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Combatendo a psicologia dos vieses

Como os vieses nos nossos cérebros minam o pensamento de longo prazo e o que organizações de impacto social podem fazer a respeito

Por Conor Seyle

(Foto cortesia da Secure Fisheries)

A crise econômica de 2008 custou à Islândia uma porcentagem maior da sua economia do que a que qualquer país houvesse jamais perdido em um colapso financeiro. Em retrospecto, isso era previsível como  consequência a longo prazo de um sistema financeiro profundamente atrelado a instrumentos financeiros de risco. Então por que a crise não foi prevenida? Uma comissão especial designada para investigar o motivo concluiu que, embora tenha havido negligência por parte dos indivíduos envolvidos, a lição a aprender tinha mais a ver com  “estruturas sociais fracas, cultura política e instituições públicas”. A comissão concluiu não só que a crise era evitável, mas também que um padrão de decisões de curto prazo fez com que o risco fosse ignorado.

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Uma década depois, Ashish Jha, médico e acadêmico que foi coordenador da resposta da Casa Branca à covid, assim se pronunciaria sobre o previsível e evitável número de mortes pela pandemia nos Estados Unidos: “Acertamos na ciência médica. Falhamos nas ciências sociais.” É possível detectar um padrão: quando um desastre evitável se anunciava, os comportamentos não mudavam, e as instituições ou as pessoas deixavam de agir até que a situação já tivesse atingido o ponto de crise. Para Jha, as  raízes desse padrão também estão nas ciências sociais. Embora nossos processos de tomada de decisão sirvam bem a uma série de necessidades evolutivas e sociais de curto prazo, nem sempre são aptos a reduzir riscos a longo prazo.

Sabendo desses vieses, organizações de impacto social podem trabalhar para criar contextos em que os processos que favorecem decisões de curto prazo possam, em vez disso, gerar benefícios a longo prazo. Ao compreender as bases da tomada de decisões e construir intervenções que alinhem o comportamento de longo prazo com as necessidades imediatas das pessoas, organizações de impacto social podem resolver problemas ainda distantes.

Com muitas questões prementes ao mesmo tempo, as pessoas tomam decisões rápidas e, na maioria das vezes, com base em atalhos mentais já trilhados. Além disso, mesmo quando tomadas de forma cuidadosa e ponderada, as decisões respondem a motivações sociais profundamente arraigadas: procuramos nos sentir bem conosco ou em conexão com os outros, ter uma compreensão sólida do mundo e de nós mesmos, queremos sentir que temos o controle sobre como interagimos com os demais e que haverá imparcialidade e justiça nos grupos aos quais pertencemos. Mas, embora estes processos cognitivos (e necessidades) tenham nos ajudado a sobreviver como animais sociais num mundo complexo e perigoso, eles indicam que, de modo geral, as pessoas não são muito boas considerando o longo prazo. Tendemos a demonstrar uma preferência pelo status quo e por decisões que nos mostrem um mundo mais estável e menos ameaçador do que de fato seja.

Diante desse contexto, talvez não seja surpreendente que haja tantos casos de comportamento “irracional” ou de falhas na resposta a questões previsíveis. Os financiadores islandeses foram recompensados tanto econômica como culturalmente – como indivíduos – por decisões que, em última análise, minaram a estabilidade coletiva, opondo esses benefícios concretos e imediatos a riscos vagos e incertos. Nos Estados Unidos, as comunicações pró-vacinação (do Centro de Controle e Prevenção de Doenças e outros) chegaram a pessoas que obtinham informações concorrentes de muitas fontes diferentes e confiáveis. Pessoas confusas e inseguras sobre quem ouvir muitas vezes optaram por mensagens tranquilizadoras sobre como os riscos eram baixos e que reforçavam os vieses otimistas.

Por isso, organizações de impacto social devem aprimorar a criação de ambientes que incentivem comportamentos de redução de riscos, especialmente de modo a realmente atender nossas  necessidades sociais. Por essa razão, em 2022 o relatório anual do Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres (UNDRR) sublinhou a importância de conceber “sistemas que levem em conta a forma como a mente humana toma decisões sobre o risco”, enquanto a Organização Mundial de Saúde lançou a iniciativa “Ciência Comportamental para uma Saúde Melhor” –em 2021, o Secretário-Geral das Nações Unidas destacou a ciência comportamental como uma área-chave a ser desenvolvida para melhorar o impacto coletivo da ONU.

Que cara tem impacto social enviesado?

