Especial Cobertura Vacinal

Vacinação e ética global: os dilemas no século 21

Em um mundo marcado por profundas desigualdades sociais, a vacinação transcende sua eficácia médica e emerge como questão ética fundamental. O tema impõe reflexões cruciais sobre justiça social e equidade em saúde, desde o desenvolvimento dos imunizantes até sua distribuição mundial. Entre avanços científicos e obstáculos socioeconômicos, o desafio atual reside em garantir que essa poderosa ferramenta de saúde pública alcance efetivamente todas as populações, superando barreiras geográficas, econômicas e políticas

Por Ana Elisa Bersani e Marcos Paulo de Lucca-Silveira

 


EM FOCO

Embora seja uma das intervenções mais efetivas da saúde pública, tendo salvado cerca de 154 milhões de vidas no planeta nos últimos 50 anos, a vacinação enfrenta desafios significativos. Para além da eficácia médica, estão em jogo a hesitação vacinal, o conflito entre autonomia individual e bem-estar coletivo, desigualdades no acesso global a vacinas e questões éticas relacionadas ao desenvolvimento de imunizantes para doenças negligenciadas que afetam principalmente países pobres. 


A vacinação é amplamente reconhecida como uma das intervenções mais efetivas e significativas já desenvolvidas para a saúde pública, responsável por salvar cerca de 154 milhões de vidas no planeta ao longo dos últimos 50 anos1. Respaldado por evidências científicas robustas, esse impacto impressionante reafirma o papel das vacinas tanto na promoção da saúde coletiva como na proteção individual2, especialmente quando há ampla adesão populacional às campanhas de imunização.

No entanto, o êxito dos programas vacinais transcende aspectos puramente técnicos, como a eficácia da vacina. Para analisar o sucesso de uma campanha, é preciso levar em conta estratégias que garantam o acesso do maior número possível de pessoas aos imunizantes, por meio de políticas públicas de saúde e outros possíveis incentivos para que a população opte por se vacinar. Além disso, essa análise deve contemplar as profundas desigualdades sociais existentes no interior dos países e também as disparidades entre eles, com particular atenção às regiões do Sul Global marcadas pela pobreza extrema.

A vacinação, portanto, é um tema que suscita debates éticos de grande relevância, envolvendo questões sobre justiça social, equidade na alocação de recursos e desafios da saúde global. Este artigo explora três aspectos centrais dessa discussão: pesquisa e desenvolvimento de vacinas, políticas públicas de imunização e distribuição vacinal.

O ponto de partida

O avanço científico no campo da vacinação depende de uma colaboração complexa entre cientistas, governos, empresas de biotecnologia e grandes farmacêuticas multinacionais. Tradicionalmente, as iniciativas vacinais foram financiadas por uma combinação de investimentos comerciais e subsídios governamentais. Nas últimas décadas, entretanto, grupos filantrópicos e parcerias público-privadas emergiram como atores centrais, como é o caso de imunizantes para doenças negligenciadas ou com mercados limitados.

Para que uma vacina se ache disponível à população, primeiramente é necessário o cumprimento de diversas etapas de pesquisa e desenvolvimento (P&D), processo que envolve altos custos financeiros. Há muitas doenças que, a despeito da existência de pesquisas relacionadas, não apresentam avanços terapêuticos, como vacinas, por exemplo, devido à falta de incentivos econômicos para o seu desenvolvimento. Entre essas enfermidades, destacam-se as doenças tropicais negligenciadas (DTNs), que afetam desproporcionalmente países de média e baixa renda. Apesar de atingirem mais de 1,6 bilhão de pessoas no mundo contemporâneo3, as DTNs recebem um investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) de vacinas significativamente menor em comparação a doenças que atingem países mais ricos. Isso reflete uma disparidade global no que diz respeito ao financiamento e às prioridades da indústria farmacêutica, que tende a focar em mercados mais lucrativos. O desafio ético aqui é como equilibrar os interesses econômicos das empresas com o compromisso de atender às necessidades de saúde das populações mais vulneráveis.

