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Um círculo que não se fecha facilmente

As possibilidades de um modelo de negócio circular para a indústria da moda.

Este artigo faz parte da série Debate. Nele, Ken Pucker, antigo COO da Timberland, explica a guinada da indústria para a circularidade e as barreiras à sua adoção e investigadores e especialistas do setor respondem. Para conferir as respostas ao artigo, clique aqui.

Por Ken Pucker

Ilustração de Eric Nyquist

Diversas indústrias – de refrigerantes, de móveis, de eletrônicos, e a de moda entre elas – adotam uma estratégia de mão única baseada em “produção, apropriação e desperdício”. Esse sistema operacional linear exaure recursos, polui oceanos e gera montanhas de resíduos. A pressão sem freio por crescimento esgota a biodiversidade e acelera o aquecimento atmosférico, aumentando, assim, a intensidade e a incidência de secas, inundações e migrações. Por conseguinte, a tolerância da população para com indústrias desse tipo está, cada vez mais, ameaçada.

Consultores, ONGs e empresas – um grupo que chamo de Sustentabilidade S.A. – oferecem a ideia de circularidade como a mais nova solução ganha-ganha para dissociar crescimento econômico e impacto ambiental. Existem mais de cem definições diferentes para circularidade, e seus defensores a vendem como “um sistema regenerativo no qual entradas de recurso, emissões de resíduos e perdas de energia são minimizadas pela desaceleração, pelo fechamento e pela compressão de ciclos materiais e energéticos graças ao design, à manutenção, ao reparo, à reutilização, à remanufatura, à reforma e à reciclagem de longa duração”.

A promessa de desvincular o crescimento econômico do impacto ambiental tendo o mercado como condutor é antiga; remonta a 1987, quando foi apresentada, na Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU), a noção de “desenvolvimento sustentável”. Em um esboço de relatório publicado antes da reunião da comissão, o desenvolvimento sustentável foi definido como aquele “que pode ser mantido indefinidamente sem prejudicar o meio ambiente ou ameaçar o próprio desenvolvimento”. A fé dos comissários da ONU no conceito baseava-se no progresso tecnológico e em ferramentas de gestão como avaliação, divulgação e certificação.

Desde o relatório da comissão, a Sustentabilidade S.A. desenvolveu e implementou uma série de soluções voluntárias, lideradas pelo mercado, para promover desenvolvimento sustentável. Milhares de relatórios de responsabilidade social empresarial (RSE), centenas de programas de certificação e uma série de estratégias ganha-ganha comprovam esse esforço. Essas estratégias apresentavam conceitos como “criação de valor compartilhado” – a prática de gerar, em paralelo, lucro e valor para a sociedade, ao lidar com necessidades e desafios sociais – e investimento em questões ESG – a ideia de que investir em empresas mais sustentáveis pode resultar em maiores retornos no mercado acionário e melhorar os efeitos sociais e ambientais. No entanto, nenhuma dessas soluções lida, de modo explícito, com o dilema do aumento dramático da demanda de recursos em um planeta cujos recursos são finitos.

Isso levou a circularidade a ascender ao topo do manual das estratégias. Tem-se visto progresso animador quanto à adoção de sistemas circulares na produção de algumas commodities – como alumínio, papelão e garrafas plásticas –, para as quais existe tecnologia e o preço dos materiais virgens supera o da reciclagem de insumos. A circularidade também ganhou popularidade na indústria da moda, que consome aproximadamente 80 trilhões de litros de água e produz mais de 90 milhões de toneladas de resíduos por ano. A crescente atenção negativa da imprensa sobre o setor tem fomentado a promoção de modelos circulares para dissociar o fluxo de receita do uso de recursos.

A premissa parece promissora. Porém minha experiência como membro da Sustentabilidade S.A. e ex-diretor de operações da Timberland me leva a questionar essas supostas soluções que vão de encontro aos incentivos da indústria, às leis da física, a padrões estabelecidos de consumo e à economia. Embora, em teoria, a circularidade seja atraente, iniciativas individuais e isoladas de marcas não têm como derrubar o sistema linear na indústria da moda. Neste artigo, explico a guinada da indústria rumo ao modelo circular e as barreiras à sua adoção e concluo recomendando colaborações intersetoriais mais eficazes que a circularidade.

