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Okinawa, uma história de desequilíbrio de poder no Japão

O colonialismo e o preconceito contra a região limitam seu crescimento, mas mudanças políticas apontam um caminho

Este artigo faz parte da nossa série “A busca global pela equidade”. Para conferir os demais artigos, clique aqui.

Por Nagatsugu Asato e Nobuo Shiga

Arte: Raffi Marhaba, The Dream Creative

O legado do colonialismo fomentou a discriminação estrutural em todo o mundo, criando ciclos de alienação e pobreza entre comunidades subjugadas e marginalizadas. No Japão, esse legado é mais visível em Okinawa, região outrora independente ocupada pela primeira vez no início do século 17. A taxa de pobreza de Okinawa é de cerca de 35%, o dobro da média nacional. A província também lidera o país em taxas de desemprego, emprego informal e famílias monoparentais, além de ter os menores índices de matrículas universitárias.

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Por trás dessa grave pobreza há um dado revelador: mais de 70% da área das instalações militares dos Estados Unidos no país se concentra em Okinawa, apesar de a província representar apenas 0,6% do território total japonês. A concentração, que teve profundas implicações econômicas e culturais locais, é costumeiramente justificada por agências governamentais. Elas dizem que a presença das bases é necessária por razões de segurança e que a hospedagem das instalações militares traz apoio econômico nacional. Muitas pessoas na sociedade japonesa atribuem a pobreza de Okinawa às pressões de conformidade inerentes e à baixa autoestima de uma sociedade que é baseada em fortes laços familiares e raízes locais. No entanto, essas explicações são superficiais e desviam da questão central. Na verdade, a concentração da pobreza e das instalações militares representa uma forma moderna de colonialismo – uma desigualdade estrutural nascida da dinâmica de poder entre Okinawa e o Japão continental.

Corrigir a discriminação estrutural – definida aqui como a normalização e perpetuação inconsciente do preconceito contra certos grupos – apresenta desafios únicos. Ela é tão arraigada na vida cotidiana que pode até mesmo não ser reconhecido pelas pessoas em um determinado sistema. A aprovação tácita do preconceito benevolente representa uma complicação adicional. Frisar como únicas a história e a cultura de Okinawa, em oposição às do Japão continental, fazendo elogios a aspectos como seu ambiente natural, hospitalidade, cultura de entretenimento e dieta de longevidade, obscurece a discriminação estrutural contra seus habitantes. Também contribui inadvertidamente para a associação entre a pobreza e os valores e comportamentos da população local.

Visto que muitos japoneses não reconhecem a discriminação estrutural contra Okinawa, desfazê-la envolve entender o contexto histórico e os motivos para a persistência da opressão e como os formuladores de políticas e os cidadãos podem trabalhar para restaurar a equidade na região.

 

Uma história de opressão

 

A opressão e a discriminação contra Okinawa estão profundamente enraizadas em eventos históricos. A província já foi uma nação independente chamada Reino de Ryukyu. Em 1609, no entanto, Satsuma – um dos domínios mais poderosos do Xogunato Tokugawa, ditadura militar feudal também conhecida como Período Edo – invadiu o reino. Ao subjugá-lo, garantiu lucrativos benefícios comerciais e fincou posição em uma região de grande significado militar e geopolítico. A Restauração Meiji, que encerrou o xogunato, aboliu o sistema de domínio feudal, e a região foi formalmente incorporada ao território japonês em 1879.

A utilização de Okinawa tornou-se particularmente pronunciada durante os últimos estágios da Segunda Guerra Mundial, quando o governo japonês sacrificou o território para ganhar tempo para a defesa do Japão continental. Na Batalha de Okinawa, em 1945, que teve até 100 mil vítimas civis, as forças dos EUA pretendiam apoderar-se do local como base para a invasão planejada do Japão. Quando a guerra terminou, no segundo semestre daquele ano, o governo japonês estabeleceu uma nova Constituição, com um artigo renunciando à guerra (Artigo 9º) em troca de permitir que os Estados Unidos ocupassem Okinawa e, a partir daí, facilitassem suas estratégias militares na Ásia.

É importante ressaltar que a Batalha de Okinawa destruiu as ferrovias da região; as construções de estradas do pós-Guerra serviram principalmente aos interesses militares dos EUA, e muitas terras agrícolas, principal atividade econômica da província, foram confiscadas para a construção de instalações militares. Além disso, como a região estava sob administração americana, recebeu menos investimento de capital para a reconstrução e desenvolvimento econômico que o Japão continental, levando a atrasos significativos no desenvolvimento de sua infraestrutura social e industrial.