A diversidade de atores e financiadores dos estudos resulta em uma gama ampla de prioridades de pesquisa, objetivos e indicadores de sucesso. Embora todos os atores compartilhem a meta comum de criar imunizantes seguros e eficazes, não são raras as divergências sobre quais estratégias seriam as mais adequadas para alcançar esse propósito e quais seriam as prioridades de P&D. As estratégias de parceria estabelecidas para o desenvolvimento da vacina contra a Covid-19, por exemplo, são um ótimo paradigma de colaboração de sucesso entre atores institucionais e individuais de diferentes setores4

O contexto de pesquisa e desenvolvimento nessa área da saúde apresenta também outro conjunto de desafios éticos extremamente relevante. Entre outras questões presentes no debate contemporâneo sobre ética e vacinas, podemos listar: 

  • Estudos clínicos podem ser conduzidos fora dos países-sede da pesquisa e desenvolvimento das farmacêuticas? 

  • Como garantir que todos os protocolos e padrões éticos para testes de vacinas sejam seguidos, quando as pesquisas são conduzidas em países onde as doenças negligenciadas são endêmicas e as populações mais vulneráveis? 

  • Esses grupos podem ser incluídos em ensaios clínicos sem o acesso adequado às informações, à proteção jurídica ou aos benefícios após o estudo, como o próprio fornecimento das vacinas desenvolvidas através dele?

  • Quais são as obrigações e responsabilidades das instituições e dos pesquisadores em relação à condição de saúde da população que se submete à pesquisa? 

  • As instituições e seus pesquisadores devem ser responsáveis por cuidados de saúde além dos associados diretamente à pesquisa?

Na atualidade, é consenso científico que as vacinas são supervisionadas de forma rigorosa e regulamentadas por diferentes entidades de países desenvolvidos e em desenvolvimento. Cabe a esses órgãos, inicialmente, a responsabilidade de determinar se uma nova vacina deve ser licenciada e, caso aprovada, definir as populações-alvo para as quais sua aplicação será recomendada. No Brasil, essa atribuição cabe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que desempenha um papel crucial na garantia da segurança e eficácia das vacinas.

Após o licenciamento, essas instituições, em colaboração com os fabricantes, continuam monitorando a segurança e a eficácia das vacinas ao longo de sua vida útil. Contudo, esses processos têm gerado debates importantes nos últimos anos, muitas vezes relacionados à transparência das decisões, à comunicação dos riscos e benefícios e, ainda que raros, aos casos de eventos adversos. Esses fatores têm impacto direto na confiança pública, um aspecto essencial para o sucesso dos programas de imunização. Nesse sentido, tais questões éticas são relevantes e permeiam todo o processo de regulamentação.

Uma das principais críticas à formulação de políticas de vacinação em âmbito global reside no potencial conflito de interesses envolvendo agentes governamentais e pesquisadores que mantêm vínculos, sejam financeiros ou de outra natureza, com fabricantes de vacinas. Apesar de a maioria dos órgãos consultivos estabelecer políticas claras para a divulgação de potenciais conflitos, essa preocupação permanece. Mesmo com a convicção de que tais relações financeiras não estejam influenciando diretamente as decisões, é essencial que os responsáveis pela definição das políticas vacinais reconheçam o impacto dessas associações na percepção pública e na credibilidade de suas ações.

 

Em uma sociedade interconectada, as escolhas individuais relacionadas à vacinação têm repercussões diretas na saúde e segurança dos outros. A autonomia, portanto, não pode ser tratada como um direito absoluto

Para mitigar suspeitas de parcialidade e reforçar a confiança pública, torna-se indispensável a adoção de princípios como transparência, minimização de benefícios pessoais, desincentivo a interesses conflitantes e ampla divulgação dos vínculos institucionais. Esses mecanismos não apenas protegem a integridade do processo decisório, mas também asseguram que ele seja pautado por evidências científicas e orientado pelo melhor interesse da saúde coletiva. A atenção rigorosa a essas práticas é essencial para preservar a legitimidade e a eficácia das políticas de vacinação, fortalecendo sua aceitação e impacto na sociedade. 