 

Gafes da moda

 

É mais fácil compreender a magnitude do impacto ambiental da moda do que seu caminho em direção ao desenvolvimento sustentável. Para satisfazer o duplo imperativo do crescimento e do lucro, a indústria otimizou um sistema linear que se fia em inovação, ciclos rápidos de produtos, obsolescência programada, mão de obra terceirizada barata, marketing pesado e uma relativa deflação dos vestuários. Até agora vem funcionando. Desde 2000, as vendas unitárias do setor da moda mais do que dobraram. Novas coleções são apresentadas com maior frequência, indo além das tradicionais de outono-inverno e primavera-verão; algumas marcas, como a empresa de fast fashion Shein, lançam milhares delas por semana. A maior parte das novas peças adquiridas é usada por um breve período e descartada, sendo incinerada em aterros sanitários ou despachada para países em desenvolvimento como Gana e Chile, que, historicamente, permitem a importação de excedentes de vestuário.

Atualmente, quase todas as empresas de moda de capital aberto produzem relatórios de responsabilidade social empresarial, e muitas adotaram certificações ambientais. Entre elas estão os selos bluesign (produção têxtil), de emissão zero de substâncias químicas perigosas (ZDHC, na sigla em inglês – “produtos químicos sustentáveis”) e de comércio justo (produção). Apesar das certificações e de a indústria testar uma série de soluções de upcycling (reutilização criativa) e de reciclagem, tais como design zero-waste (“resíduo zero”) ou cradle-to-cradle (C2C, “de berço a berço”, em oposição a “de berço a túmulo”, pensando que no fim da cadeia não esteja o lixo), os resíduos e a poluição da indústria da moda continuam a crescer. Estima-se que a indústria da moda contribua com de 2% a 10% das emissões globais de carbono, taxa inconcebível para um setor que se diz comprometido com a sustentabilidade. Segundo a McKinsey & Company, as emissões do setor superam as da França, da Alemanha e do Reino Unido somadas.

Como o uso que a indústria faz de sintéticos, como poliéster e náilon, aumenta muito mais rapidamente do que a proporção de materiais naturais, a moda, nos dias de hoje, consome 70 milhões de barris de petróleo por ano, quase 1% da produção de petróleo global. Efluentes químicos, consumo de água, uso da terra e poluição por microplásticos se colocam como obstáculos inexoráveis à sustentabilidade.

Enquanto o aquecimento global se intensifica e a perda da biodiversidade se acentua, a indústria da moda projeta um crescimento superior a 60% para a década atual. Empresas como a varejista sueca H&M estão estabelecendo metas pouco convincentes – por exemplo, dobrar de tamanho e, ao mesmo tempo, reduzir as emissões absolutas de carbono em 50% – e se amparando na circularidade como abordagem para atingi-las.

O modelo fast fashion da H&M passou a ser alvo de ativistas ambientais. Essa crítica crescente pode ter motivado, em parte, a escolha da primeira CEO de fora da família fundadora, em janeiro de 2020, Helena Helmersson – que, por 5 de seus 25 anos na empresa, atuou como gerente de sustentabilidade.

 

Embora, em teoria, a circularidade seja atraente, iniciativas individuais e isoladas de marcas não têm como derrubar o sistema linear na indústria da moda.

 

Em outubro de 2020, Helmersson participou de uma conversa sobre o futuro do planeta, da moda e da sustentabilidade com seu compatriota Johan Rockström, pesquisador à frente da equipe que definiu o conceito de “limites planetários”. Um cenário incrível, uma casa moderna em uma floresta sueca, foi escolhido para o encontro, organizado pela Global Fashion Agenda (GFA), ONG fundada e financiada por várias empresas da moda, como Nike e Kering, além da H&M. Rockström e Helmersson rapidamente chegaram a um consenso a respeito dos melhores caminhos para lidar com os desafios ambientais. “Acho que o modelo circular é, honestamente, o futuro para todos os setores, mas certamente para o setor têxtil”, observou Rockström. Helmersson concordou: “É a solução”.

