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‘Óculos roxos’ para alcançar a equidade de gênero no México

O melhor ponto de partida de soluções criativas para a desigualdade de gênero é ver claramente onde e por que ela existe

Este artigo faz parte da nossa série “A busca global pela equidade”. Para conferir os demais artigos, clique aqui.

Por Luz María Velázquez & Patricia Torres 

Arte: Raffi Marhaba, The Dream Creative

Somos Lumi e Paty. Nossas histórias são diferentes, mas têm semelhanças. Ambas trabalhamos em uma variedade de disciplinas, incluindo ensino, ética, economia, arquitetura e design. Apesar de pertencermos a gerações diferentes, compartilhamos uma cultura e experiências como mulheres mexicanas. Nossa observação e nossa compreensão das desigualdades de gênero derivam desse cruzamento único de saberes.

Apesar das origens diferentes, nossas infâncias se ancoraram em convenções de gênero. Lumi cresceu em um ambiente com fortes raízes religiosas e papéis de gênero profundamente enraizados, especialmente ligados ao cuidado, e Paty foi criada em uma família com práticas machistas. No entanto, fomos incentivadas a estudar e, com o apoio financeiro de nossas famílias e bolsas de estudo, acabamos conquistando o título de doutorado, conquistas que contribuíram para nossa autonomia financeira.

Há alguns anos, participamos de uma atividade que tinha como objetivo conscientizar os gestores de contratação sobre o preconceito de gênero. Havia 30 pessoas presentes, entre as quais gerentes e membros de um comitê acadêmico de gênero do qual fizemos parte. Lumi apresentou ao grupo declarações sobre as desigualdades entre mulheres e homens – por exemplo, o fato de que mulheres recebem salários mais baixos que homens em cargos semelhantes –, e cada pessoa dizia se concordava ou não. Apenas Paty, Lumi e mais uma mulher do grupo concordaram que havia desigualdade de gênero, e os outros participantes ficaram surpresos de ver que nós três nos alinhamos contra a visão da maioria. Depois, refletimos sobre nossas trajetórias de vida e experiências profissionais e concluímos que era hora de nos lançarmos, juntas, em busca de respostas para algumas perguntas importantes: “Como superar as normas e barreiras sociais para chegar aonde aspiramos estar?”; e “como podemos ajudar outras mulheres a fazer o mesmo?”.

O resultado foi a criação da All Women Coo, uma consultoria mexicana nascida durante a pandemia de covid-19 para mitigar seus efeitos negativos sobre as mulheres. O slogan de nossa organização é “Gafas moradas para inovar” (“óculos roxos para inovar”), e ela se concentra em impulsionar a criatividade e a inovação a partir de uma perspectiva de gênero, ajudando as mulheres a forjar alianças com empresas e organizações e criando espaço para seu empoderamento.

 

Desigualdade de gênero na América Latina

 

As desigualdades de gênero têm raízes profundas e complexas nas estruturas econômicas, sociais e políticas em todo o mundo. Em todos os lugares, mulheres enfrentam obstáculos persistentes que limitam seu potencial e sua liberdade e minam seu bem-estar e seus direitos fundamentais. Esse desafio tem diferentes nuances em cada continente, país e comunidade.

Na América Latina, a cultura do machismo – um forte sentimento de orgulho masculino – contribui para o machismo generalizado, incluindo a falta de reconhecimento de que as mulheres fazem o mesmo trabalho que os homens e recebem menos, além das altas taxas de violência de gênero. Por exemplo, mulheres ganham 17% menos que homens em funções equivalentes, e uma em cada três enfrenta violência de gênero. Essas normas sociais arraigadas impactam profundamente a vida e as oportunidades das mulheres. Também inibem a representação igualitária nas áreas de poder e tomada de decisão, tanto na esfera política quanto na econômica, perpetuando a desigualdade de gênero e a violência na região.

 

Óculos roxos para inovar

 

O All Women Coo tem como objetivo transformar essas dinâmicas culturais e remover barreiras comuns à equidade de gênero. Uma parte importante da nossa abordagem é convidar todas as pessoas a “colocar óculos roxos”, uma expressão para analisar diferentes situações com uma perspectiva de gênero. É inspirado no livro de Gemma Lienas, El Diario Violeta de Carlota, uma exploração de papéis e estereótipos de gênero por meio da jornada de uma jovem descobrindo e desafiando casos sutis e evidentes de desigualdade de gênero na vida cotidiana. Para nós, colocar óculos roxos significa observar o mundo de uma forma que considere as desigualdades de gênero, os papéis e estereótipos socialmente atribuídos e a interseccionalidade das experiências que as mulheres marginalizadas pelo gênero encontraram.