Além disso, as comunidades de saúde pública e os órgãos reguladores devem responder de maneira assertiva e ágil a relatos de eventos adversos associados a vacinas, mesmo quando, à primeira vista, eles pareçam improváveis. Ainda que as evidências apontem que uma preocupação relatada seja infundada, tais garantias dificilmente eliminam as inquietações da população. Esse cenário foi ilustrado pelas alegações, cientificamente refutadas, que associavam vacinas infantis ao autismo, amplamente discutidas desde a década de 1990, por exemplo. Investigações abertas, rápidas e objetivas sobre as preocupações relacionadas à segurança das vacinas são cruciais para preservar a confiança nos programas de vacinação e no rigor de sua supervisão regulatória. 

Políticas Públicas: combate à hesitação vacinal

O recente crescimento dos movimentos antivacina e da desconfiança em relação às vacinas tem intensificado os debates sobre a obrigatoriedade da vacinação, tornando-os ainda mais relevantes para a formulação de políticas públicas de saúde. No entanto, seria um equívoco supor que as controvérsias e dissensos éticos sobre o tema sejam fenômenos recentes, assim como as resistências à obrigatoriedade vacinal. Eventos históricos, como a Revolta da Vacina de 1904, no Rio de Janeiro, demonstram que programas de imunização e políticas públicas de saúde figuram como elementos centrais das disputas políticas e sociais há mais de um século.

As questões éticas associadas à vacinação obrigatória são numerosas e complexas. Elas envolvem perguntas fundamentais como: 

  • Qual é o limite da autonomia individual diante de decisões coletivas, como políticas públicas de vacinação?

  • Quais riscos podem ser considerados aceitáveis em nome dos benefícios coletivos da imunização em massa? 

  • Até que ponto intervenções governamentais podem ser consideradas legítimas quando violam as preferências individuais? 

  • Os Estados deveriam vacinar crianças contra a vontade de seus pais? Se sim, em todas as situações ou apenas em circunstâncias específicas? 

Uma das questões centrais nesse debate ético é o conflito entre a autonomia individual e a proteção coletiva. Para muitos, a decisão de vacinar-se deveria ser uma escolha pessoal e voluntária, refletindo o direito de cada indivíduo de decidir sobre seu próprio corpo, um princípio fundamental na bioética. Contudo, em uma sociedade interconectada, as escolhas individuais relacionadas à vacinação têm repercussões diretas na saúde e segurança dos outros. Dessa forma, especialistas argumentam que a autonomia individual pode ser legitimamente limitada em situações de risco severo à saúde pública, buscando um equilíbrio entre os direitos individuais e o bem-estar coletivo.

A autonomia, portanto, não pode ser tratada como um direito absoluto, especialmente quando suas implicações impactam negativamente a comunidade. A recusa individual em se vacinar pode contribuir para surtos de doenças evitáveis, ameaçando populações vulneráveis, como crianças, idosos e pessoas imunocomprometidas. Nesse contexto, a responsabilidade coletiva deve ser ponderada em conjunto com a liberdade individual, reconhecendo-se que a proteção da saúde pública depende de decisões que promovam tanto a equidade como a responsabilidade coletiva. 

Para enfrentar essas complexas questões, governos de distintas partes do mundo adotam estratégias para incentivar altas taxas de vacinação entre seus cidadãos. Um exemplo emblemático é a exigência de vacinação como condição para a matrícula de crianças em creches e escolas, o que tem provocado um debate que reflete não apenas a tensão intrínseca nas políticas de saúde pública entre a autonomia individual (ou parental) e o bem-estar coletivo, mas também levanta questões sobre o papel e os limites da intervenção governamental na proteção da saúde infantil. Esses requisitos têm como objetivo promover a imunização individual das crianças, enquanto buscam reduzir a transmissão de doenças nas comunidades, reforçando a proteção coletiva.