Não é de estranhar, portanto, que a H&M tenha posto a economia circular no centro de sua estratégia de sustentabilidade. Em seu discurso na conferência da GFA em 2022, em Copenhague, o diretor financeiro da H&M, Adam Karlssom, reiterou as palavras de Helmersson, observando que a circularidade é fundamental para que a empresa atinja a meta de duplicar as receitas e reduzir pela metade as emissões totais de dióxido de carbono até 2030 – façanha nada pequena para uma marca que já gera mais de US$ 20 bilhões em vendas.

A H&M está investindo em várias frentes para impulsionar essa agenda, tendo até um diretor de circularidade, cujo trabalho é unir diferentes setores, incluindo merchandising, produção e sustentabilidade. A empresa emitiu um título sustentável no valor de € 500 milhões para metas voltadas para emissões de carbono e materiais reciclados; apresentou novos modelos de negócio para aluguel, revenda e reparo de seus produtos; e colocou em prática o maior programa de coleta de peças de roupa do mundo. Além disso, tem mais de 60 parceiros, entre os quais a fundação Ellen MacArthur, organização sem fins lucrativos sediada no Reino Unido dedicada a acelerar a economia circular. A H&M também cria coleções-cápsula responsáveis, para apresentar inovações têxteis; investe em novas tecnologias, incluindo empresas de reciclagem como Infinited Fiber, Spinnova e Ambercycle; e oferece apoio financeiro a empresas de tecnologia agrícola regenerativa e de materiais inovadores.

A H&M tem a companhia de marcas poderosas. Gucci, Apple, Adidas, Ikea, Patagonia, Amazon, PepsiCo e Kering consagraram o modelo circular como solução para dissociar crescimento de receita do consumo de recursos – é a Sustentabilidade S.A. em plena operação. A Fundação Ellen MacArthur e a McKinsey & Company realizaram estudos que promovem a circularidade como uma oportunidade multimilionária. Um relatório de 2022, Scaling Circularity: A Policy Perspective (Expandindo a circularidade: uma perspectiva normativa), financiado pela GFA e pela Fashion on Climate, outra ONG do setor, concluiu que “aproximadamente 25% das emissões [da indústria da moda] poderiam ser reduzidas com modelos circulares”.

O Conselho de Estilistas dos Estados Unidos (CFDA, na sigla em inglês), uma das maiores associações comerciais da indústria, também está apostando na moda circular. Há pouco tempo, o CEO da CFDA, Steven Kolb, afirmou: “Acreditamos em um futuro sólido para nossa indústria pela inovação e pela circularidade, por meio de upcycling, reciclagem, recommerce [venda online de produtos de segunda mão], revenda e materiais e processos personalizados”. A União Europeia também adotou um Plano de Ação para Economia Circular, no qual propõe uma série de medidas para promover a circularidade da moda. Entre elas, estão um marco regulatório para ecodesign, melhores regulamentações – responsabilidade estendida do produtor (EPR, na sigla em inglês) e padrões de classificação – e um caminho para que altos índices de separação de resíduos sejam alcançados, além de estímulos a reparo, reutilização e reciclagem de materiais têxteis e limites para o número de coleções.

 

Sete obstáculos à circularidade

 

Entre a esperançosa narrativa acerca da circularidade desenvolvida pela indústria da moda e o alcance das metas estabelecidas encontram-se diversas barreiras técnicas, físicas, científicas e financeiras. A seguir estão os obstáculos mais significativos a serem superados para que o modelo circular cumpra sua promessa.

Incentivos e objetivos sistêmicos inalterados | CEOs e diretores financeiros de empresas de capital aberto divulgam, a cada três meses, os resultados financeiros a seus acionistas, e seus incentivos seguem atrelados ao crescimento da receita, à lucratividade e à produção de fluxo de caixa. Desse modo, tendem a não defender intervenções regulamentadoras, a não compensar externalidades, tais como emissões de carbono ou resíduos têxteis, e a não promover inovações que comprometam resultados financeiros a curto prazo. Embora estejam, provavelmente, cientes de problemas sistêmicos, como escassez de recursos ou mudança climática, no fim das contas, os executivos dedicam sua energia a atingir metas financeiras.