A Lei sobre Medidas Especiais para a Promoção e o Desenvolvimento de Okinawa, aprovada em 1971, visava abordar a desigualdade econômica e social entre a região e o resto do país, mas cerca de metade das despesas de obras públicas feitas sob a lei refluíram para o continente, por meio de grandes empresas de construção.

 

Pedidos de mudança frustrados

 

Os Estados Unidos continuaram a controlar Okinawa e, quando a Guerra do Vietnã começou, usaram o local como base de abastecimento e lançamento. Durante este tempo, movimentos anticoloniais e de paz cresceram rapidamente e começaram a ressoar entre a população do continente. Tanto os Estados Unidos quanto o Japão tinham interesse em acalmar esses movimentos, mantendo o statu quo. Em 1972, os Estados Unidos devolveram Okinawa ao Japão, mas continuaram usando suas bases locais sem o ônus financeiro ou as críticas internacionais decorrentes da ocupação. Já para o governo japonês, a formalização conteve o fervor nacionalista, ao mesmo tempo que manteve o local como parte integrante da defesa da estrutura de segurança EUA-Japão.

Mesmo após a devolução de Okinawa para o Japão, e ainda hoje, o Acordo de Status de Forças EUA-Japão mantém incidentes de agressão sexual e outros atos de violência por forças americanas distantes da jurisdição japonesa. Em todo o país erguem-se apelos por uma revisão profunda desse acordo, mas nenhuma mudança foi feita em mais de meio século.

A realocação das bases também não está no horizonte. Sucessivos ministros da Defesa japoneses reconheceram que a realocação de instalações fora de Okinaa não representaria problemas militares, mas manifestaram acreditar que não seria realista obter um acordo com o continente. Em 2009, o primeiro-ministro Yukio Hatoyama fez uma promessa eleitoral de realocar a base aérea dos EUA em Futenma, nos arredores de Okinawa, mas se retratou e rompeu o prometido no ano seguinte. Ainda assim, em fevereiro de 2019, mais de 70% dos eleitores na província se opuseram, em um referendo, à construção de uma nova base em Henoko, também dentro da prefeitura de Okinawa, para substituir Futenma, e os cidadãos têm demonstrado manter essa posição desde então. (Nagatsugu Asato, coautor deste texto, foi um dos suplentes do Comitê do Referendo de Henoko, na esperança de que a comunidade local fosse autorizada a tomar tais decisões por si mesma.)

Rumo à equidade e à autodeterminação

 

Em seu artigo “A Monitoring Theory of the Underclass” [Uma teoria de monitoramento das classes baixas],  J. Mark Ramseyer, professor da Faculdade de Direito de Harvard, argumenta que as minorias no Japão – como os coreanos zainichi (descendentes de pessoas que se mudaram ou foram forçadas a se mudar para o Japão durante o domínio colonial japonês da Coreia), os burakumins (uma comunidade historicamente marginalizada) e o povo de Okinawa – buscam soluções para violações de direitos humanos principalmente a fim de garantir subsídios governamentais. Ele também relaciona a pobreza a aspectos percebidos como peculiaridades locais, características culturais únicas ou traços culturais distintos de Okinawa – por exemplo, como o menor nível educacional, maiores taxas de divórcio e um maior número de crianças nascidas fora do casamento.

Os jornais locais criticaram o artigo, qualificando-o como um grave exemplo de racismo cultural que, como tal, ignora o papel da discriminação estrutural e da exploração subjacentes à pobreza extrema de Okinawa. As políticas públicas priorizaram o bem-estar, a segurança e o crescimento econômico do continente, em detrimento das necessidades de Okinawa, privando a população local das condições necessárias para a autodeterminação política, bem como dos meios de produção de bens e serviços essenciais para alcançar a independência econômica.

A Constituição Japonesa afirma, em seu artigo 14, seção 1, que “todos os cidadãos são iguais perante a lei e não devem ser discriminados com base em raça, credo, gênero, status social ou linhagem”. Em um exame cuidadoso, o texto mostra claramente que os casos em que grupos foram historicamente colocados em uma posição inferior devido à discriminação com base em atributos específicos devem ser abordados e corrigidos. Mas muitos estudiosos e advogados constitucionais japoneses entenderam que o artigo defende não o amplo direito à igualdade, mas a igualdade compreendida como direitos individuais específicos. Essa interpretação, contudo, ignora o fato de que relegar a Okinawa o fardo de hospedar instalações militares dos EUA (enquanto cidadãos do continente relutam em aceitar sua transferência para outras áreas) é uma negação da cidadania do local, anterior a qualquer violação de direitos individuais. Apelar à violação do direito à igualdade é fundamental para corrigir relações desiguais de poder.

