A escola que reconstrói a sociedade civil
Como a ONG The Citizens Foundation está transformando a educação no Paquistão, com resultados notáveis para as crianças menos privilegiadas do país
Por Noor Noman
Kainaat Ansari começou a vida em uma katchi abadi – nome dado, no Paquistão, a assentamentos de baixa renda derivados de ocupações ou subdivisões informais de terra. Localizado em Orangi, o lugar onde ela cresceu é a maior favela do mundo com quase 2,5 milhões de habitantes, e se estende ao longo da periferia noroeste de Karachi, no Paquistão. Mais velha de três filhos de uma família pobre, em um país com pouca mobilidade ascendente, Ansari tinha perspectivas de vida limitadas.
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Ainda que sua mãe tivesse pouca escolaridade, incutiu na menina o valor da educação contando histórias inspiradoras sobre mulheres transformadoras e figuras influentes, como Benazir Bhutto, primeira e única primeira-ministra do Paquistão. “Sempre disse à minha mãe que teria uma educação para ser como elas”, lembra Ansari. “Minha mãe ria e dizia: ‘Só concluir [os exames finais] já é tão difícil’.” Mas, acrescenta Ansari, “no fundo, ela meio que encorajou isso”.
Até os 13 anos, em 2014, Ansari e seu irmão mais novo, então com 11, só tinham frequentado uma escola do governo, onde os alunos se sentavam no chão em salas superlotadas, e os professores faltavam muito. A pedagogia enfatizava a aprendizagem mecânica, baseada principalmente na memorização de livros didáticos em inglês. No entanto, como 94% dos professores do ensino fundamental e médio no Paquistão não são proficientes no idioma, a maioria não compreende o que está ensinando e é incapaz de educar os alunos sobre o que estão memorizando. Não surpreende, portanto, que o país tenha uma das menores taxas de alfabetização do mundo – 58%, de acordo com os dados mais recentes do Banco Mundial. O dado é ruim, mesmo se comparado ao de outros países do sul da Ásia. No Butão e no Nepal, a taxa é de 71%; na Índia, de 74%; em Bangladesh, de 75%; e no Sri Lanka, de 92%.
Um dia, naquele ano, um amigo recomendou ao pai de Ansari que mandasse o filho para uma escola administrada pela organização sem fins lucrativos The Citizens Foundation (TCF), fundada em 1995 por um grupo de seis ativistas civis paquistaneses. O sistema coeducacional da TCF – que hoje opera em 1.833 escolas primárias e secundárias em todo o país – já tinha, à época, a reputação de oferecer educação de qualidade e acessível. Noventa por cento dos graduados da TCF buscam o ensino superior, e cerca de metade desses de fato se matricula em escolas técnicas e universidades. As cifras contrastam fortemente com os dados nacionais de 2022, que registraram uma taxa de abandono de 33% no ensino fundamental e de 73% no ensino médio. A taxa de matrículas no ensino superior foi de 12% em 2019, segundo dados do Banco Mundial.
Ansari acompanhou a mãe e o irmão no dia da matrícula dele na TCF. “Ainda me lembro, de forma muito vívida, de caminhar até a escola”, diz ela, hoje com 23 anos. “Tinha um playground imenso, onde, pela primeira vez, vi meninas jogando basquete e badminton. E eu fiquei, tipo, ‘caramba, o que está acontecendo aqui? As pessoas realmente fazem isso?’ Fiquei muito feliz!” Ela se entusiasmou tanto que perguntou à mãe se também poderia se matricular.
“Minha mãe falou: ‘Não, você está louca? Não dá para você vir de tão longe’”, Ansari continua. A menina, porém, desafiou a mãe e convenceu o diretor a deixá-la tentar o exame de admissão naquele dia. Ela não passou, mas a organização, em vista de seu compromisso de ajudar crianças carentes e da paixão que ela demonstrou, lhe disse que seria aceita se concordasse em repetir a oitava série. Ansari persuadiu seus pais a permitir que ela frequentasse a escola secundária TCF, onde se formou, em 2017.
As escolas secundárias da TCF só passaram a contar com o ensino médio completo em 2016. Muitos graduados da TCF, incluindo Ansari, concluíram o ensino médio em instituições externas à organização. Ela foi aceita pela United World Colleges, rede global de escolas que oferece o International Baccalaureate, equivalente internacional de um diploma do ensino médio.