Cadeias de suprimentos terceirizadas também criam desafios sistêmicos. Relacionamentos de curto prazo entre marcas e fornecedores concentram-se, muitas vezes, em qualidade, datas de entrega e custos. Segundo um relatório de 2020 do Boston Consulting Group (BCG), “essa configuração fragmentada e fundamentalmente transacional fomentou um ambiente não propício a investimentos em pesquisa e desenvolvimento e em projetos de inovação”, com períodos de retorno mais dilatados. De modo geral, aponta o BCG, fornecedores são instados a cumprir objetivos de sustentabilidade tendo “poucas garantias de que vão conseguir capitalizar seu investimento” mediante novos pedidos. Esse cenário, muitas vezes, provoca um impasse e praticamente nenhuma melhoria ambiental.

Métricas arbitrárias ou inexistentes | Não existem métricas-padrão para circularidade. Uma empresa pode definir metas para a porcentagem de material reciclável, ao passo que outra pode medir a redução de resíduos. Reino Unido, Noruega e Holanda desenvolveram políticas nacionais de circularidade; os holandeses, porém, admitiram em seu relatório de economia circular de 2021 não ter “métricas com as quais realmente promover um plano de ação”. Essa confissão vai ao encontro dos achados de uma recente meta-análise sobre métricas de circularidade, que aponta que nenhuma das que estão em uso atualmente faz uma avaliação abrangente de progresso. Pior: alguns dos parâmetros usados para avaliar progresso transferem o ônus da redução do consumo de material para outros impactos sociais ou ambientais. O fato de muitas métricas de circularidade compararem produção e impacto também é problemático, uma vez que isso dificulta a avaliação do progresso.

Além disso, não existe uma análise dos potenciais impactos ambientais da conversão de um sistema linear para um sistema circular. Na literatura acadêmica, não há nenhuma avaliação do ciclo de vida que compare o impacto ambiental dos dois modelos – uma lacuna notável, considerando o entusiasmo da indústria pela circularidade. Dito isso, o relatório Scaling Circularity, da McKinsey, afirma que, no setor têxtil, produtos reciclados têm um impacto ambiental menor do que materiais virgens. Contudo, os resultados dependerão dos processos usados para reciclar, do local de reciclagem, da fonte de energia, da logística da coleta e de outras conjecturas feitas na análise.

Perda de energia e degradação do produto | Um upcyling que transforme produtos em novas roupas infinitamente é uma fantasia. Toda conclusão de ciclo consome energia e, à medida que se transfere ou se transforma energia, a qualidade diminui. Embora no futuro possamos ter mais fontes renováveis, atualmente, no mundo, apenas cerca de 10% da energia tem essa origem. Além disso, no setor têxtil, a maior parte dos produtos reciclados apresenta uma depreciação de qualidade em virtude do encurtamento das fibras, o que faz do upcycling de vestuário um desafio. Assim, menos de 1% de todos os produtos da moda é circular ou criado a partir de uma outra peça de roupa.

Modelos de negócio não ampliáveis ou questionáveis | A circularidade depende de novos modelos de negócio para ampliar a vida das peças, como aluguel (Rent the Runway, Fernish), revenda (thredUP, The RealReal) e reparo (Arc’teryx, Dyson). No entanto, muitos desses modelos ainda não são lucrativos e, por isso, são difíceis de ampliar. Por exemplo, o muito alardeado programa de revenda Worn Wear, da Patagonia, lançado há quase uma década, é responsável por menos da metade de 1% das vendas da empresa. A Renewal Workshop, uma oficina de reparo bem financiada, ficou sem dinheiro e teve de ser vendida para continuar funcionando; a Rent the Runway conseguiu abrir seu capital, mas seu valor de mercado paira em menos da metade do que foi investido, e a thredUP perdeu dinheiro e está sendo negociada perto de um décimo de sua máxima histórica.

Embora o serviço de aluguel possa funcionar para determinados negócios, como casas de veraneio com baixa ocupação e altos custos iniciais, ainda não deu certo em grande escala para o setor da moda. E, mesmo que desse, o impacto ambiental ainda é desconhecido, uma vez que não está claro se esses modelos diminuem a compra de produtos novos. Curiosamente, o diretor-sênior de merchandising da empresa de revenda The RealReal afirmou que, quer se trate de produtos novos ou usados, “consumidores são viciados em novidades, não importando se são de primeira ou de segunda mão”.

