Como investir através da “lente de gênero”
Avalie sua operação em quatro níveis e reconheça onde é mais importante mudar para implementar essa perspectiva em um fundo de investimento
Por Shannon Dwyer e Tahira Dosani
Cada vez mais, empresas estão considerando como suas decisões podem melhor apoiar o bem-estar econômico e social por meio dos investimentos com perspectiva de gênero (GLI, na sigla em inglês). Companhias que usam essa metodologia levantaram US$ 4,8 bilhões em capital em 2019, de acordo com o Project Sage 3.0 da Wharton Social Impact Initiative, mais do que o dobro do valor de 2018. Esse crescimento do GLI é acompanhado de inúmeros estudos que mostram seus benefícios, desde maiores lucros e melhores retornos sobre o patrimônio até mais inovação. Mas esse crescimento não se limita ao investimento de impacto. O mercado de capital de risco (venture capital, VC) convencional aderiu ao movimento, com iniciativas como a comunidade global Women in VC e a 500 Startups lançando o 500 Female Forces, que busca aumentar o alcance, os recursos e a representação de mulheres fundadoras. Esse aumento é uma grande oportunidade para que empresas considerem como podem incorporar essa abordagem em seus processos de investimento.
Quando começamos a explorar como aliar perspectiva de gênero à estratégia de investimento de impacto do Accion Venture Lab, em 2019, logo percebemos que há muitas maneiras de fazer isso. Isso inclui desde mudanças no nível mais alto a táticas de incorporar a GLI. Mas, se você for como nós, pesquisou tudo isso e ainda teve dificuldades para saber por onde começar.
Para chegar a uma estratégia eficaz e voltada para o futuro do GLI, tínhamos que levar em conta o que aprendemos de mais importante nos oito anos em que analisamos milhares de companhias, formando uma equipe global e gerenciando um portfólio de 50 empresas em todo o mundo. No que havíamos nos destacado e falhado? O que funcionava e o que não? Não era possível definir uma solução sem entender completamente o problema, especialmente se ela poderia se apresentar de formas tão diferentes.
É por isso que, antes de escolher uma estratégia, recomendamos que os investidores comecem compreendendo profundamente a diversidade de gênero de sua equipe e portfólio atuais. Isso ajuda a identificar os pontos fortes, os fracos e os cegos na sua operação e cria uma linha de métricas-base para acompanhar no futuro. Ao analisar os dados e discutir possíveis estratégias em cada um dos quatro níveis abaixo, é possível definir uma abordagem mais abrangente.
O fundo
Em primeiro lugar, considere seu próprio fundo, ou a composição de gênero da sua própria equipe de investimento.
A lacuna de gênero no setor de capital de risco, nesse nível, está bem documentada, e qualquer um que tenha participado em conferências do setor já a viu com os próprios olhos.
Apesar de pesquisas mostrarem que fundos com diversidade de gênero têm melhores retornos – cerca de 20% a mais de taxa interna líquida –, mulheres ocupam só 21% dos cargos de investimento nos EUA e apenas 12% dos de tomada de decisão, e 65% das empresas do setor ainda não têm nenhuma sócia. Isso apesar de o mesmo estudo mostrar que sócias investiram em quase o dobro de empreendedoras do que os sócios, destacando os efeitos cumulativos que uma equipe de investimento diversificada pode ter sobre a diversidade de gênero de seu portfólio mais amplo.
Determine a composição de gênero do seu fundo. Isso inclui levar em conta toda a equipe de investimentos, bem como cada cargo, desde os analistas até os diretores executivos. Considere diversificada sua equipe é hoje e a capacidade desse talento de afetar também os superiores. Você se orgulha da diversidade de gênero que vê? Caso contrário, o que poderia estar causando essa disparidade no recrutamento, retenção e promoção de talentos?
A liderança em investimentos
Em seguida, considere as lideranças de investimento, ou a composição de gênero dos fundadores, CEOs e conselhos.
No primeiro semestre de 2020, a disparidade nesse nível começava a atrair maior atenção do setor de capital de risco, Naquele momento,apenas 2,2% dos financiamentos VC dos EUA foram para equipes de fundadoras exclusivamente femininas (e só 13,2% foram para equipes com pelo menos uma fundadora). Considerando outros tipos de liderança,, somente 11,2% dos negócios de VC tinham uma CEO mulher em 2019, enquanto só 7% dos assentos no conselho foram ocupados por mulheres em 200 das empresas mais financiadas por capital de risco nos EUA.
