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A ferramenta ausente na luta contra a mudança climática

As intervenções na saúde global que moldam o mercado fornecem um modelo poderoso para a luta pela descarbonização da economia e contra a mudança climática.

Por Dai Ellis e Oliver Sabot

(Foto por iStock/hrui)

Arrancada das garras da derrota, a Lei de Redução da Inflação (IRA, na sigla em inglês)  deve acelerar a transição dos principais mercados – de energia, veículos, cimento e muito mais – em direção a tecnologias “mais verdes”. No entanto, a IRA é apenas uma pequena parte inicial de um esforço de décadas necessário para direcionar os mercados para tecnologias de baixo ou zero carbono. Embora uma primeira onda de intervenções pontuais tenha deflagrado transições no âmbito de governos e organizações privadas, essas mudanças de mercado estão acontecendo muito lentamente para reduzir as emissões a um ritmo que limitaria o aquecimento a 1,5 º C.

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Com o relógio climático correndo, é urgente lançar uma segunda onda, mais expansiva, de modelagem do mercado verde. O campo da saúde global nos aponta possibilidades. Desde 2000, as organizações globais de saúde foram pioneiras na adoção de um conjunto diversificado de intervenções de modelagem de mercado encabeçadas pela iniciativa privada – a fim de organizar e reduzir o risco da demanda enquanto orquestram o progresso em todos os pontos do mercado -, acelerando drasticamente o acesso a produtos de saúde de ponta em todo o mundo em desenvolvimento.

Embora os riscos da “transição verde” sejam extremamente altos, o arsenal de táticas de modelagem de mercado até agora implantadas é muito escasso. Temos confiado muito estreitamente nas principais políticas governamentais e em “push” funding – financiamento por doações, empréstimos e investimentos de capital; ao mesmo tempo, subexploramos intervenções financeiras criativas e o apoio agressivo que impulsionou os esforços de modelagem do mercado na saúde global. Essa enorme oportunidade inexplorada deveria ser a peça-chave de uma ambiciosa segunda onda de modelagem de mercado.

 

Lições da saúde global

 

Há 20 anos, fornecer tratamento antirretroviral (ARV) a dezenas de milhões de pessoas HIV-positivas parecia um sonho. Os preços dos medicamentos ARV – US$ 1.000 por paciente/ano na época – eram uma barreira assustadora. Hoje, quase 30 milhões de pessoas estão em tratamento, e os preços dos medicamentos caíram para menos de US$ 75 anuais por paciente, enquanto inúmeros outros obstáculos foram removidos. Como isso aconteceu?

O mercado de drogas ARV estava preso em uma dinâmica de ovo e galinha. A demanda era baixa porque os preços eram altos e vice-versa:  se a demanda dos países em desenvolvimento permanecia baixa, os fornecedores de genéricos não podiam fabricar os medicamentos em grandes volumes – o que ampliaria a curva de aprendizado e geraria economias de escala para reduzir os custos. A Clinton Health Access Initiative (Chai) ajudou a eliminar o impasse, ao reunir 13 governos em um clube de compradores e prever o volume de medicamentos que esse grupo poderia comprar quando os preços caíssem. Com base nessa projeção de procura potencial, a Chai trabalhou com os fabricantes de genéricos para prever os níveis de custo para os volumes de produção implícitos do ano seguinte e oferecer os preços correspondentes no corrente. Disso resultou um acordo histórico que desencadeou um ciclo virtuoso de demanda crescente, aumento da produção e queda de custos e preços.