Ansari foi então aceita no Whitman College, em Walla Walla, no estado americano de Washington, e fez um intercâmbio de um semestre, em 2022, no Lady Margaret Hall da Universidade de Oxford – faculdade que escolheu por ter Benazir Bhutto e Malala Yousafzai, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, entre as ex-alunas. Muitas vezes, ao passar por um retrato de Bhutto em uma parede da instituição, Ansari recordou, ainda sem acreditar, a promessa feita por sua versão mais jovem.
O feito de Ansari, embora notável, não é singular, mas compartilhado por muitas das 280 mil crianças que se formaram pela TCF. Muskan Amjad, filho de um motorista de riquixá, foi para uma universidade paquistanesa de ponta depois de se formar na TCF e agora trabalha em uma empresa de software. Javaria Yousaf descobriu seu amor pelos números na TCF, fez um mestrado em economia na Universidade de Punjab e, depois, voltou à TCF como professora de matemática. Temos ainda Asad Ahmad, filho de um vendedor de frutas que se formou na TCF e depois no Instituto Ghulam Ishaq Khan de Ciências e Tecnologia de Engenharia, uma das principais universidades do país. Ele foi contratado por uma empresa de software logo após concluir o curso.
A visão dos ativistas para a sociedade
Os Fundadores da TCF se conheceram em 1993. Eles faziam parte de um grupo ativista, informalmente chamado de “grupo da quarta-feira”, que se reunia semanalmente em Karachi, no Paquistão, para formular respostas cívicas ao agravamento da deterioração social e política do país.
O Paquistão vinha se recuperando de uma década de governo sob o mando do general fundamentalista religioso Muhammad Zia-ul-Haq, que orquestrou um golpe no fim dos anos 1970 e morreu em um acidente aéreo em 1988, sob circunstâncias misteriosas e amplas suspeitas de sabotagem. Sob o mando de Zia-ul-Haq, o país foi de relativamente liberal a fechado, conservador e fragmentado. Ele introduziu a sharia – sistema jurídico baseado em uma interpretação reacionária do Alcorão, segundo a qual, por exemplo, mulheres que sofram estupros podem ser presas por terem tido relações sexuais ilegais – e catalisou a islamização da economia, incluindo a eliminação de juros do sistema bancário. (A cobrança de juros é considerada anti-islâmica.) Sua insistência em desenvolver uma bomba nuclear agravou a ameaça de sanções econômicas, desestabilizando ainda mais os mercados do país.
Apesar dos esforços para reconstruir a economia no fim dos anos 1980 e 1990, o Paquistão estava “preso em um círculo vicioso de pobreza, baixo crescimento, baixa poupança e baixo investimento”, explica o economista e ex-ministro do Comércio do Paquistão Mohammad Zubair Khan no relatório “Liberalização e Crise Econômica no Paquistão”, de 2000. Essa instabilidade econômica alimentou uma maior agitação social e política.
“O Paquistão sempre enfrentou desafios, mas naquela época eles eram especialmente ruins, em termos de ilegalidade, sequestros e crimes com armas de fogo”, lembra Mushtaq Chhapra, ativista civil e cofundador da TCF. Os ativistas foram “pessoalmente ameaçados”, diz ele. “Nossos filhos e nossas famílias estavam em risco, muitos de nossos amigos foram sequestrados – foi uma espécie de despertar.”
O grupo da quarta-feira inicialmente adotou o vigilantismo como linha de ação. Mas as mentes mais frias prevaleceram, e as discussões se voltaram para abordagens sustentáveis e não violentas dos problemas do país. Determinaram a educação como alavanca crítica para construir e sustentar uma sociedade civil estável. Isso se tornou a base da missão da TCF: oferecer educação de qualidade a todos.
Os fundadores da TCF sabiam que, ao entrarem no setor educacional, enfrentariam resistência tanto de funcionários do governo quanto de educadores, que defendiam a agenda política nacional
Chhapra considerava que o histórico do país no campo da educação era terrível e acreditava que era seu dever cívico agir. “[A falta de] educação é a raiz de muitos males”, ele diz. “Em uma sociedade, comunidade ou país onde as pessoas são educadas, elas são mais tolerantes, pacientes e ouvirão mais.” A educação, observa ele, é um indicador significativo de múltiplos determinantes sociais, incluindo melhores resultados de saúde e redução da probabilidade de criminalidade.
