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Moradia (para todos) primeiro

A Built for Zero Canada está fazendo avanços significativos para resolver a questão da moradia no país

Por Leif Gregersen

Trabalhadores imobiliários de diferentes comunidades participam da sessão de aprendizagem Built for Zero Canada de março de 2023, em Toronto. (Foto de Built for Zero Canada)

Em julho de 2023, Vanessa completou cinco anos sóbria, após um longo período vivendo em uma névoa de trauma e uso de drogas. Ela atribui sua persistência, em grande parte, ao fato de ter obtido uma moradia estável – de 2019 a 2022, Vanessa viveu nas ruas em Edmonton, capital da província canadense de Alberta.

Vanessa é uma das 2.700 pessoas que, a cada ano, entram na conta dos que vivem, em Edmonton, o problema da falta de moradia crônica – que significa não ter casa por pelo menos um ano e/ou repetidamente. Ainda, outras 8.600 pessoas experimentam, ao ano, a falta de moradia transitória, que é a que decorre de uma mudança de vida importante ou de um evento catastrófico. No Canadá, estima-se que de 25 mil a 35 mil pessoas se vejam sem moradia em algum momento. Pessoas que enfrentam a pobreza, o vício, questões legais e problemas de saúde mental ou física têm mais probabilidade de entrar para essa estatística. Os efeitos cumulativos e intergeracionais do colonialismo também resultaram em taxas desproporcionalmente altas de falta de moradia para os povos indígenas: embora representem apenas 8% da população de Edmonton, eles são 58% dos sem-teto da cidade.

Em 2022, uma assistente social conectou Vanessa, que havia engravidado, à Edmonton City Centre Church Corporation (E4C). Voltada para serviços sociais e moradia, a E4C havia se associado em 2019 à Built for Zero Canada (BFZC) para ajudar pessoas, como Vanessa, que precisam de uma habitação imediata. Em duas semanas, Vanessa obteve um local para morar por meio da Civida, uma organização de moradia subsidiada que trabalha com a BFZC e a E4C.

A BFZC foi fundada em março de 2019 pela Canadian Alliance to End Homelessness (Caeh), como iniciativa de liderança para educar e treinar líderes e organizações comunitárias sobre meios de garantir habitação para populações sem moradia, especialmente as vulneráveis como jovens, mulheres, veteranos de guerra e indígenas. A BFZC defende o princípio de housing first, ou seja, garantir habitação para as pessoas antes de tratar de qualquer outra questão, como vício ou desemprego. Baseando-se em dados, identifica e documenta pessoas sem-teto com dificuldade para encontrar moradia permanente. Seu objetivo é zerar funcionalmente a falta de moradia crônica – o que significa que, em uma comunidade, haja menos de três pessoas em falta de moradia crônica por um período de três meses ou mais.

A BFZC atualmente trabalha com 58 comunidades em todo o Canadá e alcançou sua meta entre veteranos de 3 delas. A entidade também reduziu drasticamente o índice em 11 comunidades e, em 1 delas, zerou o indicador. Em Edmonton, com financiamento governamental e de filantropia, a BFZC capacitou e acompanhou funcionários e agências que atuam nesse campo, ajudando mais de 8.500 pessoas cronicamente sem moradia, entre as quais Vanessa. “É ótimo ter um lugar para morar”, diz ela, olhando com olhos brilhantes para seu bebê. “Isso me dá esperança.”

 

Dados em tempo real em ação

 

A inspiração para a BFZC veio do outro lado da fronteira. Em 2011, a Community Solutions, uma organização sem fins lucrativos sediada nos Estados Unidos, lançou a campanha 100 Mil Lares, com o objetivo de abrigar 100 mil pessoas e criar consciência sobre a falta de moradia. Em 2014, a Community Solutions havia superado os 100 mil. Inspirada por esse sucesso, a Caeh criou, em 2015, a campanha 20 Mil Lares, com meta de três anos e ajuda do governo federal do Canadá.

“No final da nossa campanha, em março de 2019, tínhamos abrigado 21.254 pessoas”, diz Tim Richter, CEO da Caeh. “Os números de falta de moradia, porém, não estavam diminuindo.” A Caeh abrigou pessoas com base em contagens pontuais. Nesse método, as pessoas sem moradia são contadas em uma única rodada, em um só momento. A contagem não inclui nenhuma informação pessoal, nem mesmo nome. As pessoas são meros números.

Com a campanha, a Caeh notou que as contagens pontuais não permitiam registrar novos casos, acompanhá-los e rastrear as pessoas sistematicamente negligenciadas pelos serviços de moradia. Também ficou claro que pessoas sem-teto preferiam viver em áreas onde pudessem acessar facilmente serviços sociais e de saúde. Foi com isso em mente que a BFZC foi criada. A iniciativa usa dados em tempo real e uma lista por nomes, em que as informações sobre as pessoas sem moradia são atualizadas com base em diferentes fontes – como agências, abrigos e cozinhas populares – de forma contínua. A diretora da BFZC, Marie Morrison, diz que essa combinação de informações ajudará a levar a “um fim mensurável e equitativo da falta de moradia”.
A BFZC tem 11 funcionários em tempo integral. Além de Morrison, são sete mentores e três consultores de dados. Cada mentor responde por sete ou oito comunidades. Eles realizam reuniões mensais e duas conferências por ano (uma virtual, outra em Ontário), nas quais treinam os membros de suas comunidades segundo novos insights vindos da prática e sobre como criar planos de ação com base nos últimos esforços de coleta de dados.