Além disso, a reciclagem pode não funcionar em termos financeiros. O ponto de partida para o uso de materiais têxteis reciclados é, muitas vezes, mais caro do que o de materiais virgens. Contudo, segundo o relatório Scaling Circularity, da GFA, os gastos podem diminuir com o tempo, volume e experiência, fazendo, assim, com que os materiais recicláveis sejam mais rentáveis.

As projeções aqui também dependem de pressuposições, incluindo quem financia o capital para a infraestrutura de reciclagem, o preço de insumos virgens e os gastos com coleta e transporte. No fim, se a circularidade custar mais à indústria do que o modelo linear de apropriação, produção e desperdício ela não será adotada amplamente.

Trocar plástico ou matéria-prima finita por materiais biológicos | Publicações do setor vêm promovendo, cada vez mais, as vantagens circulares dos materiais biodegradáveis de base biológica. As inovações incluem “couro” de folhas de abacaxi, cacto e cogumelo, bem como fibras novas criadas de matérias-primas naturais como milho ou açúcar. Nos últimos seis anos, materiais desse tipo atraíram mais de US$ 2 bilhões em capital de investimento.

A exagerada euforia, contudo, nem sempre rende soluções sustentáveis. Tomemos como exemplo o Desserto, substituto do couro feito do cacto, material natural que parecia ser um grande candidato à circularidade. As peças de marketing da empresa não mencionaram, todavia, que o produto continha plástico (poliuretano), composto que leva gerações para se biodegradar. Quanto a materiais de base biológica que dependem de açúcar e milho, sua adoção intensificaria a demanda por essas commodities, já pressionadas pela necessidade de produzir mais comida para atender ao crescimento populacional. Ademais, nenhuma dessas invenções conta com capacidade e uma cadeia de suprimentos que seja bem azeitada o bastante para oferecer produção consistente e a preços baixos em substituição a derivados de petróleo.

Ainda assim, diversas empresas emergentes estão desenvolvendo soluções sustentáveis promissoras. A Natural Fiber Welding (NFW), por exemplo, criou um processo para tratar e alongar fibras recicladas e outros materiais que produzem couro ecológico sem plástico. Ela recebeu financiamento de marcas do setor da moda, como Ralph Lauren e Allbirds. Outro exemplo é a francesa Fairbrics, que está desenvolvendo um processo que converte resíduo de dióxido de carbono em tecido de poliéster.

Lacunas de capacidade e infraestrutura custosa | Tecnologias de reciclagem para tecidos mistos e multicoloridos estão longe de poderem ser adotadas em grande escala. Embora a reciclagem de produtos feitos de algodão e garrafas PET seja técnica e comercialmente viável, sua manufatura representa menos de 10% da produção da indústria da moda. Cada vez mais roupas e calçados são feitos com mesclas, corantes e revestimentos de cores e acabamentos variados. Por exemplo, calças jeans stretch provavelmente contém elastano, um polímero sintético de cadeia longa. Embora startups promissoras como Ambercycle e CIRQ estejam desenvolvendo tecnologias que parecem funcionar para mesclas, até que seja possível sua adoção ampla, a circularidade da moda vai continuar limitada.

Mesmo que a tecnologia estivesse pronta e seu preço fosse competitivo, seria preciso um esforço hercúleo a fim de financiar e construir a infraestrutura de reciclagem necessária para atender à demanda pela reciclagem de mais de 100 bilhões de peças de roupa por ano. Um estudo recente estimou entre US$ 6 bilhões e US$ 7 bilhões os custos de capital para construir uma infraestrutura que desse conta de um terço da capacidade de reciclagem apenas da Europa. É preciso considerar esses custos de capital à luz dos baixos custos das fibras virgens. Segundo o engenheiro de materiais Youjiang Wang, do Georgia Institute of Technology, “é tão barato produzir poliéster, algodão e outros tecidos que, a não ser que os processos de reciclagem sejam muito baratos, há pouca margem de lucro”.

Em última análise, porém, o alto custo da estrutura de reciclagem provavelmente não seja o maior entrave à circularidade. Na verdade, as principais barreiras são a falta de infraestrutura de coleta e os padrões de comportamento dos consumidores. De acordo com Laura Coppen, diretora de circularidade da marca alemã Zalando, “a lacuna comportamental é bem grande e particularmente ampla no ambiente circular, e isso se deve predominantemente ao fato de não haver soluções acessíveis em grande escala para os consumidores”. Mesmo quando camisetas e tênis são devolvidos em pontos de coleta, há um desafio adicional: conectar fluxos de resíduos à produção de reciclagem.

