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Doações Monetárias e Desenvolvimento

Apesar de toda a cobertura jornalística positiva que as transferências incondicionais têm obtido, o dinheiro ainda está longe de corresponder a esta propaganda exagerada. E mais ainda de trazer mudanças duradouras

Por Kevin Starr

(Foto Unsplash/Vu Nguyen)
(Foto Unsplash/Vu Nguyen)

No início da década de 2010, a GiveDirectly  fez grandes transferências monetárias incondicionais (TMIs) equivalentes à aproximadamente a renda de doze meses para as famílias mais pobres na zona rural do oeste do Quênia, na África. Um ano depois, as pessoas estavam mais felizes e mais bem alimentadas com os recursos que receberam da organização internacional, cuja missão é fazer doações incondicionais para famílias de baixa renda em países em desenvolvimento.  Essas famílias compraram telhados de zinco para suas casas, vacas e outros produtos úteis e não gastaram dinheiro com coisas supérfluas. A curto prazo, dar às pessoas realmente pobres um montante de dinheiro proporcionou-lhes uma situação muito melhor.

Isso não é surpreendente. Já sabíamos, por muitos estudos, que os pobres fazem bom uso do dinheiro, que aliviar estressores agudos torna as pessoas mais felizes e que mesmo um distanciamento de curto prazo de uma mentalidade de escassez desencadeia todos os tipos de melhoria. Mas, dada a missão da Fundação Mulago de “mudança duradoura em escala”, queríamos saber se os benefícios de curto prazo se transformam em impacto contínuo. Essa grande entrada de recursos muda a trajetória socioeconômica de uma família ao longo do tempo?

Infelizmente, não. Após quatro anos, as famílias beneficiadas pela GiveDirectly não estavam em situação significativamente melhor do que as famílias de controle. Apesar de terem vivido vários anos de aumento de consumo, todas as demais famílias se igualaram a elas quatro anos depois. Esses ganhos de curto prazo foram sustentados – ninguém regrediu –, mas, como uma maré subindo lentamente, todas as outras famílias chegaram ao mesmo nível, o que acabou sendo um impulso temporário. Coisas boas aconteceram, mas a grande entrada de dinheiro não mudou suas trajetórias de longo prazo, nem pareceu alterar suas vidas de maneira profunda, como tampouco foi relevante no que diz respeito a um impacto duradouro.

Os resultados iniciais de curto prazo geraram muita empolgação quando foram lançados, levando muitas pessoas a acreditar que isso iria “transformar o setor de desenvolvimento” e assim por diante. Quando as análises de longo prazo chegaram, e foram decepcionantes, pensei que seria REALMENTE UM GRANDE PROBLEMA. Aqueles resultados jogaram água fria em toda a questão do “futuro do desenvolvimento”, certo?

Não. Eles foram amplamente ignorados, e o trem das TMIs continuou nos trilhos.

Atualmente, há uma tendência em aglutinar diferentes tipos de transferências monetárias, mesmo que elas e seus efeitos muitas vezes sejam bastante distintos: condicionais, incondicionais, em parcelas únicas, múltiplas, de curto e de longo prazos, grandes, pequenas, acompanhadas ou não acompanhadas de outras intervenções e diversas outras combinações. As transferências monetárias da GiveDirectly foram grandes, de parcela única, incondicionais, da variedade desacompanhada de qualquer outra intervenção (que apelidarei de TGUI). Uma vez que, até onde posso dizer, a GiveDirectly é a única que fez esse tipo específico de transferência, não há, até agora, nenhuma evidência de impacto duradouro desse tipo de iniciativa.

E se pensarmos, no entanto, de maneira mais ampla? Graças a um estudo brilhantemente concebido e executado por Ted Miguel et al, agora podemos ver o que acontece em uma economia regional quando se fazem muitas transferências do tipo TGUI. No caso, US$ 11 milhões em uma região com 300 mil pessoas e 650 comunidades. Como antes, os resultados são excelentes após um ano e, embora semelhantes em cada família, os efeitos são mais marcantes em nível regional. Os autores apresentam evidências muito bem fundamentadas de que: 1) todo mundo estava em melhor situação, quer tivesse recebido dinheiro ou não; 2)  a transferência teve um impressionante efeito multiplicador de 2,7x na economia local; e 3) nada de adverso aconteceu (essa grande quantidade de dinheiro não causou inflação).

