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Não há solução climática sem solução habitacional (e vice-versa)

Para resolver a crise imobiliária, os financiadores devem tomar medidas coletivas para resolver simultaneamente a crise climática e dar prioridade àqueles que tiveram menos a ver com a sua criação

Por Dana Bourland

(Ilustração de Raffi Marhaba, The Dream Creative)

Os Estados Unidos têm uma história longa de práticas e políticas habitacionais racistas; negros, indígenas e a população não branca em geral têm mais chance de não ter uma casa segura e acessível – ou casa alguma – e a viver em lugares proporcionalmente mais vulneráveis aos efeitos das alterações climáticas do que os habitados por brancos. Os protestos raciais de 2020 abriram os olhos de muitos financiadores para o fato de que a justiça habitacional é impossível sem justiça racial, e vice-versa.

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À medida que cresce o número de catástrofes relacionadas ao clima, uma outra verdade emerge: para resolver a crise de moradia, temos de resolver, ao mesmo tempo, a crise climática – e as soluções devem ser encaminhadas de forma a priorizar aqueles que menos tiveram a ver com a gênese desses problemas.

As consequências dessas catástrofes não se limitam ao rastro de destruição que deixam. Elas também sobrecarregam a infraestrutura arruinada de lugares que já há muito não são alvo de investimento – locais como Jackson, no Mississippi, onde as tempestades de agosto de 2022 deixaram 150 mil pessoas sem água corrente.

As previsões para o nosso futuro estão cada vez mais infestadas dessas catástrofes – além de estações de pólen A previsão do nosso futuro inclui mais destas catástrofes, além de perda de biodiversidade, poluição química, aumento do nível do mar, ondas de calor, ciclones e ventos devastadores. Estima-se que 35 milhões de lares americanos, quase um terço do contingente habitacional do país, enfrentam hoje alto risco de catástrofe climática, enquanto outros milhões de pessoas vivem em habitações desprovidas de calefação ou refrigeração adequadas, ou condições de ventilação que permitam uma melhor qualidade do ar em seu interior.

Além disso, enquanto as famílias mais abastadas deixam as zonas costeiras, mais expostas, por altitudes mais elevadas, a gentrificação climática começa a dar as caras: pessoas de renda média e alta se mudam para áreas tradicionalmente habitadas por população de baixa renda – pessoas que muitas vezes foram deslocadas para essas regiões em decorrência de práticas habitacionais discriminatórias e políticas.

O valor das propriedades dispara, assim como o custo de vida, e as famílias mais pobres são de novo deslocadas. Se não ampliarmos nosso pensamento sobre as questões habitacionais para que ele passe a considerar os impactos das alterações climáticas, os nossos esforços bem-intencionados para criar, fornecer e preservar habitação ainda deixarão as populações mais vulneráveis em uma situação insustentável.

A Funders for Housing and Opportunity (FHO) é uma iniciativa que reúne 13 instituições filantrópicas, incluindo a Fundação JPB, onde atuo como vice-presidente sênior de iniciativas ambientais e estratégicas. Em Gray to Green Communities: A Call to Action on the Housing and Climate (Da comunidade cinza à comunidade verde: um chamado a agir contra a crise habitacional e climática, sem tradução no Brasil), escrevi sobre abandonar práticas “cinzas” de habitação – que produzem benefícios a curto prazo para algumas pessoas, mas têm impactos negativos a longo prazo para a maioria dos demais e para o planeta – e adotar práticas verdes que beneficiem a todos e favoreçam a saúde das pessoas e dos lugares. A FHO, que coloca a equidade racial no centro de esforços intersetoriais para combater as causas sistêmicas do déficit habitacional, tem procurado ativamente maneiras de investir em moradia e justiça climática. Neste artigo, apresento ações coletivas ao alcance de financiadores para fazer avançar uma abordagem holística de combate aos impactos do clima na justiça habitacional.

 

Rumo a soluções holísticas

 

A justiça climática e a habitacional têm a mitigação e a adaptação entre as suas ações prioritárias. A mitigação visa prevenir danos adicionais, evitando e reduzindo as emissões de gases do efeito estufa nos processos de construção e manutenção de moradia. Estima-se que 20% das emissões de carbono nos Estados Unidos provêm da energia utilizada nas residências. Entre as práticas de mitigação, incluem-se medidas para “construção verde” (ou seja, utilização de materiais de construção não tóxicos que foram fabricados, transportados e construídos utilizando métodos e materiais de baixo carbono e não poluentes); a redução do consumo de energia e da poluição; e a utilização de soluções projetuais que incorporem a sustentabilidade desde o início e promovam a boa saúde e habitabilidade ao longo do ciclo de vida do edifício.

Já as medidas de adaptação têm a ver com a forma como nos ajustamos ao clima e aos seus efeitos e visam evitar ou minimizar danos. As práticas adaptativas na habitação incluem a alteração dos códigos de construção fazer com que as moradias se tornem mais resistentes às intempéries, o emprego de soluções arquitetônicas resilientes que garantam que as moradias possam continuar a ser utilizadas com segurança e conforto quando as condições exteriores mudam (por exemplo, através do armazenamento de energia solar) e a reflexão sobre o que as consequências de eventos climáticos extremos para as habitações.