Nossa metodologia incorpora alguns elementos fundamentais, como a compreensão das realidades de um determinado problema e a empatia com as experiências das pessoas envolvidas e afetadas por ele. Criamos uma equipe diversificada de investidores que destacam as realidades e desafios locais das mulheres e refletem sobre o que precisa acontecer. Tudo o que criamos é com e para mulheres, usando nossos óculos roxos para fomentar o questionamento crítico, a argumentação científica e a análise integral de variáveis relacionadas a problemas sociais. Esse processo também incorpora ferramentas quantitativas e qualitativas de pesquisa, como mapas mentais, entrevistas de empatia e pesquisas, a fim de aprimorar as informações derivadas de interações diretas com as mulheres e garantir que nossas descobertas sejam contextualizadas de maneira adequada. A inovação torna-se, assim, uma poderosa ferramenta impulsionada pela participação intelectual de mulheres de diversos contextos.

Também trabalhamos para que nossas soluções se traduzam em oportunidades práticas. Isso envolve a colaboração com mulheres líderes nos negócios e na academia em todo o mundo, ampliando o impacto de nosso trabalho de forma local e criando relacionamentos e parcerias profissionais valiosas. Juntas, detectamos, projetamos, planejamos, executamos e avaliamos ações e projetos, estabelecendo metas de curto, médio e longo prazo. As etapas de prototipagem e testagem do desenvolvimento do projeto são contínuas. Com base em feedback e análise contínua, testamos reiteradamente processos até chegarmos a soluções que sejam não apenas inovadoras, mas que também ecoem profundamente as reais necessidades e contextos das mulheres que pretendemos empoderar.

Nossos esforços abordam mais que os sintomas da desigualdade de gênero. Também abordamos suas causas estruturais para que nosso impacto seja abrangente e duradouro. Comunicar nossas conquistas aos aliados e à comunidade é parte essencial da geração de resultados efetivos e sustentáveis.

Nossos projetos incluem iniciativas de negócios e ações comunitárias e mostram a engenhosidade, determinação e liderança das mulheres, contribuindo significativamente para a equidade de gênero. A seguir, apresentamos quatro deles.

  1. Preenchendo a lacuna de gênero entre a universidade e a força de trabalho 

Muitas mulheres realizadas em termos acadêmicos lutam para superar barreiras e alcançar posições de topo e salários competitivos depois de se formarem na faculdade. É do nosso interesse pessoal lidar com essa situação, visto que muitas de nossas próprias alunas a enfrentam.

Em 2022, uma oportunidade de mudança surgiu em colaboração com a Universidad Insurgentes (UIN), uma universidade no centro do México, que tem também um campus virtual e que recebe anualmente mais de 30 mil jovens – a maioria são mulheres e, em geral, as primeiras da família a terem acesso ao ensino superior. Trabalhando com gestores e pessoas responsáveis pela estratégia na universidade, criamos o Coo Create Lab, um espaço seguro onde professores, estudantes e outros afiliados da universidade comprometidos com a igualdade de oportunidades de trabalho para mulheres poderiam falar abertamente sobre as barreiras que enfrentam e encontrar modelos para ajudá-las a superar desafios.

A Cultura Mujeres UIN, nome interno da iniciativa que saiu do laboratório, inclui networking e outras atividades que fortalecem grupos universitários, como o Mujeres Líderes e o ADN UIN 2030. Esses grupos têm beneficiado professores, estudantes e colaboradores por meio do reconhecimento das desigualdades e dos desafios da vida profissional, tornando o talento das mulheres mais visível a partir do uso de modelos e estimulando o empoderamento e a colaboração. As perspectivas e conexões que as alunas ganham são úteis tanto durante seu tempo na universidade quanto em sua vida profissional.

  1. Desenvolvendo mulheres de alto potencial com o Womentoring

No mercado de trabalho, as mulheres enfrentam, ainda, obstáculos sistêmicos, que restringem seu desenvolvimento profissional e mantêm os cargos de liderança fora do alcance. Muitas vezes elas não têm o apoio de que precisam para avançar.

Esse desafio nos levou ao Grupo Regional, um banco no norte do México. Dentro de sua iniciativa de diversidade, equidade e inclusão, a instituição tinha o objetivo específico de fortalecer a liderança feminina. Iniciamos nosso trabalho com outro Coo Create Lab, desta vez em colaboração com promotoras da iniciativa e membros do departamento de treinamento e desenvolvimento do banco, todas mulheres. Juntas, colocamos nossos óculos roxos para inovar e, finalmente, desenvolvemos uma iniciativa de mentoria chamada Womentoring Banregio, destinada a promover o desenvolvimento profissional e a liderança de 47 mulheres de alto potencial. O esforço envolveu o treinamento de executivos sêniores, mulheres e homens, sobre como ser mentores, bem como trabalhar com os mentorados para garantir que ambos os grupos fortalecessem seu desenvolvimento e valorizassem o aprendizado mútuo durante as sessões de mentoria.

Cada um dos dois programas funcionou por seis meses, primeiro virtualmente em 2022, depois em formato híbrido em 2023, ambos a partir do Dia Internacional da Mulher. Os programas contaram com uma média de 50 mentoradas e 46 mentoras, totalizando 158 horas de mentoria e cerca de 2.700 horas de treinamento. Trinta por cento das mentoradas foram promovidas a cargos de maior responsabilidade e autoridade no período de um ano, e 12% das mulheres receberam apoio financeiro por meio de bolsas de estudos para pós-graduação.

