations Get in Trouble”, International Society for Third-Sector Research Fourth International Conference, Dublin, 7 jul. 2000.
4 Alex Daniels, “How Gender Bias Creeps Into Grant Making”, The Chronicle of Philanthropy, 4 jun. 2019.
5 Joshua Braverman e Ryan Kaitz, “Engaging Our Elders: The Power and Potential of Senior Volunteerism”, Nonprofit Quarterly, 18 fev. 2021.
6 Patricia Bromley e Charlene D. Orchard, “Managed Morality: The Rise of Professional Codes of Conduct in the US Nonprofit Sector”, Nonprofit and Voluntary Sector Quarterly, abril 2015.
7 Shawn Pope et al., “The Pyramid of Nonprofit Responsibility: The Institutionalization of Organizational Responsibility Across Sectors”, Voluntas, 17 set. 2018.
8 Jim Rendon, “Low Pay Hurts Nonprofits and Workers. Some Groups Are Fighting Back”, The Chronicle of Philanthropy, 4 set. 2019.