Precisamos desesperadamente de mitigação e adaptação – e isso significa que não podemos simplesmente nos concentrar em novos produtos e tecnologias promissores. Também temos que remediar os danos que já foram causados. Precisamos dar ouvidos às comunidades que já tomaram o futuro em suas mãos adotando soluções que construam riqueza local e interrompam o ciclo de extração e poluição.

Isso já aconteceu em San Juan, capital de Porto Rico, onde ativistas convenceram os legisladores a estabelecer um fundo comunitário para evitar que os incorporadores de resorts turísticos adquirissem terras que residentes de baixa renda foram forçados a abandonar para que o governo pudesse efetuar a dragagem de  um curso d’água poluído que inunda quando chove.

Outro exemplo vem dos cerca de 250 bancos de terreno que existem hoje nos Estados Unidos. Essas entidades públicas ou sem fins lucrativos adquirem, administram e transferem edifícios e lotes que estão vazios, abandonados ou em execução judicial, muitas vezes devido a desastres econômicos ou naturais. Em alguns casos, essas propriedades são reformadas de modo a prover habitação a preços acessíveis e estabilizar os valores das propriedades.

Estratégias como essas podem prevenir ou reduzir deslocamentos em áreas mais propensas a se tornarem alvo de gentrificação climática e por isso merecem nossa atenção e investimentos.

À medida que trabalhamos para tornar os edifícios futuros mais salubres e seguros para as pessoas e para o planeta, também temos de responder ao fato de que meio milhão de crianças, a maioria das quais vivem em bairros predominantemente negros e/ou com altos índices de pobreza, sofrem exposição a chumbo em suas moradias. Da mesma forma que constatamos com preocupação que famílias de baixa renda gastam três vezes mais com energia do que as de renda média ou alta, deveríamos nos inquietar com o fato de que construções de má qualidade e o envelhecimento das moradias contribuem para essa disparidade.

Mitigação, adaptação e remediação estão interligadas. Mas as soluções pensadas nos âmbitos da habitação e das alterações climáticas muitas vezes não são têm o alcance holístico que  deveriam ter. Considerar a moradia apenas em termos do resultado final – simplesmente dar abrigo a pessoas, instalar painéis solares num telhado ou elevar as fundações de um edifício para evitar inundações – é não ter uma visão geral do problema.

A habitação é parte de um ecossistema muito mais amplo, dentro do qual os métodos que realmente merecem o rótulo verde vão além de apenas mitigar as alterações climáticas. Elas também estimulam a saúde, o emprego e a economia, não só na comunidade onde aquela determinada construção está localizada, mas em todas as comunidades, incluindo aquelas onde ocorre a geração de energia elétrica e onde os materiais de construção são fabricados. Se passarmos a pensar nos problemas e nas soluções de forma holística, abriremos um leque muito maior de opções para promover simultaneamente a justiça racial, habitacional e climática.

Felizmente, temos pela frente muitas oportunidades para isso. Mais de 27 agências de financiamento habitacional já adotaram os Critérios de Comunidades Verdes Empresariais como um requisito para projetar, construir e reabilitar casas que sejam acessíveis e salubres, reduzam os custos de serviços públicos para os residentes, melhorem sua ligação com a natureza, protejam o meio ambiente e promovam a saúde dos ecossistemas locais e regionais.

 

O que a filantropia pode fazer

 

Financiadores privados e públicos podem comprometer-se a garantir que todos tenham acesso a uma casa pela qual possam pagar, independentemente da raça ou do rendimento, num planeta que está prosperando — e devem apoiar esse objetivo com regulamentações, incentivos e financiamento adequados.

O capital filantrópico também pode deixar de fazer investimentos que estimulam o uso de combustíveis fósseis e emissões adicionais de gases de efeito estufa e, em vez disso, fazer tudo que estiver a seu alcance para proteger e preparar as pessoas e as comunidades para os efeitos das alterações climáticas.

Um exemplo recente vem de Buffalo, no estado de Nova York, onde a Push (People United for Sustainable Housing, pessoas unidas por moradia sustentável), uma organização sem fins lucrativos de base comunitária que advoga por políticas públicas e  pela remodelação de bairros destinadas a criar habitações verdes acessíveis e bairros resilientes.

A Push não só organiza campanhas para modificar políticas e regulamentações como também adquire terrenos baldios e edifícios que transforma em espaços verdes com moradias sustentáveis e energeticamente eficientes, pensadas para criar ocupações que deem sustento aos moradores do bairro.

A FHO já se comprometeu a colocar a justiça racial no centro da justiça habitacional. Agora, espero que possamos também incluir a ação climática no nosso trabalho para enfrentar o desafio da habitação. Como afirmou um relatório de 2022 do Centro Conjunto de Estudos de Habitação de Harvard, “a moradia tem um lugar central no bojo das políticas climáticas, integrando o conjunto de ferramentas estratégicas para reduzir as emissões de gases de efeito estufa e como um canal para abordar a injustiça social e económica exacerbada que o consumo de combustíveis fósseis tem causado”. Chegou a hora de a mitigação e a adaptação às alterações climáticas serem plenamente incorporadas aos esforços de justiça habitacional. Não podemos nos dar ao luxo de fazer um sem o outro.

A AUTORA

Dana Bourland é vice-presidente sênior de iniciativas ambientais e estratégicas da Fundação JPB.



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