Esse foi apenas o começo dos esforços de modelagem de mercado liderados pela Chai e outras organizações. Juntos, esses administradores conduziram o mercado implementando mudanças tecnológicas, ao mesmo tempo que removiam as barreiras a um acesso mais amplo conforme iam surgindo. Em vários momentos, impedimentos particularmente espinhosos exigiram intervenções financeiras grandes e inovadoras, como uma iniciativa de financiamento da Unitaid que catalisou formulações pediátricas de ARVs, organizando e garantindo a demanda inicial para essa categoria de produtos emergentes de menor volume. Mesmo quando havia outros parceiros envolvidos, a Chai ainda desempenhava um papel crítico de “zagueiro”, encarregando-se dos aspectos diplomáticos do transporte e coordenando atividades. Essa atividade de informar, influenciar e ligar pontos de forma insistente acelerou as mudanças, por meio do processamento paralelo de etapas-chave que, de outra forma, teriam acontecido de forma lenta e fragmentada.

Com o tempo, a modelagem de mercado tornou-se uma disciplina distinta. Esforços catalisados ​​pela iniciativa privada em prol de construir um futuro ideal para um determinado  mercado ganham forma de esforço coordenado para conduzir, com soft power  e peso financeiro, o mercado em direção a essa meta. A comunidade global de saúde viu o quão poderoso o “zagueiro” pode ser e como muitos pequenos passos orquestrados resultam em um grande progresso. Nos anos subsequentes, as abordagens de modelagem do mercado se aplicaram a tudo, de mosquiteiros antimalária a contraceptivos de ação prolongada. As organizações de saúde aprenderam como adaptar, para produtos-alvo e situações específicas, o projeto de mecanismos inovadores de financiamento que inclui garantias de volume ea iniciativas de aquisição conjunta para promover compromissos de mercado (AMCs).

É claro que nem todas as iniciativas de formação de mercado na saúde global foram bem-sucedidas. Em alguns casos, intervenções financeiras inovadoras ajudaram a diminuir o risco da demanda inicial por uma tecnologia emergente, mas falharam em produzir um ciclo sustentado de crescimento do mercado. Geralmente isso ocorreu porque a Chai e seus parceiros se concentraram demais na intervenção financeira em si, e não o suficiente no trabalho meticuloso de “zagueiro” e colaboração entre os principais atores para construir o alinhamento e se preparar para passar do programa catalisador para um programa maduro, autônomo e que fosse sustentável para o mercado. Constatamos, repetidas vezes, que, na ausência de uma administração prática, os mercados ficam paralisados ​​ou desenvolvem dinâmicas profundamente prejudiciais.

De fato, a lição mais importante da formação do mercado global de saúde foi o poder de transformar ciclos de mercado viciosos em ciclos virtuosos. Com tecnologias climáticas, como baterias solares e de íon de lítio, vemos um progresso crescente quando o aprendizado orientado à implantação alimenta um ciclo recursivo de reduções de custos, crescimento da demanda e maior escala de produção – o que foi chamado de “vórtice verde”. Para estender esses ciclos virtuosos a todas as soluções climáticas, podemos aprender com a maneira como a comunidade global de saúde institucionalizou a modelagem de mercado como uma estratégia central, codificando kits de ferramentas e estruturas e tornando uma expectativa que grandes organizações tenham estratégias de modelagem de mercado personalizadas. Os doadores até criaram plataformas dedicadas a intervenções de grande valor para moldar o mercado, como Unitaid e MedAccess.

Desbloqueando o poder da modelagem de mercado para a descarbonização

 

Ganhamos impulso na descarbonização global. Mas ainda há um longo caminho a percorrer, e nossos esforços de moldar o mercado verde tendem a se voltar muito rapidamente (ou muito estreitamente) para grandes intervenções políticas como a IRA ou as tarifas “feed-in” alemãs, que transformaram a economia da energia solar. Os poderes reguladores, financeiros e de definição de políticas dos governos serão absolutamente críticos. Mas, dada a magnitude do desafio climático, não podemos depositar nossas esperanças em uma onda contínua de legislação nacional ousada como a IRA. A experiência global de saúde mostra como a atividade privada de moldar o mercado pode multiplicar o financiamento ou os incentivos do governo.