 

Países ricos comumente garantem grandes estoques de vacinas, enquanto as nações de baixa renda enfrentam grande dificuldade para adquirir doses suficientes. Esse desequilíbrio suscita questões éticas cruciais

A vinculação da vacinação ao acesso a benefícios sociais e programas governamentais tem sido amplamente reconhecida por autoridades de saúde pública como uma medida eficaz para manter taxas de imunização suficientemente elevadas para garantir a imunidade coletiva. Essa abordagem é particularmente relevante quando iniciativas baseadas exclusivamente em educação e promoção voluntária não alcançam resultados satisfatórios. A imunidade coletiva, proporcionada por altas taxas de vacinação, oferece proteção contra doenças preveníveis a toda a comunidade, incluindo grupos vulneráveis: crianças muito pequenas para serem vacinadas, indivíduos com contraindicações médicas à vacinação e aqueles que, mesmo vacinados, não desenvolveram uma resposta imunológica robusta. Essas medidas, portanto, desempenham um papel crucial na proteção da saúde pública e na prevenção de surtos de doenças evitáveis.

Mesmo filósofos adeptos de abordagens libertarianas – que valorizam muito a liberdade e a autonomia individuais – se posicionam favoráveis a políticas de vacinação mandatórias em casos de surto ou em situações que possam colocar em risco a vida de outras pessoas. Poucos modelos éticos consideram a autonomia individual um princípio absoluto que deva prevalecer sobre todas as outras considerações. Na prática, o respeito à autonomia é geralmente equilibrado com outros fatores, como o bem-estar coletivo, a justiça e a prevenção de danos. No contexto da vacinação, há argumentos éticos sólidos de que as vidas salvas e o sofrimento evitado por meio da imunização superam a possível violação da autonomia individual gerada por requisitos vacinais impostos por governos. Essa justificativa é particularmente relevante na imunização infantil, em que os benefícios diretos e indiretos da vacinação têm implicações profundas na saúde pública.

Uma questão ética intimamente relacionada a essas ponderações diz respeito à maneira como médicos e outros profissionais de saúde devem lidar com pais que optam por seguir abordagens alternativas à vacinação, divergindo das recomendações baseadas em evidências formuladas por autoridades de saúde pública e organizações médicas, como o cumprimento do cronograma vacinal. Essa situação suscita debates sobre a responsabilidade dos médicos para com o bem-estar das crianças e a proteção da saúde coletiva, ao mesmo tempo que levanta preocupações sobre a relação médico-paciente e o respeito às preferências dos pais.

Entre as posições em discussão, alguns defendem que médicos se recusem a atender crianças cujos pais decidam atrasar ou omitir vacinas recomendadas. Esse argumento sustenta que tal recusa enviaria uma mensagem inequívoca sobre a importância da vacinação em tempo oportuno e reduziria o risco, ainda que teórico, que crianças não vacinadas possam representar para outros pacientes em salas de espera. Contudo, críticos dessa abordagem alegam que a exclusão de pacientes deveria ser reservada apenas para circunstâncias excepcionalmente graves, nas quais as divergências entre médicos e pais comprometam profundamente a capacidade de oferecer cuidados adequados às crianças.

Além disso, a vacinação infantil é especialmente sensível do ponto de vista ético, pois envolve decisões tomadas por pais em nome de seus filhos, que ainda não têm capacidade de exercer a própria autonomia. Negar vacinas às crianças, seja por omissão ou atraso, não apenas compromete sua saúde imediata, mas também enfraquece a imunidade coletiva, expondo populações vulneráveis a riscos evitáveis.

Há ainda debates éticos relevantes que surgem quando indivíduos ou grupos reivindicam o direito de recusar a vacinação com base em convicções filosóficas, morais ou religiosas, desafiando as exigências legais ou institucionais para a imunização. O respeito à liberdade religiosa e à liberdade de consciência é amplamente reconhecido como um direito humano fundamental. Em muitos países, essa liberdade inclui a possibilidade de recusar intervenções médicas, como a vacinação, com base em crenças religiosas ou filosóficas. De um ponto de vista ético, permitir tais exceções é um reflexo do compromisso de uma sociedade democrática em proteger a diversidade de crenças e valores individuais.

