Empresas podem ser protagonistas da transformação social e econômica no Brasil
Apesar de não estar imune aos retrocessos, a discussão sobre DEI no Brasil deve ser olhada no contexto das profundas desigualdades históricas do país. As empresas devem assumir o papel de agentes ativos de mudança
Por Renato Souza

Nos últimos anos, a agenda de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) tem enfrentado desafios cada vez mais intensos. O cenário global, caracterizado por retrocessos políticos, como a ascensão de governos conservadores em diversas partes do mundo, reflete um ambiente de polarização crescente. Nos Estados Unidos, por exemplo, o movimento contra as práticas ESG (ambiental, social e de governança) tem ganhado força, com políticos e empresários argumentando que tais iniciativas prejudicam a competitividade e a liberdade econômica. No entanto, a reação a essas tendências não pode ser encarada como uma perda de terreno irreversível. O Brasil, com sua realidade social e econômica complexa, não está imune a esses movimentos; ao mesmo tempo, possui um potencial único para moldar um futuro mais inclusivo e sustentável.
A discussão sobre DEI no Brasil deve ser situada dentro do contexto das profundas desigualdades sociais e econômicas que marcam nossa sociedade. Somos uma nação onde a concentração de riqueza é alarmante e, consequentemente, sua distribuição torna-se ainda mais díspar, com uma pequena parcela da população detendo uma fatia significativa da riqueza nacional. A meritocracia, conceito defendido por aqueles que veem a desigualdade como resultado de escolhas individuais, continua sendo uma ideia popular no discurso político e empresarial. Contudo, ela não passa de uma utopia que ignora as condições estruturais e históricas que moldam o acesso aos recursos, às oportunidades e ao poder.
No Brasil, a ideia de que o sucesso é alcançado unicamente pelo esforço individual desconsidera as inúmeras barreiras enfrentadas por grande parte da população. A desigualdade de oportunidades, especialmente para as populações periféricas, negras, indígenas e suas diversas interseccionalidades, é um reflexo claro de um sistema que privilegia determinados grupos e suas características. Nesse contexto, a meritocracia serve como uma justificativa conveniente para aqueles que se beneficiam do status quo, ignorando as condições precárias de vida de milhões de brasileiros que não têm o mesmo ponto de partida.
Porém, o que mais me chama atenção, após anos de trabalho nessas áreas, é o fato de que a diversidade incomoda muito mais do que a desigualdade. Ao longo de minha carreira, percebi como a simples presença do diferente pode gerar desconforto nas pessoas. A diversidade em seus múltiplos aspectos – seja de gênero, raça, orientação sexual ou identidade de gênero – mexe com a percepção de identidade de muitos. O medo do desconhecido, a insegurança sobre o que isso representa para sua posição social e o questionamento sobre o lugar que ocupam no mundo geram um incômodo profundo.
Essa resistência à diversidade, mais do que um reflexo de preconceito explícito, é frequentemente alimentada por um processo de defesa. As pessoas que se sentem inseguras ou ameaçadas pela diversidade, em muitos casos, buscam uma forma de “proteger” suas próprias identidades, tornando o “diferente” algo que deve ser evitado, ignorado ou até mesmo combatido. Esse fenômeno é particularmente evidente nas discussões sobre gênero e raça, onde os preconceitos mais arraigados se manifestam como uma tentativa de manter um controle sobre as narrativas de poder que historicamente favorecem certos grupos.
O papel das empresas nesse cenário é fundamental. Elas não podem simplesmente reagir passivamente às mudanças ou buscar uma estratégia de adaptação que ignore aspectos sociais e econômicos. Em vez disso, devem ser agentes ativos na transformação da sociedade. As políticas de DEI não podem ser tratadas como iniciativas isoladas ou medidas paliativas. Elas precisam ser integradas à estratégia central das organizações, sendo vistas não como um custo, mas como um investimento em um futuro mais justo e equilibrado. O verdadeiro compromisso com a diversidade exige um trabalho contínuo para desconstruir as barreiras que ainda excluem indivíduos com base em sua identidade, sua cor ou sua origem.
Porém, o que realmente diferencia uma organização que se compromete com a mudança é a capacidade de enfrentar, com coragem, as resistências internas e externas. Não se trata apenas de criar ambientes mais inclusivos, mas de estabelecer uma verdadeira mudança cultural. A diversidade deve ser compreendida como um valor em si, e não apenas como um reflexo de uma política corporativa. Ela deve ser celebrada por todos, como parte de um movimento maior que visa não apenas o benefício da organização, mas da sociedade como um todo.
A crise atual, que afeta tanto o Brasil quanto o resto do mundo, é reflexo de uma lenta e contínua falência de um modelo econômico que revela, dia após dia, suas fragilidades e desafios em estabelecer um contexto de maior estabilidade, onde lucro, bem-estar social e meio ambiente estejam conectados e em relações de interdependência saudáveis. O modelo financeiro que prevalece globalmente, com sua lógica de especulação e concentração de riqueza, tem exacerbado a desigualdade, criando um abismo cada vez maior entre os povos. Em vez de buscarmos acordos multilaterais e investirmos no desenvolvimento sustentável e em uma economia inclusiva e regenerativa, o sistema tem drenado seus recursos, alimentando um ciclo de exclusão, violência e intolerância, onde a expansão territorial e acordos comerciais desequilibrados se tornaram movimentos esperados, quase naturais.
No entanto, os retrocessos não significam um retorno à estaca zero. Como mencionei anteriormente, a agenda de DEI e, de forma mais ampla, a pauta de ESG continuam sendo um campo de transformação, ainda que desafiado por forças contrárias. O que está em jogo não é apenas a mudança de algumas práticas empresariais, mas a construção de uma nova economia, que deve ser socialmente justa, ambientalmente sustentável e, fundamentalmente, inclusiva. A verdadeira transformação exige um compromisso com a verdade, com a luta pela igualdade de oportunidades e, principalmente, com a criação de uma cultura onde a diversidade não seja apenas tolerada, mas ativamente promovida.
As empresas podem e devem liderar essa mudança, conquistando maior relevância no mercado e tornando-se protagonistas de uma transformação social vital para o nosso futuro coletivo. Ao integrar, de forma intencional, os temas de diversidade, inclusão e sustentabilidade em suas estratégias de maneira robusta, as organizações não apenas contribuem para a justiça social, mas também se posicionam para um futuro mais resiliente e inovador. Precisamos lembrar que não se trata de um ou outro caminho, de dentro ou fora, de juntos ou separados; as equações se tornaram mais complexas e desafiadoras, exigindo que todos utilizem sua ambidestria para encontrar soluções mais inteligentes. O caminho dessa transformação pode não ser fácil, mas não deixará de ser necessário.
O AUTOR
Renato Souza é Diretor de Inclusão, Diversidade e Sustentabilidade Corporativa na PwC Brasil
* Este artigo faz parte do debate Retrocessos em sustentabilidade nos EUA afetam empresas no Brasil? Especialistas respondem.