Além disso, a modelagem do mercado verde de hoje depende de um conjunto limitado e tradicional de abordagens de financiamento: embora haja uma ampla gama de “financiamento “empurrado” – investimento de capital, empréstimos governamentais, doações – para investir em pesquisa e produção, tem havido relativamente pouca inovação  na forma de financiamento “puxado”, que cria ou diminui os riscos da demanda. Os fornecedores e seus investidores respondem de forma mais poderosa aos sinais de demanda, e o financiamento “puxado” com design inteligente pode dar início a ciclos de “vórtice verde”, tornando o mercado atraente o suficiente para que as empresas invistam seus próprios recursos agressivamente. Mas, deixando de lado os prêmios de pesquisa e desenvolvimento, exemplos de mecanismos puxados por financiamento privado são escassos.

O Frontier, um compromisso de mercado avançado da ordem de bilhões de dólares para a remoção durável de carbono anunciado no ano passado, é a rara exceção que comprova a regra. É o primeiro exemplo de modelagem de mercado verde a seguir explicitamente um padrão de saúde global. Em vez de financiar ou subsidiar diretamente o desenvolvimento de novos produtos, o Frontier atua como um “comprador garantido”, criando uma grande fonte de demanda previsível que atrai investimentos privados e empreendedores que agora têm clareza sobre como obter uma posição no mercado.

Recentemente, algumas outras novas iniciativas começaram a sugerir que feição poderia ter uma segunda onda de modelagem de mercado verde. Novos players – como Breakthrough Catalyst, Rewiring America e First Movers Coalition, além do Frontier – estão tentando emplacar manuais para catalisar mudanças de mercado ambiciosas em vários setores. O Departamento de Energia dos Estados Unidos também começou recentemente uma pesquisa para obter informação sobre oportunidades de redução de riscos para tecnologia de energia limpa e expressando abertura à colaboração público-privada. Mas esses “pontos brilhantes dispersos” apenas destacam o que ainda não temos. A modelagem de mercado para a descarbonização ainda é muito mais ampla (em termos de setores, tecnologias e geografia) e maior (em termos de tamanho do mercado) do que a da saúde global, mas seu atual kit de ferramentas e ecossistema de modelagem de mercado é muito mais restrito. Duas lacunas se mostram particularmente grandes à medida que construímos uma segunda onda ambiciosa: a escassez de “zagueiros” que moldam o mercado no estilo Chai e nosso fracasso em empregar toda a gama de ferramentas financeiras inovadoras que temos à nossa disposição.

Vejamos o exemplo  da tecnologia limpa de resfriamento. Uma das maiores ameaças para atingir as metas climáticas globais será a crescente demanda por resfriamento, à medida que as pessoas buscam alívio para os efeitos de um mundo em aquecimento. A Índia e a China sozinhas, com classes médias em rápido crescimento e sob calor intenso, chegarão a 2 bilhões de aparelhos de ar-condicionado até 2050. Graças a um recente impulso visionário da Clean Cooling Collaborative (CCC) e do Rocky Mountain Institute, aparelhos mais ecológicos de ar-condicionado, que geram cinco vezes menos gases de efeito estufa, já foram desenvolvidos. Mas eles estão presos na mesma armadilha de preço mais alto e baixa demanda que vimos nos primeiros dias do mercado de ARV.

Uma segunda onda de modelagem de mercado pode quebrar essa armadilha e turbinar a mudança em direção a modelos de próxima geração mais eficientes. Uma estratégia ambiciosa para esta onda fortaleceria os padrões de eficiência para elevar o “piso” do mercado, reunindo a demanda de compradores-âncora e implantando garantias de volume ou um AMC direcionado para diminuir ainda mais a demanda por fornecedores pioneiros. Em troca, a organização ou organizações da mudança de mercado exigiriam que esses fornecedores se comprometessem com lançamentos de produtos avançados e preços iniciais mais baixos. À medida que o ciclo virtuoso se enraíza, inovações financeiras e políticas adicionais – como financiamento na fatura – podem fazer com que os produtos da próxima geração tenham melhores custos de vida útil, o que se traduziria em  em custos iniciais reduzidos para os consumidores, na comparação com modelos mais poluentes. Se for bem-sucedida, essa transição acelerada para um resfriamento mais limpo pode evitar até 100 gigatoneladas de emissões de CO2 nas próximas décadas, ou quase três anos inteiros de emissões globais nos níveis atuais. Existem poucas oportunidades maiores que essa.