Escassez de colaboração pré-concorrencial e intersetorial | Minha condição de ex-diretor de operações da Timberland me garantiu um convite para a conferência de 2022 do MIT sobre circularidade no setor de calçados, um evento que contou com representantes de mais de dez marcas concorrentes e dezenas de fornecedores. O relatório final do encontro concluiu que a abordagem “fechada” padrão para inovação e propriedade intelectual fracassará se aplicada na transição para uma economia circular no ramo calçadista. No entanto, os participantes comentaram que aquela era a primeira vez que se reuniam para discutir como a indústria poderia trabalhar junta para implementar o modelo circular.

A colaboração entre concorrentes do mundo da moda em áreas que vão desde design de produto aos materiais preferidos é um pré-requisito fundamental, mas não suficiente, para a circularidade. Investimentos em infraestrutura de classificação e coleta encontram-se à margem das definições tradicionais da indústria da moda. A colaboração entre legisladores, investidores e operadores é essencial para que essas competências sejam amplificadas a fim de aportar os recursos necessários a iniciar uma conversão ao sistema circular no setor da moda. O Plano de Ação para Economia Circular da União Europeia e novos esforços na China visam promover essa cooperação.

 

Respostas melhores

 

A humanidade não dispõe de décadas para enfrentar as muitas e rápidas crises planetárias; escassez de água e perda da biodiversidade são desafios prementes. Entretanto, as emissões de carbono têm de cair mais de 7% ao ano pelos próximos sete anos para que haja chance de limitarmos o aquecimento a menos de 1,5 ºC. A maior queda mundial de emissão de carbono de todos os tempos foi de 2%, durante a recessão global de 2008-2009.

Dada a urgência, já passou muito da hora de admitir que soluções voluntárias comandadas pelo mercado não serão adequadas para lidar com externalidades ambientais negativas. A teoria de que avaliações e divulgações conferem a consumidores e investidores poder para pressionar as empresas a enfrentar a mudança climática mostrou-se ineficaz. Quanto mais cedo a Sustentabilidade S.A. reconhecer os limites da ação voluntária, mais cedo poderá dedicar atenção a medidas transformadoras.

Embora a moda seja apenas um setor da economia, seu impacto ambiental negativo é descomunal e segue crescendo. A ausência de progresso, somada a obstáculos colossais, indica que colocar muita fé na moda circular não trará um resultado nem mesmo próximo de ser sustentável. Assim, deixo a seguir quatro recomendações que a indústria pode adotar para enfrentar mais diretamente seus significativos impactos ambientais negativos.

Enfrentar o consumo excessivo | A fonte mais poderosa é a mais difícil de alterar. O marketing da moda e a fidelidade a um modelo baseado na obsolescência programada – a prática de criar produtos difíceis de consertar ou que envelhecem rapidamente – criaram uma máquina viciante e muito bem azeitada, movida a dopamina, que produz crescimento constante. Nos Estados Unidos, o consumidor médio compra, atualmente, uma peça de roupa por semana. Se o passado for lido como um prólogo, os países em desenvolvimento provavelmente imitarão esse comportamento.

Nem os mais terríveis alertas de um iminente caos ambiental mudaram os padrões de consumo. Na verdade, a pressão da indústria da moda em prol do uso de seus “materiais preferidos” (considerados menos danosos ao meio-ambiente) e de selos de sustentabilidade tem o intuito de aumentar a preferência por certas marcas e incentivar o consumo. Não faz sentido alegar que as vendas de mais unidades de sapatos e camisetas “sustentáveis” – 75% dos quais são despejados em aterros sanitários ou incinerados – levarão a um futuro sustentável.

