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‘As políticas e sistemas educacionais não podem se omitir na defesa da democracia’

Educação: para a professora Denise Carreira, é preciso repensar o conceito de sucesso educacional e as políticas públicas na educação em um país marcado por desigualdades como o Brasil

Por Francesca Angiolillo

 

Crédito: Gabriella Maria / Afroafeto Fotografia / Projeto Seta

I ndicadores problemáticos, como baixas taxas de conclusão do ensino médio, combatidas com medidas que respondem a parâmetros de eficiência em gestão, não são uma prerrogativa apenas americana; também no Brasil é preciso repensar o que significa sucesso educacional

Em um país marcado por desigualdades como o Brasil, as políticas públicas para a educação e a configuração dos sistemas de ensino não podem se pautar apenas por indicadores quantitativos, sustenta Denise Carreira. 

Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, ela foi coordenadora da organização social Ação Educativa e é defensora do direito à educação de meninas e mulheres na Rede Internacional de Ativistas do Fundo Malala. 

Tendo atuado no desenvolvimento de metodologias participativas e na formação de profissionais de educação, ela defende nesta entrevista que as condições sociais não só devem ser modificadas pela educação, mas também informar profundamente o projeto de escola que queremos. As particularidades do território, a diversidade dos jovens e sua participação no contexto devem ser levadas em conta no desenho dos currículos e parâmetros escolares, para uma escola pública para todos, capaz de fomentar a equidade e promover a proteção do ambiente. 

O artigo “Uma nação de formandos” fala da importância das taxas de conclusão do ensino médio como parâmetro de sucesso educacional. Quão relevante é esse dado no contexto brasileiro?

DC Elas são um indicador importante para medir a elevação da escolaridade da população quanto à conclusão da educação básica, prevista nas metas do atual PNE – Plano Nacional de Educação (2014-2025) e no projeto de lei do futuro PNE (2026-2036), em tramitação no Congresso. O Brasil se caracteriza por uma política educacional historicamente tardia e profundamente desigual, que acarreta que ainda hoje cerca de 50% da população não tenha concluído o ensino médio. Mas, para fins de um debate mais complexo sobre sucesso educacional, devem ser levados em conta também outros parâmetros, que abordem de forma mais qualitativa qual é o projeto de ensino médio e quais são os referenciais de qualidade educacional dessa etapa para a construção e sustentação de um projeto de sociedade baseado na justiça racial, social, de gênero e climática, que enfrente desigualdades e discriminações históricas.

A adoção de parâmetros unificados é um desafio no Brasil, assim como era nos Estados Unidos?

DC A definição de parâmetros de qualidade em ensino médio está em disputa há décadas no Brasil, ganhando maior abrangência e dramaticidade nos contextos que marcaram a aprovação autoritária da reforma de 2017, com forte resistência de movimentos estudantis e de outros movimentos sociais; e na luta por sua revogação no atual governo Lula, com base em evidências de que precarizou mais a etapa e aprofundou desigualdades e exclusões. Por parte dos movimentos estudantis, organizações da sociedade civil e grupos de pesquisas, há o entendimento de que é necessário um projeto de ensino médio alargado, comprometido com a democratização dessa etapa, baseada em parâmetros de qualidade que ultrapassem a avaliação externa de larga escala. 

A publicação Indicadores da qualidade no ensino médio (2018), metodologia participativa vinculada à organização Ação Educativa, da qual fui uma das coordenadoras, levou em conta os legados das ocupações estudantis ocorridas entre 2015 e 2016. Ali destacamos seis grandes eixos de debate. Assim, o ensino médio de qualidade deve: ser compreendido como direito humano à educação; se comprometer com a superação das desigualdades; ser enraizado no território, com uma escola que atue em rede com outras escolas e serviços públicos; exigir a melhoria das condições das escolas; se basear em uma perspectiva integral da vida das estudantes e que reconheça e valorize a diversidade juvenil; e estimular a participação ativa dos estudantes na vida, na escola e na sociedade. 

Existe histórico nacional para dizer que programas como o recente Pé-de-Meia possam dar resultado?

DC O Pé-de-Meia é um programa federal de incentivo financeiro-educacional voltado a estudantes matriculados no ensino médio público que sejam beneficiários do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal. É como uma poupança para promover a permanência e a conclusão escolar, em um país com altas taxas de evasão de abandono, exclusão escolar e baixos índices de matrícula na educação superior. O país tem antecedentes estaduais com resultados positivos, como o Renda Melhor Jovem, do Rio de Janeiro. Políticas de transferência de renda são extremamente relevantes, considerando que grande parte dos jovens deixa o ensino médio pelo fato de terem que contribuir com a sobrevivência de suas famílias. O Brasil apresenta um acúmulo bem-sucedido de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, que têm contribuído de forma inconteste para a maior permanência escolar. Porém políticas econômicas de ajuste fiscal, mesmo após o fim da drástica emenda 95/2016 [que impôs o teto de gastos], tolhem o alcance dessas políticas, que poderiam ser mais ousadas. Um dos grandes limites do Pé-de-Meia é se restringir à faixa etária de 19 a 24 anos. 