O “reconhecimento de padrões”, estratégia antiga entre os capitalistas de risco e muitas vezes elogiada por permitir identificar empresas vencedoras em um estágio inicial, perpetua essa disparidade. O investimento em fundadores e lideranças com características semelhantes prejudica o desempenho financeiro dos fundos. Equipes fundadas por mulheres geram mais receita com menos dinheiro, têm maior probabilidade de serem lucrativas e apresentam aumentos maiores de avaliação rodada após rodada. Some-se a isso o dado de que conselhos de administração com diversidade de gênero levam a melhores decisões e retornos mais consistentes e concluímos que essas equipes podem estar entre as de melhor performance
Para avaliar adequadamente a diversidade de gênero na liderança, quantifique os negócios e o capital total investido em equipes fundadoras exclusivamente masculinas, mistas e exclusivamente femininas, bem como as mesmas métricas por gênero de CEO. Além disso, tente analisar a composição do conselho de administração de cada uma de suas empresas, calculando a porcentagem de empresas cujo conselho é totalmente masculino, tem apenas uma mulher ou várias mulheres.
Comparar suas métricas com as de fundos similares é um ótimo ponto de partida. Relatórios anuais como o da All Raise, embora não sejam extensos, podem dar referências úteis. Reflita sobre onde essas discrepâncias começam. É nos processos de abastecimento? Ou a queda ocorre na triagem e na diligência? Após o investimento, como você normalmente aborda as discussões sobre a composição do conselho?
A mão de obra
Depois, analise a mão de obra da empresa, ou a composição de gênero da alta administração e da força de trabalho de seus investimentos, bem como a presença de políticas que possibilitem a diversidade, como licença parental, regras de trabalho flexíveis e para igualdade de remuneração.
Nos EUA, em todos os setores, as mulheres continuam a ocupar apenas 38% dos cargos de nível gerencial e, embora representem 47% de todos os funcionários, compõem apenas 34,4% da força de trabalho das cinco maiores empresas de tecnologia. Locais de trabalho dominados por homens registram taxas mais altas de discriminação de gênero. A reação de algumas empresas líderes do Vale do Silício, como Uber e Google, ilustra esse dado.
Não há tantas evidências para provar vínculo direto entre a diversidade da empresa nesse nível e retornos do portfólio dos investidores, mas várias pesquisas associam a diversidade de gênero a características de sucesso da empresa,como mão de obra mais produtiva, rapidez na resolução de problemas, melhores resultados de contratação e até mesmo melhor desempenho financeiro.
Os investidores podem se sentir um pouco distantes da força de trabalho, mas é imperativo que compreendam como se constrói diversidade. Deve-se levar em conta tanto a composição de gênero da mão de obra geral das empresas da carteira quanto a da gerência sênior. Investidores também devem procurar entender se há esforços de inclusão dessas forças de trabalho, que medimos pela existência de políticas de promoção da diversidade. Como vocês se envolvem na contratação e retenção de talentos-chave em nível de diretoria? Como suas empresas lidam com as alocações de Esop [plano de bônus de ações segundo a resolução 401(a) do Internal Revenue Code nos EUA]? Que conclusões você tira sobre a composição e a inclusão da força de trabalho com essa pesquisa?
O consumidor
Por fim, considere o nível do “cliente”, ou a composição de gênero dos clientes finais de suas empresas. As mulheres representam a metade da população mundial, conduzem de 70 a 80% das decisões de compra dos consumidores nos EUA e sua riqueza vem crescendo mais rapidamente que a do mercado em geral. Produtos e serviços que atingem mulheres desfrutam de uma oportunidade de mercado frequentemente negligenciada e mal-atendida.
Essa parte da pesquisa terá significado diferente para cada fundo, pois os dados demográficos dos clientes variam de acordo com o setor e o produto. No mundo das fintechs, essa disparidade de gênero do cliente final é evidenciada pela lacuna de crédito de US$ 30 bilhões enfrentada por pequenas e médias empresas (PMEs) de propriedade feminina e pela oportunidade de receita de US$ 700 bilhões associada ao atendimento adequado a mulheres com serviços financeiros. Como investidores inclusivos em fintech, sabemos que há uma lacuna de inclusão financeira de 8,3% – ou no acesso a serviços financeiros — entre homens e mulheres. PMEs femininas geralmente recebem empréstimos menores a taxas mais altas, e, em países de baixa e média renda, mulheres têm menos acesso a telefones celulares,ferramenta essencial para acessar serviços financeiros.
Para avaliar esse nível, analise a diversidade de gênero dos clientes finais de seus investimentos. Dependendo do seu envolvimento com as empresas do portfólio, pode ser que você não consiga ter um impacto individual nesse aspecto, mas ainda pode considerar como essa divisão de gênero se reflete nos setores, nas teses e nos produtos que você buscou até o momento.
Se você é um investidor em tecnologia da saúde, o bem-estar da mulher está representado em seu portfólio? Se você é um investidor B2C, já explorou produtos adaptados para homens e mulheres? Ou, se você for um investidor em fintechs, como nós, de que maneira as estratégias de aquisição, canal ou marketing de suas empresas podem estar distorcendo a população que elas atingem?
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