A transição verde equivale a um conjunto de mudanças datadas de mercado em praticamente todos os setores da economia global. Isso significa inúmeras oportunidades para buscar a formação do mercado verde de forma mais abrangente, desde o dimensionamento de mercados menores ou regionais (por exemplo, sementes para reflorestamento ou produção de algas no Alasca) até mudanças aceleradas em grandes mercados globais (por exemplo, aço verde ou combustíveis de aviação sustentáveis). Como um desafio – e ensejo – de moldar o mercado, a descarbonização é o maior que a humanidade já teve diante de si.

Embora continuasse a utilizar as alavancas políticas e de financiamento típicas da primeira onda, uma segunda onda de modelagem de mercado verde aplicaria de forma mais sistemática toda a aprendizagem acumulada no mundo e resolveria urgentemente as lacunas no nosso atual ecossistema de modelagem de mercados.. Seria necessário financiar uma análise cuidadosa para identificar correspondências personalizadas entre o cenário das atuais armadilhas do mercado e o conjunto completo de possíveis intervenções, permitindo-nos priorizar entre as muitas oportunidades. Financiadores privados e parcerias público-privadas implantariam seletivamente uma ampla gama de mecanismos inovadores de financiamento existentes e experimentariam novos. E para garantir que essas intervenções financeiras produzissem todo o seu potencial, uma legião de novos “zagueiros” enfrentaria a complexa coordenação e a implacável eliminação de obstáculos que precisam acontecer em todos os lados do mercado. Organizações como MedAccess, Chai e Unitaid não seriam peculiares à saúde global; perto de seus irmãos climáticos, elas pareceriam pequenas.

Para catalisar essa segunda onda, não há ninguém mais bem posicionado do que fundações privadas com visão de futuro. A Fundação Gates mudou notoriamente o jogo na saúde global ao financiar e ajudar a estabelecer algumas das organizações mais importantes no cenário de formação do mercado de produtos de saúde. Mas, embora nenhuma fundação tenha assumido um papel igualmente central na formação do mercado verde, o roteiro é claro. Qualquer financiador com essa inclinação construiria uma base intelectual mais sólida para a segunda onda, desenvolveria critérios para priorizar e escolher entre as intervenções e identificaria os pontos de prova em potencial mais atraentes – nos moldes da oportunidade de resfriamento limpo descrita acima – para uma abordagem reimaginada. Eles então cultivariam e reuniriam um financiador colaborativo mais amplo para buscar esses pontos de prova, defendendo e financiando tanto intervenções financeiras inovadoras quanto atividades complementares de “zagueiro”.

Indo atrás de todas essas tarefas ao mesmo tempo que reportassem publicamente seus objetivos e progressos, os primeiros financiadores a semearem essa segunda onda podem desencadear um novo diálogo crítico em toda a comunidade climática. Há oportunidades infinitas, mas não há um segundo a perder.

 

OS AUTORES

Dai Ellis é coach executivo de fundadores de startups de tecnologia climática e consultor estratégico de organizações climáticas em iniciativas de modelagem de mercado. No início de sua carreira, Dai liderou o trabalho da Chai (Clinton Health Access Initiative) na formação de mercado para medicamentos, diagnósticos e outros produtos de saúde.

Oliver Sabot é um empreendedor social em série, consultor de filantropias e investidores com foco no clima e coach executivo de startups de tecnologia climática. Ele atuou como executivo na Chai e presidiu o comitê de dinâmica de mercado do Fundo Global.



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