  1. Construção de um banco de horas para mulheres cuidadoras

Uma de nossas principais motivações para iniciar o All Women Coo foi a necessidade de destacar e abordar o problema do cuidado – trabalho que muitas vezes é invisível, não reconhecido, não remunerado e feito principalmente por mulheres. A pandemia aumentou as demandas de cuidado entre as mulheres, ressaltando a desigualdade de gênero.

Em 2022,San Pedro Garza García, municipalidade do estado mexicano de Nuevo León; o Instituto Municipal da Família, organização  de pesquisa e políticas públicas; e o Sistema para el Desarrollo Integral de la Familia, que promove o desenvolvimento familiar e gerencia a assistência do município, nos procuraram para realizar um estudo etnográfico sobre mulheres cuidadoras no bairro San Pedro 400. Nosso objetivo foi obter informações sobre as normas sociais e culturais que envolvem o trabalho de cuidado não remunerado nessa área economicamente vulnerável a fim de informar o desenvolvimento do Cuidemos, um programa governamental que oferece descanso para pessoas que cuidam de crianças, pessoas com deficiência ou idosos.

Começamos com entrevistas amigáveis e semiestruturadas com mulheres cuidadoras de diversas origens, em seus domicílios. Entre os temas dessas conversas, estavam suas aspirações e obstáculos, e elas nos ajudaram a identificar caminhos para melhorar bem-estar, vida familiar e integração comunitária dessas mulheres, bem como o respeito por seus direitos humanos, de modo mais geral. Algumas fizeram sugestões específicas, propondo serviços de apoio, como palestras sobre educação sexual e prevenção da violência para jovens. As visitas domiciliares também destacaram como a geografia pode aumentar a vulnerabilidade.

Nossos resultados e recomendações forneceram o principal insumo para o programa de governo, que posteriormente estabeleceu uma rede de apoio que reconhece, reduz e redistribui as horas de atendimento. O programa agora também oferece serviços e apoio, como cartões de supermercado, assistência médica e transporte gratuitos e treinamento para a independência econômica. Atualmente, esse programa beneficia mais de 700 cuidadoras e suas famílias no município.

Desde então, realizamos outros estudos etnográficos, incluindo um esforço conjunto com a Save the Children em Puebla, México, para identificar como as dinâmicas de gênero e poder afetam o acesso e a participação de jovens mulheres e homens na formação, no mercado de trabalho e na educação. Também colaboramos com a organização sem fins lucrativos Vida y Familia México (Vifac), que tem sede no município de Guadalupe, Nuevo León, e apoia mulheres grávidas em situação de vulnerabilidade, a fim de entender as experiências, necessidades e aspirações de seus beneficiários com o objetivo de melhorar seu bem-estar e independência. Um dos resultados deste estudo é um projeto de microempresa desenvolvido em colaboração com a Vifac, o qual promove independência financeira e autonomia, ajudando mulheres a estabelecerem e gerenciarem suas próprias fontes de renda.

 

Em solidariedade às lutas pendentes das mulheres 

 

Nosso objetivo com esses projetos é contribuir para o empoderamento, autonomia, equidade e avanço de todas as mulheres e, com isso, criar uma mudança positiva e sustentável na sociedade. Nossa abordagem consiste em ver com mais clareza e inovar ao lado das mulheres que querem mudar a dinâmica educacional, empresarial e política ao seu redor. O sucesso exige que continuemos a tecer fortes redes de irmandade, colaboração e apoio nos setores governamental, corporativo, acadêmico e da sociedade civil – o que Lumi descreve como “a arte de estabelecer e cultivar relações profissionais e comerciais”.

Sentimos profunda empatia por mulheres e meninas que enfrentam a falta de reconhecimento e respeito por seus direitos humanos mais básicos e nos solidarizamos com sua luta para que sejam tratadas como pessoas plenas, com igualdade de oportunidades, acesso ao uso e benefício de recursos, liberdade e respeito. É hora de desafiar estereótipos e aposentar papéis de gênero que atrapalham seu crescimento e desenvolvimento. Na All Women Coo, temos o compromisso de trabalhar para construir um mundo onde todas as mulheres e meninas sejam valorizadas, ouvidas e respeitadas, a fim de que alcancem seu potencial pleno. Juntas, podemos transformar sistemas culturais limitantes em um princípio para oferecer um futuro mais igualitário para mulheres e meninas.

 

AS AUTORAS

Luz María “Lumi” Velázquez Sánchez é diretora de experiências da All Women Coo.  É especialista no desenvolvimento profissional e pessoal de mulheres a partir de novos modelos de carreira, autora de Networking for Women e Career and Professional Development for Women, e fundadora do Prêmio Mujer Tec. Tem como objetivo destacar e homenagear as contribuições, talentos e conquistas das mulheres na comunidade universitária do Tecnológico de Monterrey.

Patricia “Paty” Torres Sanchez é cofundadora e diretora de inovação da All Women Coo. É especialista em inovação com perspectiva de gênero e designer de equipes transdisciplinares de alto impacto para abordar questões complexas e resiliência.

Confira o artigo no idioma original aqui.



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