Chhapra, que é magnata do setor de manufatura, no momento atua como presidente do conselho da TCF, que conta com os outros dois fundadores remanescentes: Ateed Riaz, codiretor e copresidente da casa de negócios Imrooz, e Ahsan M. Saleem, CEO da Crescent Steel e da Allied Products Limited. Os empresários Hamid Jafar e Rashid Abdulla, além do irmão de Rashid, Arshad Abdulla, único arquiteto do grupo, são os outros três fundadores. Arshad Abdulla projetou o primeiro grupo de escolas TCF.
Os fundadores queriam uma PoC (prova de conceito, no acrônimo em inglês) antes de embarcar na arrecadação de fundos, então juntaram seus fundos pessoais para construir cinco escolas nas katchi abadis de Karachi em 1996. Foram matriculadas, por ordem de chegada, 800 crianças nessas escolas. Eles também estabeleceram um sistema de tarifas no qual a anuidade total a ser paga por uma família variava segundo uma escala que ia de 10 rupias (US$ 0,036) para a escola primária a 20 rupias (US$ 0,07) para a escola secundária. Hoje, a taxa mínima para ambas as escolas é de 25 rupias (US$ 0,09).
“Quando você tira essa restrição e diz: ‘Mande todos, vamos cobrar o mesmo valor’, as coisas mudam”, diz Zia Akhter Abbas, vice-presidente-executiva de desenvolvimento e parcerias da TCF. “O valor absoluto não aumenta; na verdade, cai por criança [inscrita]. Então há um incentivo para enviar todos os seus filhos.”
As escolas alcançaram uma popularidade tão imediata que, decorrido um ano, os idealizadores da TCF convidaram doadores potenciais para visitá-las.
As promessas e os perigos da educação
Os fundadores da TCF sabiam que, ao entrarem no setor educacional, enfrentariam resistência tanto de funcionários do governo quanto de educadores, que defendiam a infraestrutura existente e a agenda política nacional para aumentar as taxas de matrícula, em vez de melhorar a qualidade do ensino.
A estratégia oficial tinha algum sentido: o Paquistão é um dos três países com menos crianças escolarizadas no mundo. Cerca de 44% (ou 23 milhões) das crianças entre 5 e 16 anos não estão na escola, de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). As disparidades regionais tornam o acesso à educação ainda mais difícil para certas populações: em Sindh, a província de Ansari, onde fica Karachi, 52% das crianças (e 58% das meninas) com idades entre 5 e 16 anos estão fora da escola.
O governo descentralizado do Paquistão delegou a política educacional às administrações regionais, o que gerou disparidades significativas, tanto na qualidade como na uniformidade e no acesso, exacerbadas por décadas de corrupção. Em 2010, um relatório da Save the Children estimou que havia 30 mil escolas fantasmas no país, existentes apenas no papel para que funcionários do governo pudessem desviar recursos federais. Estimou também a existência de escolas operacionais, de acordo com a conselheira sênior da TCF, Nadia Naviwala, em seu relatório “A crise da educação do Paquistão”, que existem em áreas representadas por políticos seniores. Essa corrupção também se estende aos educadores. Apoiadores de um partido no poder às vezes são contratados como professores, apesar de não terem qualificação. Ao longo de 2015, o Partido Popular do Paquistão (PPP), que governava Sindh, empregou 14 mil de seus apoiadores como professores na província. É comum que esses professores faltem muito ou que, quando presentes, tratem mal as crianças, ordenando-lhes que lhes façam massagens ou busquem refeições.
Esse quadro faz com que o Paquistão tenha “um dos sistemas educacionais mais fragmentados e iníquos do mundo”, diz Faisal Bari, professor associado de educação e economia da Escola de Educação de Ciências da Administração da Universidade de Lahore. A recusa dos pais em matricular seus filhos na escola e as taxas de evasão são desafios adicionais. A infraestrutura física precária – escolas sem muros, água potável, eletricidade e acesso a banheiros – é um problema significativo. Quase 30% das instituições primárias no país não têm banheiros utilizáveis, e as crianças são forçadas a se aliviar nos campos. “Toda vez que vou aos campos com minhas amigas, rezo para que voltemos para a escola em segurança”, disse uma menina de 11 anos em Punjab à Assembly, uma publicação do Fundo Malala. “O medo de sermos molestadas ou picadas por uma cobra ou escorpião nos deixa muito tensas”, acrescentou. “A ideia de estar sendo observada também.”