No entanto, essa liberdade não é absoluta. A recusa à vacinação pode gerar riscos que transcendem o âmbito pessoal, afetando a saúde de terceiros e comprometendo a imunidade coletiva. Essa responsabilidade coletiva justificaria, para muitos, a limitação das exceções, especialmente em situações em que surtos de doenças são iminentes ou quando as taxas de vacinação estão perigosamente abaixo do nível necessário para garantir a imunidade coletiva.

Ademais, exceções religiosas ou filosóficas podem gerar desigualdades, já que os indivíduos que recusam as vacinas se beneficiam indiretamente da imunidade coletiva garantida por aqueles que aceitam a vacinação, sem contribuir com tal esforço coletivo. Essa circunstância levanta questões sobre justiça distributiva e equidade na divisão de riscos e responsabilidades dentro de uma sociedade.

Como superar barreiras

A desigualdade no acesso às vacinas representa um dos desafios éticos mais prementes na saúde pública, especialmente quando os recursos vacinais são limitados e a demanda supera a oferta. A questão central é como alocar esses recursos de forma justa e eficaz. Trata-se de um debate que ocorre tanto no âmbito interno dos países, como também globalmente.

Do ponto de vista bioético, a alocação de vacinas exige um equilíbrio entre atender às necessidades das populações mais vulneráveis, otimizar os resultados da saúde pública e garantir justiça e transparência no processo de distribuição. Nesse contexto, a estratégia de alocação em situações de escassez deve priorizar, simultaneamente, a proteção das populações mais suscetíveis e a eficácia na contenção da propagação de doenças. Além disso, o processo deve ser conduzido de maneira transparente, incluindo a participação de diversos grupos sociais, com o intuito de construir confiança pública e assegurar que as políticas de distribuição sejam amplamente aceitas e compreendidas pela sociedade.

Uma abordagem amplamente adotada para a alocação de vacinas em cenários de escassez é a priorização dos grupos mais vulneráveis ou daqueles com maior risco de complicações graves. Isso inclui, por exemplo, idosos, pessoas com comorbidades e profissionais de saúde da linha de frente, que estão mais expostos ao risco de infecção. Ainda, a vacinação de profissionais essenciais, como trabalhadores da saúde, professores e outros agentes que desempenham um papel crucial na continuidade das funções sociais e econômicas, também é frequentemente priorizada. Essa estratégia visa não apenas proteger os indivíduos mais vulneráveis, mas também reduzir a transmissão comunitária, maximizando os benefícios para a sociedade como um todo e buscando minimizar os impactos da doença no coletivo.

Por outro lado, de uma perspectiva global temos um problema ético gigantesco relacionado às vacinas. Países ricos comumente garantem grandes estoques de vacinas, enquanto as nações de baixa renda enfrentam grande dificuldade para adquirir doses suficientes. Esse desequilíbrio suscita questões éticas cruciais sobre justiça e prioridades na alocação de recursos, exigindo esforços coordenados para mitigar tais disparidades. Isso implica a necessidade de acordos e iniciativas globais que priorizem o envio de vacinas para áreas menos favorecidas, além de uma colaboração internacional mais eficaz a fim de garantir que os países mais pobres não fiquem à margem da distribuição e do acesso. Assim, a responsabilidade ética de promover a alocação global de vacinas se torna ainda mais evidente durante pandemias, com ênfase na cooperação entre países, especialmente para permitir que regiões com menos recursos financeiros e menor capacidade de produção possam ter acesso a vacinas essenciais.

Além das questões éticas relacionadas à pesquisa e ao desenvolvimento de vacinas, apresentadas anteriormente, outro desafio importante é assegurar que as vacinas atendam às necessidades de saúde pública específicas de países com alta carga de doenças prevalentes, mas que são menos comuns ou menos severas em países ricos. Devido à limitada lucratividade das vacinas contra essas doenças, os fabricantes frequentemente hesitam em investir nesses esforços. Por consequência, uma grande parte do financiamento para o desenvolvimento dessas vacinas provém de iniciativas filantrópicas, organizações sem fins lucrativos e parcerias público-privadas.