A discriminação estrutural é perpetuada pela inação, então a sua resolução exige que aqueles que tanto cidadãos quanto aqueles que tomam decisões políticas assumam medidas proativas. Primeiro, formuladores de políticas devem reconhecer que realocar a base aérea dos EUA em Futenma para Henoko viola o artigo constitucional que proíbe a discriminação. Depois de mais de 25 anos de discussão, a decisão é definitiva, e as obras de aterro para a realocação estão em curso. Embora seja um grande desafio político interromper esse processo, aceitá-lo só reforçará a discriminação estrutural contra Okinawa. Os formuladores de políticas também devem esforços para lidar com a discriminação e estabelecer leis para aliviar o fardo da concentração de instalações militares na região.

Em segundo lugar, a Constituição do Japão é um documento de paz, simbolizada no artigo 9º, que renuncia à guerra. Os legisladores devem revisitar este artigo. Para alcançar a paz sem qualquer forma de violência – incluindo discriminação, opressão, alienação e pobreza – o artigo 9º, apenas, é insuficiente. Juntos, os artigos 9º e 14 podem orientar o Japão para uma paz proativa e livre de discriminação estrutural. Em outras palavras, o próprio tratamento discriminatório constitui uma violação.

Em terceiro lugar, os formuladores de políticas devem revisar a Lei sobre Medidas Especiais para a Promoção e o Desenvolvimento de Okinawa, que moldou a sociedade local desde a devolução do território para o Japão continental. O texto prevê que a política básica para planejar o desenvolvimento de Okinawa seja determinada pelo governo nacional, não pela província, confinando a autonomia e a autodeterminação locais no âmbito do paternalismo governamental. A lei, na prática, tem servido como mecanismo para manter o sistema de segurança Japão-EUA, perpetuando a discriminação.

Por fim, o artigo 95 da Constituição Japonesa estipula que qualquer lei que restrinja a autonomia de um governo local específico requer o consentimento de seus moradores por meio de um referendo. No entanto, a Lei sobre Medidas Especiais para a Promoção e Desenvolvimento de Okinawa foi implementada sem esse procedimento, sob o argumento de que não restringe a autonomia. Essa lei, provisória, tem sido estendida a cada década. Embora  especialistas venham progressivamente se posicionando contrariamente a essa simples extensão, em vista da preocupação com eventuais cortes orçamentários por parte do governo nacional, não é uma decisão fácil para o governador da província solicitar a abolição da lei. No entanto, essa decisão cabe, de fato, ao próprio povo de Okinawa. O atual período de vigência da lei expira em 31 de março de 2032. Olhando para o futuro, é necessária uma ampla e profunda discussão pública sobre opções que incluem extensão, abolição ou mesmo a exigência de uma autonomia mais avançada. Propostas concretas a serem elaboradas pelo governador e pela assembleia da província, bem como pedidos diretos de referendos pelo povo, devem ser considerados, e o processo deve envolver especialistas de diferentes áreas.

Mais de meio século desde a reversão para o continente, o governo japonês está alavancando Okinawa sob o disfarce de segurança nacional e desenvolvimento, efetivamente impedindo o direito de seu povo à autodeterminação. Enfrentar a injustiça, muitas vezes invisível, da discriminação que permite a concentração de bases militares e a pobreza na província é um desafio monumental que exige mudanças políticas e culturais. É preciso que haja um envolvimento ativo dos tomadores de decisões e dos cidadãos para modificar leis que vigem há longa data e mudar a percepção das pessoas no continente.

OS AUTORES

Nagatsugu Asato é um escrivão judicial em Okinawa que, depois de lidar com casos envolvendo vários devedores, se engajou ativamente em iniciativas dedicadas a desmantelar a discriminação estrutural. Ele também leciona na Universidade Internacional de Okinawa e faz parte da equipe jurídica do processo de referendo dos moradores de Ishigaki. É coautor, com Nobuo Shiga, de um livro que aborda as questões deste artigo ( Por que as bases militares e a pobreza estão concentradas em Okinawa, publicado em japonês em 2022, pela editora Horinouchi).

Nobuo Shiga é professor associado na Faculdade de Estudos de Saúde e Bem-Estar da Universidade da Província de Hiroshima. Doutor em sociologia pela Escola de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Hitotsubashi, especializou-se em teoria da pobreza e política social. É coautor, com Nagatsugu Asato, de um livro que aborda as questões deste artigo (Por que as bases militares e a pobreza estão concentradas em Okinawa, publicado em japonês em 2022, pela editora Horinouchi).

Confira o artigo no idioma original aqui.



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