A BFZC também criou um kit de ferramentas online para comunidades que queiram se associar a ela. Trata-se de uma coleção de recursos e diretrizes adaptáveis, incluindo informações sobre formação de equipes (“Como recrutar voluntários”) e coleta de dados (“Mapeando locais de pesquisa”).

As comunidades que se associam assinam um acordo de dois anos. Para cidades pequenas e médias, a parceria é gratuita; as maiores, como Edmonton e Calgary, pagam uma taxa. Cada comunidade tem um mentor e um consultor de dados. As decisões sobre quais planos implementar, quais estratégias adotar e quais deixar de usar são tomadas com base nas análises dos consultores sobre as tendências dos dados.

A BFZC é financiada pela Veterans Affairs Canada, pelo governo de Ontário e por organizações filantrópicas como a Ottawa Community Foundation e a Porticus. Esta última investiu na BFZC especificamente por causa de sua abordagem centrada na comunidade e baseada em dados.

“A Porticus acredita em fortalecer a resiliência das comunidades, e a BFZC é um programa que proporciona às organizações comunitárias a agência e os recursos para colaborar na resposta aos problemas de falta de moradia em sua comunidade”, diz Daisy Vazquez, gerente de concessão da Porticus. “Antes da BFZC, não havia nenhum sistema coordenado e baseado em evidências em funcionamento.”

 

Esperança em Medicine Hat

 

Em junho de 2021, a cidade de Medicine Hat, em Alberta, tornou-se a primeira do Canadá a conseguir zerar funcionalmente a falta de moradia crônica. A Medicine Hat Community Housing Society (MHCHS) tinha participado de reuniões de estratégia para a campanha 20 Mil Lares em junho de 2015. Em dezembro de 2017, a associação se uniu à Caeh para trabalhar pela eliminação funcional da falta de moradia crônica em Medicine Hat. Após o lançamento da BFZC, as entidades se associaram à nova iniciativa e, juntas, desenvolveram um plano de cinco anos pensado para usar dados em tempo real e a lista de nomes no combate ao problema.

Para Jaime Rogers, gerente de desenvolvimento de moradia e sem-teto da MHCHS, o que o atraiu para se associar à BFZC foi a valorização da colaboração entre setores. No caso de Medicine Hat, isso significou que as partes interessadas locais – representantes do governo, especialistas em saúde, policiais, trabalhadores de abrigos, líderes comunitários indígenas e pessoas sem moradia – tiveram poder de decisão na hora de estabelecer metas e no plano de ação. Eles priorizaram a necessidade com base na lista de nomes, com moradia fornecida pelo governo, instituições de caridade, organizações sem fins lucrativos e fontes privadas.

“A BFZC tem uma forma estruturada de determinar como fazer coletivamente as comunidades e a BFZC melhores”, explica Rogers. “Com a ajuda da BFZC, conseguimos construir um sistema realmente robusto e expansivo que não só foi capaz de enfrentar a pandemia de covid-19, mas também de zerar funcionalmente a falta de moradia crônica durante a pandemia, em julho de 2021.”
De fato, a cidade de Medicine Hat foi capaz de alcançar a meta nesse período porque permaneceu comprometida com o plano quinquenal de housing first desenvolvido com a BFZC. Há que considerar que, com 63 mil habitantes, a cidade é menor que muitas outras associadas e ter alcançado o zero funcional não significa que todas as pessoas sem-teto conseguiram um lar permanente. “Ainda temos algumas pessoas dormindo ao relento”, observa Rogers. Parte dessas pessoas vive sem nenhuma proteção além de uma barraca ou um abrigo improvisado; “algumas lidam com seu vício em opioides, enquanto outras enfrentam problemas de saúde mental não tratados”, diz ele.

Ainda assim, Medicine Hat foi uma exceção no período. Durante a pandemia, o movimento da BFZC perdeu terreno significativo porque as comunidades associadas tiveram de mudar seu foco para responder à crise sanitária. Recursos previstos para abrigar pessoas sem moradia foram destinados a cuidar de sua saúde. Da mesma forma, as agências que atendem aos sem-teto foram de súbito adaptadas para agências sanitárias, assumindo responsabilidades que o sistema público canadense não foi capaz de fornecer. A consequência foi palpável: em uma amostra de 13 comunidades da BFZC, a falta de moradia crônica aumentou 50% de fevereiro de 2020 a fevereiro de 2023.

O sucesso da BFZC em Medicine Hat atraiu a atenção da mídia, impulsionando seus esforços de recrutamento em todo o país, o que, por sua vez, aumentou as apostas do movimento. “Nosso objetivo é ter, em três anos, 80 cidades na BFZC e zerar funcionalmente a falta de moradia crônica em 15”, diz Richter.

Para isso, a BFZC aposta em conscientização e, mais criticamente, em convencer a opinião pública e líderes comunitários de que a falta de moradia é uma emergência nacional e que combatê-la é possível. Embora Richter reconheça que a falta de moradia é um problema dinâmico, a BFZC permanece comprometida em tornar a falta de moradia rara, breve e não recorrente.

O AUTOR

Leif Gregersen é escritor, professor e palestrante que trabalha principalmente na área da saúde mental.



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