Destaca-se também que o incentivo financeiro a estudantes de ensino médio deve vir associado a outras políticas, comprometidas com o enfrentamento dos desafios históricos e estruturais do ensino médio, retomando debates da sociedade civil e das universidades que remontam aos anos 1990. 

O artigo “Uma visão democrática para a educação pública” defende a tese de que as escolas americanas sejam reorientadas para formar cidadãos, e não só indivíduos competitivos. Em que ponto estamos desse debate no Brasil?

DC Assim como nos Estados Unidos, a noção de qualidade educacional hegemônica nos sistemas de ensino do Brasil está referenciada na supervalorização dos resultados das avaliações externas de larga escala, por meio de testes padronizados, com foco no desempenho em português e matemática, tendo o Ideb (Indice de Desenvolvimento da Educação Básica), criado em 2007, como principal parâmetro. Porém, nas últimas décadas, outras noções de qualidade educacional têm disputado a agenda. Uma delas se refere à luta por políticas universais de Estado que quebrem a lógica histórica da descontinuidade, com metas de médio e longo prazo, com a garantia dos insumos básicos, com o aumento de financiamento com base no custo aluno-qualidade (CAQ). O CAQ, proposto pela sociedade civil e constitucionalizado em 2020 por meio da emenda 108, estabelece parâmetros de qualidade e representa o valor do investimento por aluno necessário a garantir o direito à educação de qualidade da forma prevista em lei. Uma segunda perspectiva vem das lutas de movimentos sociais pelo reconhecimento das diferenças como desigualdades na educação e pelo tensionamento do que se entende por políticas universais. Essa agenda vem sendo impulsionada por sujeitos diversos: movimentos negros, indígenas, LGBTQIA+, mulheres, do campo e das florestas, pessoas com deficiência, ambientalistas e outros vinculados a questões de fronteira do direito à educação. Esses movimentos apontam as insuficiências de políticas universalistas para dar conta das múltiplas desigualdades e da destruição ambiental.

Nos últimos anos, esses movimentos obtiveram conquistas, como as ações afirmativas com recorte de renda e raça no ensino superior, e mudanças curriculares, entre as quais as que tornam obrigatório o ensino das histórias e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas em toda a educação básica; a previsão legal da educação para a promoção da igualdade de gênero e raça e a política nacional de educação ambiental, entre outras.

Essas conquistas, porém, ocupam um lugar marginal na agenda, em decorrência, em grande parte, do gigantismo das avaliações externas de larga escala. Em um texto publicado em outubro deste ano (“O lugar da educação no fortalecimento da democracia”) chamo a atenção para a necessidade de as políticas educacionais reverem urgentemente seus referenciais de qualidade em um contexto planetário de regressão democrática, avanço da extrema direita e aceleração das emergências climáticas. Precisamos de uma noção de qualidade educacional que favoreça o letramento político-democrático da educação. As políticas e sistemas educacionais têm uma grande tarefa pela frente e não podem se omitir na defesa e fortalecimento da democracia. 

Para os autores do artigo, a gestão de desempenho das escolas é um dos aspectos dessa ética neoliberal. Quais medidas seriam mais efetivas para combater maus indicadores?

DC O discurso neoliberal restringe a complexidade do problema a uma questão de gestão, a ser respondida por um receituário gerencial, imposto no Brasil a várias redes de ensino e reeditado por vários governos desde os anos 1990. Ele vai na contramão da garantia do direito humano à educação para todas as pessoas, sobretudo em realidades tão desiguais. Temos de avançar em políticas de equalização que garantam mais financiamento e melhores condições para as escolas que enfrentam realidades sociais mais desafiantes. Historicamente a política educacional brasileira foi forjada para oferecer as piores condições para esses territórios – negros, indígenas, periféricos, do campo, de baixa renda –, intensificando as desigualdades. 

Experiências revelam que as respostas passam por uma gestão pública democrática, territorializada, com capacidade de escuta e reflexividade, capaz de construir respostas intersetoriais e interseccionais aos problemas cotidianos, com profissionais de educação dedicados a uma única escola e com tempo suficiente para desenvolver trabalho coletivo – tempo cada vez mais roubado pela proliferação de avaliações de larga escala e pelos processos de plataformização digitais. 

O resultado passa também por projetos interdisciplinares; vivências participativas; valorização de experiências, conhecimentos, saberes e interesses dos estudantes; busca ativa dos excluídos; e fortalecimento da relação com as famílias, comunidades e escolas do entorno. Não há uma só receita, mas caminhos construídos considerando potências e desafios de cada contexto e a atuação em rede.

Leia também: Uma visão democrática para a escola pública

 

 



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