Nesse sentido, esforços estão sendo feitos para aproveitar as vacinas existentes na redução ou até mesmo na eliminação de outras doenças. A erradicação bem-sucedida da varíola na década de 1970 gerou um entusiasmo renovado por campanhas de erradicação de doenças evitáveis por vacinas, entusiasmo que, apesar dos muitos desafios ainda intransponíveis, persiste no sentido de adicionar novas doenças à lista das erradicadas.

Nos últimos anos, a erradicação da poliomielite tem recebido grande atenção. Por muito tempo vista como alcançável, essa meta, no entanto, tem enfrentado retrocessos consideráveis e desafios significativos. O debate sobre a viabilidade de continuar com os esforços de erradicação da poliomielite tornou-se um tema central entre cientistas e especialistas em saúde global. Críticos sugerem que o simbolismo associado à erradicação de doenças pode, em algumas circunstâncias, sobrepor-se a abordagens baseadas em evidências para as políticas de saúde global.

Dado que os recursos destinados à saúde global são limitados, argumenta-se que formuladores de políticas e fontes de financiamento devem garantir que a atenção seja direcionada para estratégias de prevenção e tratamento que minimizem o sofrimento humano e gerem o maior benefício possível. Esse foco deve equilibrar os esforços de erradicação com outras prioridades de saúde pública, a fim de alcançar um impacto mais significativo e duradouro para as populações mais necessitadas.

O papel da confiança

Ao longo de sua trajetória, marcada por notáveis avanços, a vacinação tem sido impulsionada por ganhos no conhecimento científico e pela criação de políticas públicas de saúde eficazes. No entanto, o sucesso contínuo das campanhas de vacinação depende, fundamentalmente, da manutenção de uma ampla confiança pública na segurança, eficácia e importância das vacinas, assim como da credibilidade nas autoridades de saúde, nos formuladores de políticas e profissionais responsáveis por sua recomendação e supervisão. Sem essa confiança, mesmo as mais bem elaboradas estratégias vacinais não poderão atingir seus objetivos.

Manter essa confiança requer a adoção de uma abordagem ética, sensível e responsável na formulação de políticas vacinais, bem como no desenho e implementação dos programas de imunização, ampliando seu impacto positivo em nível global.

 

NOTAS

1 Shattock AJ, Johnson HC, Sim SY et al. Contribution of vaccination to improved survival and health: modelling 50 years of the Expanded Programme on Immunization. Lancet 2024; 403:2307-16.

2 Jane M Knisely, Emily Erbelding. Vaccines for global health: progress and challenges. The Journal of Infectious Diseases, 2024; jiae511. 

3 Sobre a temática, ver link.

4 Louise C. Druedahl, Timo Minssen, W. Nicholson Price. Collaboration in times of crisis: a study on Covid-19 vaccine R&D partnerships. Vaccine, Volume 39, Issue 42,2021, Pages 6291-6295. ISSN 0264-410X. 

 

OS AUTORES

ANA ELISA BERSANI é doutora em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisadora do Centro de Estudos de Migrações Internacionais (CEMI) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e do Departamento de Pesquisa da Fundação José Luiz Setúbal (FJLS). É membro do Observatório Saúde e Migração da FENAMI. Desenvolve pesquisa com especial interesse nas áreas de Saúde e Ajuda Humanitária, com ênfase em contextos de migração, crise e pós-desastre. Atua junto à organização internacional Médicos Sem Fronteiras desde 2016 como coordenadora de Promoção de Saúde.

MARCOS PAULO de LUCCA-SILVEIRA é pesquisador-chefe do Departamento de Pesquisa da Fundação José Luiz Setúbal, professor da Escola de Economia de São Paulo, Fundação Getulio Vargas (EESP-FGV). Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, é também Coordenador do LEAP-FGV (Lab for Economics and Applied Philosophy), pesquisador associado ao CEM (Centro de Estudos da Metrópole) e ao Núcleo de Saúde do Insper.

*Artigo publicado originalmente na edição especial Cobertura Vacinal; leia aqui a edição completa

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