Entre outras barreiras, estavam a proximidade da escola, professores do sexo masculino e desastres relacionados ao clima. A proximidade é determinante no caso das meninas, pois os pais temem pela segurança de suas filhas no trajeto. Segundo dados da Harvard Kennedy School, se uma menina paquistanesa mora a 500 metros de distância de uma escola, ela tem 15% menos probabilidade de frequentar a escola do que uma que more mais perto.
Para os fundadores da TCF (cinco dos quais eram empresários) a maioria dos desafios estruturais da educação, se não todos, poderiam ser resolvidos com uma gestão ética e de qualidade. Assim, diz Chhapra, a abordagem de projeto para o sistema escolar foi “criar e operar o sistema a partir do paradigma da gestão, e não de um paradigma da educação”.
Flexibilidade para funcionalidade
A gestão é a pedra angular do sistema da TCF. Ainda que a organização tenha uma estrutura organizacional tradicional – um CEO, vice-presidentes-executivos e gerentes regionais e de área –, o sistema escolar foi projetado para capacitar a equipe em todos os níveis. As operações são padronizadas: os diretores das escolas determinam e executam seus próprios planos de melhoria do estabelecimento sob a condição de que a comunicação seja aberta e os professores possam dar feedback. O objetivo dos fundadores era garantir que a organização os superasse e contribuísse para a reconstrução de uma sociedade civil. “O que falta mais que tudo ao Paquistão não são escolas, mas instituições que sobrevivam aos indivíduos que o criaram”, diz Abbas sobre as intenções dos idealizadores da iniciativa.
A estrutura é uniformizada para evitar muitas das consequências da descentralização das escolas estatais. Cada escola primária tem um diretor, seis professores e um máximo de 180 alunos. Há um professor por série – do jardim de infância até o quinto ano –, de modo que nunca há mais de 36 alunos por turma. Da mesma forma, cada escola secundária tem um diretor, cinco professores e um máximo de 180 alunos. Do sexto ao décimo ano, as escolas secundárias têm uma turma por série, com um professor e um máximo de 36 alunos em cada sala de aula. Todos os professores da TCF devem passar nos exames de admissão da instituição, desenvolvidos pela equipe de recursos humanos.
Os gerentes regionais e de área são militares aposentados. Naviwala afirma que isso não apenas incentiva os funcionários a levar seus papéis a sério como estimula um senso de responsabilidade raro no setor da educação e “cria uma ideia de serviço nacional e disciplina”.
Na contramão dos mitos ocidentais sobre os paquistaneses não desejarem educar suas meninas, a disparidade de gênero não é uma questão do lado da demanda, mas do lado da oferta
A tecnologia agilizou a gestão. “Com uma organização desse tamanho, tornou-se quase impossível usar um sistema baseado em papel”, diz Ghazala Nadeem, vice-presidente-executivo de recursos humanos, tecnologia e excelência organizacional da TCF. O sistema de gerenciamento operacional funciona por meio de aplicativo para smartphone, que permite realizar todo o trabalho administrativo e se divide em três módulos – de alunos, funcionários e finanças. Somente a direção pode acessá-lo, e essa centralização funciona como controle de qualidade. Por exemplo, só diretores matriculam ou desmatriculam alunos, o que garante que cada escola nunca ultrapasse o número máximo por turma ou por escola.
Apesar da uniformização, a TCF também se esforça para ser adaptável. Por exemplo, a primeira avaliação externa da TCF, realizada em 2012 pelo Instituto Universitário Aga Khan para o Desenvolvimento Educativo, identificou fragilidades no conhecimento dos professores quanto a conteúdos e liderança escolar. A TCF respondeu rapidamente. Em primeiro lugar, comunicou os resultados a seus investidores e doadores. Para a organização, a transparência é fundamental para angariar e manter a confiança com os membros da comunidade. Alguns conselheiros, como Shashi Buluswar, fundador e ex-CEO do Instituto de Tecnologias Transformadoras do Lawrence Berkeley National Lab, disseram à organização que transparência é importante, mas que a TCF superenfatiza suas fraquezas. Abbas discorda: “Acho que é um superpoder muito bom para que uma organização seja muito real consigo mesma e autêntica”.