Se as pessoas do mundo desenvolvido se comprometessem a reduzir o consumo e baseassem suas compras mais nas suas necessidades, poderíamos conseguir voltar a viver dentro dos limites naturais, mas projetar tal mudança no zeitgeist é impossível. Para tanto, são necessários instrumentos mais contundentes, a fim de reverter o crescente impacto ambiental do setor da moda. Talvez os legisladores devam pensar em tributar a fast fashion para financiar a diminuição da pegada de carbono do setor, assim como tributos sobre cigarro foram criados para reduzir o consumo e, ao mesmo tempo, financiar programas de saúde pública. Esse tributo também poderia desacelerar o crescimento unitário, caso fosse alto o bastante para elevar os preços.

Regular de maneira eficaz | Embora as leis da União Europeia para atingir a circularidade sejam bem-intencionadas, ainda não está claro quão eficazes serão. Uma abordagem mais direta seria o governo estabelecer limites em relação aos impactos ambientais, tais como emissões de carbono, mas permitindo que as empresas determinem de que modo as promoverão. Uma lei proposta em Nova York – o Fashion Sustainability and Social Accountability Act – faz exatamente isso: pede que as empresas do setor da moda que vendem no estado reduzam suas emissões com base na meta de restringir o aumento da temperatura global a 1,5 ºC. Caso as empresas não cumpram a meta, podem ser multadas em até 2% de suas receitas.

Além disso, cabe a representantes eleitos supervisionar e validar alegações da indústria. Empresas do setor da moda não deveriam promover termos como “circular”, “ecológica” ou “sustentável” em seus produtos até que sejam estabelecidas definições legais  (similar ao que ocorre com alimentos orgânicos) e o processo de compliance esteja assegurado. Na Noruega, leis como essas estão em vigor e, recentemente, a H&M enfrentou problemas com as autoridades por divulgar informações a respeito de sustentabilidade que eram incompletas ou enganosas. Por conseguinte, a marca concordou em suspender as alegações e doar € 500 mil para causas ligadas à sustentabilidade no mundo da moda. O Reino Unido e a União Europeia também estão enfrentando alegações falsas com soluções legais.

 

Dada a urgência, já passou muito da hora de admitir que soluções voluntárias comandadas pelo mercado não serão adequadas para lidar com externalidades ambientais negativas.

 

Por fim, leis de responsabilidade estendida do produtor (EPR, na sigla em inglês) fazem as marcas pagarem pelos custos do fim da vida útil de um produto. A França tem uma lei de EPR vigente para o setor têxtil desde 2007, e o plano circular da União Europeia também contempla regulamentações EPR. Estudos mostram que essas leis são eficazes para o aumento da taxa de reciclagem e, dependendo de sua elaboração, podem incentivar a fabricação de produtos mais benignos e reutilizáveis. Para aumentar a porcentagem de roupas recicladas, é preciso levar em conta taxas mais altas de EPR sobre peças de materiais mistos. A digitalização obrigatória da procedência das peças de roupa também melhora a eficácia da EPR e a aceitação de peças recicladas.

Apoiar soluções inovadoras | A Lei de Redução da Inflação promulgada em 2022 nos Estados Unidos destinou US$ 27 bilhões para financiar um fundo para redução de gases de efeito estufa, visando investimentos em tecnologias de descarbonização promissoras. Um veículo internacional semelhante, para financiar soluções prósperas no setor da moda, permitiria maior comercialização de boas ideias regenerativas. Segundo um estudo de 2020 do BCG, Financing the Transformation in Fashion (Financiar a transformação na moda), a indústria precisa investir de US$ 20 bilhões a US$ 30 bilhões ao ano para promover uma mudança radical no tocante à sustentabilidade – um financiamento como esse provavelmente teria de vir tanto do setor público quanto do privado. A Closed Loop Partners é um exemplo de empresa de investimentos privados que apoia soluções inovadoras voltadas para a sustentabilidade com recursos de concorrentes do setor. Esse modelo, no qual investidores também atuam como validadores e usuários de novas tecnologias, pode ser ampliado no mundo da moda.

Dito isso, o grosso do financiamento de inovação no setor da moda não vai para as maiores fontes de emissão. Atualmente, o capital é destinado primordialmente a materiais novos – que representam cerca de 15% da pegada de gases de efeito estufa de um produto – ou a soluções para novos modelos de negócios, ao passo que o grosso das emissões ocorre nos estágios de processamento da produção. Isso ocorre longe do mundo desenvolvido, nas fábricas de tecelagem, tingimento e acabamento terceirizadas, localizadas principalmente no leste do continente asiático e geralmente alimentadas a carvão. Se os custos não representassem um problema, as emissões provocadas pela fabricação de roupas diminuiriam em mais de 25% com a mudança da produção da China para lugares com uma matriz energética mais limpa, como Turquia e União Europeia.