 

Para organizações de impacto social, a prevenção de problemas de longo prazo significa construir sistemas que tornem o comportamento de redução de riscos a escolha mais fácil e atraente em um leque de opções. Isto tem dois elementos básicos. Em primeiro lugar, existe o design de sistemas enraizado em processos cognitivos, como os modelos de economia comportamental (e a abordagem de estímulos comportamentais), que tentam moldar o ambiente social e informativo em torno das pessoas, de modo que abordagens de curto prazo baseadas em atalhos prévios ajam para encorajar comportamentos positivos e otimistas. Em outras palavras, fazem das abordagens sustentáveis a opção mais fácil, utilizando sistemas de recusa (em vez de aceitação) ou valorizando as escolhas de longo prazo em detrimento das de curto prazo. Em segundo lugar, as pessoas respondem muito mais positivamente às escolhas e aos planos que consideram satisfazer as suas necessidades sociais (as que reforçam valores e crenças importantes para elas e que as ajudam a se sentirem fortalecidas e relativamente positivas em relação a si mesmas). O design centrado no ser humano ou “design comportamental”, portanto, traz elementos de identidade social e motivos para desenvolver sistemas construídos com base nas necessidades individuais das pessoas afetadas. Essa combinação oferece uma abordagem ampla para trabalhar vieses.

O trabalho para promover enterros seguros e dignos durante o surto de ebola na Libéria fornece um bom exemplo de uso de vieses para melhorar sistemas. Dado que os corpos das pessoas infectadas podem espalhar a doença, especialmente com o contato próximo durante a preparação dos corpos, uma parte importante da resolução a longo prazo foi o enterro seguro. Contudo, as intervenções iniciais na Libéria ocorreram numa altura em que as pessoas estavam com medo e inseguras e envolveram recomendações que contradiziam crenças fortemente arraigadas sobre como enterrar respeitosamente os mortos. As comunidades locais resistiram às intervenções, enquanto rumores conspiratórios sobre as intenções maliciosas das equipas funerárias corriam soltos. À medida que os grupos que trabalhavam nos enterros avaliavam o que estava acontecendo, trabalharam com os líderes locais e mapearam as principais preocupações das comunidades na área, de modo a redesenhar sua abordagem. Ao fazê-lo, concentraram-se em práticas funerárias que, embora seguras, estivessem mais alinhadas com as necessidades e valores das comunidades afetadas. Com isso, as decisões de curto prazo que contribuíram para um problema maior foram deslocadas para resolver esse problema maior.

 

Como desenvolver essa abordagem

 

Como mostra o caso da Libéria, uma boa forma de operacionalizar o impacto enviesado é combinar a abordagem de concepção comportamental com uma consideração cuidadosa dos grupos e partes interessadas envolvidos numa questão e das suas necessidades e valores. Para fazer isso, considere as seguintes questões:

  1. Quais são os comportamentos que prejudicam o objetivo de longo prazo? Que mudança comportamental específica é necessária? No caso do ebola, isso ficou claro: havia necessidade de substituir as práticas funerárias por outras mais seguras.

  2. Quais são as principais comunidades envolvidas no impacto em que você está interessado? Essas comunidades podem ser grupos étnicos ou religiosos, ou qualquer outro grupo com uma identidade social específica e definida. Cada comunidade terá os seus próprios valores e contexto social, e poderá ser necessário um envolvimento direcionado com cada uma delas. No caso do ebola, os implementadores do programa conheciam as principais comunidades que precisavam de alcançar com a sua divulgação.

  3. O que se diz, a cada comunidade, a respeito do assunto? Que informações e opiniões as pessoas recebem e compartilham? Entre quais fontes? No caso do ebola (e também no caso da covid), é nesse ponto que podem ter sido cometidos erros iniciais de concepção. É natural que os especialistas técnicos presumam que, ao competir com fontes alternativas, a sua informação vencerá — considerando que, afinal de contas, a sua informação é mais precisa — mas, para a maioria das pessoas, ela é apenas mais uma entrada numa rede em que concorrem outras opiniões e vozes. Os implementadores do programa de enterros seguros e dignos descobriram que o seu trabalho inicial era contrário à informação que os habitantes locais recebiam de pares de confiança e de líderes comunitários. Esse problema foi resolvido, em parte, trabalhando com esses líderes locais de confiança e garantindo que as informações recebidas pelos participantes eram consistentes, provenientes de especialistas e de outras fontes.

  4. Quais são os valores-chave ou questões de identidade social envolvidas? Se você quiser mudar o comportamento dentro das comunidades, quais possíveis conflitos baseados em valores podem surgir? As mudanças solicitadas são contrárias a crenças específicas profundamente arraigadas associadas àquela comunidade ou identidade? Um conflito baseado em valores foi uma das causas profundas da resistência inicial no caso do ebola, e essa resistência foi abordada em parte alinhando o comportamento solicitado com os valores e normas sociais da comunidade.

Realizar esse mapeamento e avaliação nas fases iniciais pode permitir a concepção de intervenções comportamentais que atendam às necessidades locais. A partir dessa preparação, podem ser desenvolvidas soluções sustentáveis e de longo prazo, compreendendo e construindo estratégias de sensibilização e envolvimento direcionadas, baseadas nas preocupações e valores sociais específicos dos indivíduos afetados.