Após a avaliação fraca, a TCF introduziu testes de conteúdo duas vezes por ano para todos os seus professores e vinculou seus resultados à remuneração. Metas claras de melhoria foram estabelecidas para cada professor. Os novos incentivos conseguiram aumentar as notas dos testes. A TCF também ajudou os professores a sanarem seus pontos fracos, distribuindo recursos impressos e links com vídeos educativos enviados a seus celulares.
Para abordar a segunda questão, a TCF instituiu um treinamento anual para diretores, com foco em liderança e gestão, e estabeleceu um índice de qualidade, determinado por uma visita de um avaliador certificado que avalia o desempenho de cada diretor ao longo de um dia e fornece feedback.
Um processo de aprendizagem
A pedagogia seguida pela TCF prioriza o pensamento crítico, a resolução de problemas e a aprendizagem emocional por meio de uma abordagem interativa e centrada no aluno. Em contraste com a das escolas públicas, ela diminui a ênfase na aquisição mecânica e nos testes baseados em memorização e avalia os alunos sobre compreensão de leitura, análise textual e lógica.
Nos primeiros anos, a TCF dependia de livros didáticos emitidos pelo governo, para as aulas em urdu, e de editoras acadêmicas, como a Oxford University Press, para livros de matemática e ciências. Em 2009, insatisfeita com os livros do governo, passou a desenvolver seus materiais em colaboração com a organização sem fins lucrativos Educational Resource Development Centre. Em 2016, a equipe acadêmica da TCF criou livros didáticos que refletiam a pedagogia da instituição, escritos em urdu e com conteúdos que permitem que os alunos se identifiquem, em termos culturais.
“Os livros em inglês mostravam, digamos, um caminhão de sorvete rolando pela rua, com ‘Sam the ice cream man’ vendendo sorvetes de casquinha”, Abbas observa. “Nossos livros têm o kulfi wala [sorveteiro local] em uma bicicleta, e isso faz o aluno pensar: ‘Isso é para mim. Eu sou o centro desse universo’.”
A TCF também acredita que o currículo em urdu traga benefícios culturais e emocionais, além dos práticos. Ele foi pensado para derrubar a mensagem dominante de que o inglês é superior, e que o urdu, idioma nativo das crianças, é reservado para interações e pensamentos inferiores, menos sutis ou complexos. Para promover a língua e a cultura nacionais, a TCF oferece seus livros didáticos gratuitamente. Hoje, seus livros são usados por mais de 300 escolas particulares em todo o Paquistão.
A aprendizagem emocional é a mais nova habilidade adicionada à pedagogia da TCF. “Há períodos específicos em que os alunos são guiados por atividades que permitem que expressem seus sentimentos, como entrar em contato com as coisas pelas quais são gratos ou dizer algo que gostariam de ter feito de diferente”, explica Abbas. Por exemplo, os alunos aprendem que a raiva muitas vezes mascara a vergonha e o constrangimento, e há um espaço seguro no qual podem discutir esses sentimentos – lição particularmente valiosa para meninos, geralmente criados sob a crença de que a masculinidade exige a supressão de suas emoções. As salas de aula para alunos mais jovens foram redesenhadas para elevar a interação e a socialização, colocando as carteiras voltadas umas para as outras em vez de apontadas para um professor na frente.
A TCF está migrando a avaliação dos alunos da banca examinadora local para a federal, mais exigente. Ainda que a organização pudesse ter melhores resultados nos exames caso permanecesse com a banca local, a transição visa melhorar a qualidade dos padrões e resultados educacionais de longo prazo. “Neste momento, estamos passando por muita turbulência”, comenta Abbas sobre a mudança, que exigiu mais formação de professores para se adaptar a um currículo mais rigoroso.
Proporções de gênero
Ao incluir aprendizagem emocional na pedagogia, a TCF se mostra comprometida em educar os alunos sobre como o gênero estrutura as relações e a sociedade. Os fundadores entendem que alcançar a paridade em sala de aula deve ser uma prioridade para que realizem sua missão.