Na verdade, um acordo financeiro firmado recentemente provavelmente vai fazer mais para moderar as emissões de carbono da indústria da moda do que todos os compromissos com a circularidade. Com o apoio tanto de instituições públicas quanto de bancos privados, o Vietnã anunciou a chamada Just Energy Transition Partnership (Jetp), um compromisso de financiamento de US$ 15,5 bilhões a serem investidos em um período de três a cinco anos. Esses fundos serão usados para acelerar a transição do país de carvão para fontes renováveis, reduzindo, assim, as emissões das fábricas de fornecedores localizados neste que é o segundo maior exportador de peças de vestuário do mundo.

Acelerar a colaboração na indústria e entre setores | A indústria da moda é, há tempos, um baluarte da criatividade. Administrada de uma maneira diferente, a criatividade nascida do cerceamento tem potencial para promover progressos. Um consórcio entre concorrentes das principais marcas pode, por exemplo, adotar ferramentas, padrões e materiais para garantir que, desde a fase inicial, os projetos levem em conta o que acontece quando cada produto é descartado.

Recentemente, em um exemplo instrutivo, os departamentos de design dos refrigerantes concorrentes Mountain Dew e Sprite promoveram a troca de suas tradicionais garrafas plásticas verdes por garrafas transparentes. As duas empresas escolheram aumentar o fornecimento de conteúdo reciclável para ajudar a enfrentar a escassez de garrafas PET recicláveis no setor. Apesar dos receios comerciais, a embalagem transparente não prejudicou as vendas. Agindo de modo independente, a empresa de roupas italiana Napapijri apresentou há pouco uma jaqueta produzida inteiramente de um só polímero, e a marca francesa Salomon lançou um tênis feito de um material projetado para, por meio de upcycling, ser transformado em um par de botas de esqui. Em ambos os casos, as decisões de design tiveram como objetivo promover a reutilização de materiais no final da vida útil desses produtos.

Para reverter sua crescente pegada ambiental, a indústria da moda deve colaborar com concorrentes, operadores de outros setores, investidores e o setor público. Uma sugestão para uma parceria assim seria a união dos principais CEOs da moda para fazer lobby por uma nova parceria público-privada do tipo Jetp em algum outro importante centro de produção do Sudeste Asiático, como Bangladesh, a fim de acelerar a transformação da matriz energética de combustíveis fósseis para energia renovável. Executivos da indústria da moda poderiam alavancar tal ideia concordando em ajudar a financiar o acordo ao lado de instituições bancárias parceiras.

 

Um esforço coletivo

 

Inovação e investimento em materiais e soluções de reciclagem são passos positivos em prol da redução dos efeitos negativos provocados pela indústria da moda. Contudo, quando se trata de sustentabilidade, a retórica está à frente da realidade, e o dano ambiental continua a superar a velocidade da transformação circular. Dados os obstáculos à circularidade, bem como sua incipiência, um progresso genuíno para um mundo da moda sustentável virá apenas com a junção de regulamentações e investimentos do setor com parcerias intersetoriais – e não de metas irreais ou específicas decididas pelas empresas.

Na mesma conferência da GFA na qual a H&M apresentou suas metas de descarbonização, o mediador de um dos debates perguntou aos palestrantes a respeito de um prazo para alcançar a economia circular. “Vai levar uma eternidade”, gracejou William McDonough. Um mau presságio, levando em conta que McDonough é autor do livro Cradle to Cradle, um dos manifestos de origem do movimento circular.

Em vez de esperar uma eternidade, um cético diria que o foco na circularidade é uma distração com o intuito de preservar o status quo e que o maior obstáculo à sustentabilidade é o consumo desenfreado fomentado pela própria indústria. É hora de lidar com essa distração.

 

O AUTOR

Ken Pucker é professor na Tufts Fletcher School. Ele trabalhou por 15 anos na Timberland, 7 deles como diretor de operações da empresa.



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