Utilizando princípios da ciência comportamental sobre as motivações das pessoas para agir, pode-se construir uma intervenção sistêmica que se ligue aos motivos e interesses sociais de cada comunidade primária envolvida. Especialistas atuando em desastres desenvolveram excelentes ferramentas para implementar esta abordagem interculturalmente: Paul Bolton e Alice Tang (peritos em saúde mental), por exemplo, desenvolveram um modelo de “etnografia breve” para mapear e avaliar rapidamente os entendimentos e necessidades locais para selecionar as intervenções apropriadas.

Um modelo específico vem, apropriadamente, da Islândia. O modelo de prevenção de consumo de tabaco e álcool pelos jovens adotado no país é construído em torno de uma metodologia informada sobre preconceitos que trabalha com as principais partes interessadas e influenciadores nas comunidades locais. Ele aborda a prevenção identificando bairros e mapeando a dinâmica específica do uso de substâncias em cada um deles. Depois fornece dados e mensagens direcionados em camadas para indivíduos, famílias e escolas, a fim de ajudar a criar, em toda a comunidade, uma compreensão sobre a necessidade de prevenir o uso dessas substâncias. Na prática, é uma forma de identificar as causas arraigadas que impulsionam o abuso de substâncias – geralmente, a falta de formas de passar tempo com alguém, o sentimento de criar vínculos sociais. Através de  leis, financiamento para programas sociais e envolvimento comunitário, o programa dificulta a satisfação de necessidades através do abuso de substâncias e facilita que elas sejam supridas de outras formas. Esse modelo tem sido bastante eficaz na Islândia, com as taxas de consumo de substâncias diminuindo desde o início do programa, enquanto as taxas de comportamentos positivos, como passar tempo com os pais, aumentaram.

Um segundo exemplo vem do trabalho da Secure Fisheries, um programa da One Earth Future, organização da qual faço parte. A gestão dos recursos naturais, incluindo os peixes, pode ser uma fonte de conflitos violentos, por envolver não só benefícios econômicos, mas também questões de orgulho nacional e local e de identidade. Como resultado, os sistemas que tentam gerir a pesca exclusivamente a partir do governo nacional ou regional, desligados das preocupações locais, podem ocasionar confrontos. Nosso trabalho envolve estruturas de cogestão para a pesca com o objetivo de satisfazer também as necessidades das comunidades envolvidas na atividade na região da Somália. Ao trabalhar com os governos e as comunidades locais, tentamos ajudá-los a identificar lacunas e necessidades no sistema de governança como um todo – áreas onde a gestão da pesca não proporciona os benefícios econômicos que pode, ou onde as pessoas se sentem menosprezadas ou excluídas da gestão desses recursos pelo governo local. Apoiamos, então, a criação de sistemas de cogestão que envolvam os cidadãos na administração oficial dos recursos pesqueiros e, por meio da formação de competências ou de educação e investimento de capital por financiadores externos, ajudem a desenvolver capacidade local para a pesca sustentável como motor econômico. O resultado não é apenas um aumento na atividade econômica, mas uma mudança mais sistêmica nas relações entre as comunidades locais e os governos: em sete das dez regiões onde os nossos programas funcionaram, os conflitos relativos à gestão da pesca foram considerados resolvidos pelos envolvidos, e 75% dos participantes da comunidade no programa demonstraram um aumento na sua confiança no governo local após o nosso envolvimento.

Em parte, o século 21 parece se definir pelo risco crescente representado por ameaças potencialmente catastróficas, mas de prazo relativamente longo. Desde pandemias e alterações climáticas até a instabilidade econômica, não estamos conseguindo prevenir, de forma institucional, muitos problemas que são identificáveis no horizonte. A ciência comportamental pode explicar por que isso acontece, e modelos como o da Islândia e outros demonstram que é possível desenvolver boas abordagens baseadas em vieses para problemas complexos e questões de longo prazo. Aqueles que trabalham com impacto social podem se sentir otimistas a partir desses exemplos. Mas os casos aqui expostos também sublinham a necessidade de expandir esse tipo de trabalho enviesado para enfrentar os múltiplos desafios que a humanidade tem pela frente no próximo século.

O AUTOR

Conor Seyle (@Cseyle_OEF) é consultor estratégico sênior da One Earth Future e da PAX Sapiens, organizações cujo trabalho se concentra em soluções sustentáveis para problemas de longo prazo.Doutor em psicologia social pela Universidade do Texas, ele liderou a redação de um dos capítulos do relatório do UNDRR de 2022 e é autor de vários livros e artigos acadêmicos sobre temas relacionados com a construção da paz e a boa governança.



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