A falta de escolas próximas, a infraestrutura precária e a ameaça de predação por parte de professores do sexo masculino são os principais impedimentos práticos para as meninas em idade escolar, segundo seus pais. Na contramão dos mitos ocidentais sobre os paquistaneses não desejarem educar suas meninas, a disparidade de gênero não é uma questão do lado da demanda, mas do lado da oferta.
A guinada autocrática do Paquistão representa uma ameaça à parceria entre governo e TCF. Ela pode ser alterada ou até eliminada dependendo do resultado das próximas eleições gerais
A TCF acreditava que poderia fechar a lacuna de gênero caso resolvesse essas barreiras. Primeiro, a entidade decidiu contratar apenas professoras e diretoras mulheres, a fim de aliviar o medo dos pais. Em áreas rurais, procurou diminuir o tempo de viagem das meninas até os estabelecimentos. Todas as escolas da TCF têm água potável e banheiros funcionando; muros protegem a escola e as meninas, minimizando as ansiedades dos pais em relação ao assédio, abuso ou violência.
A TCF atingiu a paridade de gênero rapidamente, embora não se possa identificar com precisão quando ela foi alcançada. Essa conquista difere muito dos dados registrados pelo Banco Mundial, que indicam que, no Paquistão, meninas de origem pobre têm cerca de 22% menos probabilidade de serem enviadas para a escola do que meninos.
A ação gerou um efeito cascata. A TCF é “o maior empregador individual de mulheres fora do setor público do Paquistão”, de acordo com um artigo de 2018 na revista The Economist. A afirmação continua válida até hoje. Dos 18 mil funcionários da TCF, aproximadamente 13 mil são mulheres, 11.800 das quais são professoras, e 1.200, diretoras.
Dólares da diáspora
A TCF priorizou a manutenção de uma base de doadores leais, concentrando-se em três comunidades: indivíduos ricos, membros da diáspora paquistanesa e aqueles que acreditam no poder da educação. E, embora a meta inicial fosse a de garantir mil doadores para financiar mil escolas, foi surpreendente saber que precisavam de muito menos indivíduos, graças às doações recorrentes.
“Uma vez que [um doador] vê o impacto, quer ajudar com mais de uma escola”, diz Abbas. “Os fundadores construíram uma comunidade de pessoas à qual se dirigir todos os anos e tratar como se fossem proprietários.”
A diáspora paquistanesa – cerca de 9 milhões de pessoas – é uma fonte significativa de arrecadação de fundos. A TCF tem comitês sem fins lucrativos em cidades ao redor do mundo, incluindo na América do Norte (há 42 comitês só nos Estados Unidos), no Reino Unido e no Oriente Médio. Todos arrecadam fundos regularmente para a organização central, por meio de eventos como festas e torneios.
Shehlah Zaheeruddin, que mora em Karachi, ficou sabendo da TCF por meio de apresentações de teatro locais realizadas para arrecadar fundos há quase duas décadas. Antes de cada apresentação, um investidor da TCF dizia algumas palavras sobre a organização e sua missão. Zaheeruddin logo se tornou doadora regular. Seu investimento na TCF se aprofundou há 15 anos, quando ajudou a TCF a criar um programa de mentoria para alunos do oitavo e nono anos – o programa Rahbar – em 2008. Zaheeruddin diz que ser voluntária e doar para a TCF faz parte de seu dever cívico. “Acho que é a coisa mais importante que nós [paquistaneses] podemos fazer”, explica.
Buscar doadores individuais permitiu à entidade desenvolver ações ágeis e recorrentes para fornecer educação de qualidade, sem ser limitada por condições associadas a doações maiores. Financiamentos por subvenção, diz Abbas, são muito focados e temporais. “A educação é uma jornada de 11 anos para cada aluno, então você tem que manter o financiamento em andamento.”
Uma parte menor do financiamento e do apoio dados à TCF vem de doações e subsídios corporativos. Neste ano, a Fundação Bill e Melinda Gates doou US$ 500 mil à TCF nos Estados Unidos para conduzir um estudo de dois anos sobre o que a exposição sustentada das comunidades à educação de qualidade revela sobre as percepções de gênero.
Outra fonte de receita, sem dúvida surpreendente, tem sido o governo nacional, com o qual a TCF fez uma parceria em 2016 para operar escolas públicas. Hoje são aproximadamente 400 escolas em prédios governamentais de 11 distritos escolares. A TCF recruta e treina o corpo docente com base em seus próprios padrões; o governo subsidia todos os custos.
Embora reconheça que há problemas em o governo se eximir de oferecer ensino público, Bari é pragmático e vê a parceria como uma forma de o Estado honrar sua responsabilidade de entregar educação de qualidade. “Podemos ter dúvidas sobre se a educação deve ser um negócio ou não, mas acho que no Paquistão essa decisão foi tomada há muito tempo”, diz ele.
A organização tem um orçamento anual de US$ 30 milhões. Quase dois terços vão para remuneração e benefícios da equipe. Aproximadamente 5% são destinados ao treinamento de pessoal e transporte de e para a escola. Apenas 12% são gastos em captação de recursos e custos administrativos – um aceno à eficiência operacional da TCF. Os recursos restantes são destinados a manutenção predial, pesquisa e desenvolvimento, supervisão e monitoramento de campo, livros didáticos, uniformes escolares e material didático.
Chhapra diz que a transparência contábil tem sido um dos pilares da TCF desde o início. A TCF é auditada anualmente por uma lista rotativa das maiores empresas de contabilidade do mundo – Deloitte, Ernst Young, KPMG e PwC. “Seguindo as melhores práticas de governança corporativa”, explica Abbas, “mantermos esse rodízio de empresas […] permite ter sempre um novo olhar que verifique as contas e operações e as valide”.
Investimento comunitário
A base de doadores fiéis permitiu que a TCF expandisse sua missão para além das escolas primárias e secundárias, contribuindo com as comunidades onde estas estão sediadas.
“Não é uma organização humanitária. É uma organização de educação”, diz Buluswar. “Mas eu diria que a evolução mais interessante foi descobrir que não é apenas um sistema escolar. Se você quer ser um pilar da comunidade, tem que estar disposto a dar um passo para fora do núcleo do que você faz.”
Em 2005, a TCF lançou seu primeiro programa comunitário. Batizado de Aagahi [conhecimento em urdu], ele visa alfabetizar e dar letramento matemático a mulheres em favelas e áreas rurais, o que lhes traz amplos benefícios, como empoderamento financeiro para fazer compras e a capacidade de ler números de ônibus sozinhas. O curso gratuito, que dura quatro meses, é realizado semestralmente em 4.300 locais – de escolas TCF a centros comunitários e casas de moradores – em todo o país. A cada ano, 20 mil mulheres se inscrevem no programa, e 160 mil já concluíram o programa até o momento. Em 2017, o programa Aagahi ganhou o Prêmio Confúcio de Alfabetização, dado pela Unesco a governos, ONGs e indivíduos que promovam avanços notáveis no tema em áreas rurais. Além de um benefício financeiro, os US$ 30 mil foram um excelente endosso para o programa.
Em 2015, a TCF lançou um programa gratuito de formação profissional de quatro meses para mulheres, com o objetivo de ensinar-lhes habilidades técnicas com fins comerciais. O programa se concentra em design de moda, incluindo alfaiataria, bordado e habilidades de empreendedorismo – áreas em alta e que também se prestam a microempresas e ao trabalho em casa. O programa é oferecido em 15 centros vocacionais localizados em comunidades onde há escolas de TCF e já produziu 3.000 graduados. Esses centros também aceitam encomendas, entre as quais pedidos de uniformes da TCF, pelas quais as mulheres do programa são pagas.
A ajuda humanitária é um aspecto crescente do investimento comunitário da TCF. Após as inundações do ano passado, que devastaram a infraestrutura e a economia do Paquistão e deixaram milhões de desabrigados, a TCF lançou uma campanha de alívio, que forneceu mais de 5 milhões de refeições e ajudou mais de 65 mil famílias a se reconstruírem em 32 distritos. Durante a pandemia de covid, a TCF já havia lançado um apelo que angariou doações em dinheiro para as famílias mais pobres e mais atingidas e forneceu equipamentos de proteção individual para os trabalhadores da linha de frente.
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