Essas são contribuições realmente importantes à literatura sobre  transferência monetária – um multiplicador de 2,7 é nada menos do que espetacular – e as três descobertas terão importantes implicações nas políticas públicas ao longo do tempo. E é claro que a mídia especializada em desenvolvimento reagiu com o mesmo tipo de manchete que em 2016. Por exemplo: “’Uma instituição beneficente lançou um pacote de estímulo maciço na zona rural do Quênia e transformou a economia”. (É um ótimo artigo, título hiperbólico à parte.) Mas, para mim, os resultados do estudo levantam exatamente a mesma pergunta feita pelo estudo domiciliar original.

Isso resulta em mudanças duradouras? Algo realmente foi “transformado”?

Não sou economista – levo cerca de uma semana para ler um desses estudos –, mas não sei se realmente estamos mais propensos a ver mudanças mais permanentes no nível regional do que vimos no domiciliar. Os autores do artigo observaram que grande parte do impacto de curto prazo foi do aproveitamento da “folga” na economia local, ou seja, havia excesso de capacidade que entrou em ação, já que havia mais dinheiro circulando (por exemplo, as fábricas locais tinham máquinas e pessoas subutilizadas). E consideraram que as melhorias na economia foram “impulsionadas pela demanda (gastos de consumo) em vez de impulsionadas por investimentos (gastos de produtividade)”.

Vimos que direcionar uma TGUI a uma economia doméstica criou muitos benefícios de curto prazo, mas não pareceu gerar muito em termos de impacto duradouro. Tendo em vista que a mudança observada aqui é “impulsionada pela demanda”, não tenho certeza da razão pela qual achamos que uma injeção única de dinheiro nessa economia rural empobrecida teria um efeito muito prolongado. Não se trata de uma economia anteriormente robusta que precisa de um estímulo para voltar a funcionar. Estamos falando de uma economia de pequenos produtores agrícolas presos a uma armadilha de pobreza: trabalhadores sobrevivendo de colheitas de baixo valor em terrenos cada vez menores e com solos cada vez piores. Isso significa que as pessoas tendem a ser agricultores “circunstanciais”, que não escolheram a agricultura, mas estão fazendo uso do único ativo que possuem (produzir culturas comerciais é complicado e algo que apenas uma pequena porcentagem desses agricultores quer assumir).

Algo precisa alterar esses fundamentos. E, uma vez que o miniboom econômico foi impulsionado pelo consumo, parece improvável que seja por meio desta bolada única de dinheiro. O investimento é sobre o amanhã. Quando as pessoas estão vivendo com tanta dificuldade, elas precisam gastar esse dinheiro hoje.

Os autores também indicam que não se deve mais pensar sobre essa questão “impulsionada pela demanda” e sugerem que uma TMI regional poderia resolver o problema das armadilhas de liquidez: “Outras perspectivas teóricas do comércio internacional, geografia econômica e desenvolvimento, bem como a literatura sobre as armadilhas de liquidez mencionada acima, sugeririam a possibilidade de haver efeitos locais de uma infusão temporária de dinheiro devido a efeitos de aglomeração, retornos crescentes, mudanças na desigualdade de renda, estrutura de mercado e especialização da empresa, e até mesmo mudanças nas relações sociais de comerciantes e fornecedores”.

O problema é que armadilhas de liquidez não são o mesmo que armadilhas de pobreza. Quando a maioria da população está presa à agricultura familiar improdutiva, o baralho de cartas marcadas joga contra os “efeitos locais persistentes”. Há uma razão pela qual os programas comprovados de “emancipação de ultrapobreza” fornecem às pessoas muito mais do que dinheiro e porque esses programas foram mais bem-sucedidos em lugares como Bangladesh, onde os ultrapobres são uma minoria lutando dentro de uma economia vibrante. As armadilhas da pobreza são problemas persistentes, especialmente quando todos ao seu redor também caem nelas.

Se parece improvável que o dinheiro em parcela única quebre o impasse da armadilha da pobreza, talvez quantias menores, desembolsadas de forma constante por um período mais longo, possam criar mudanças duradouras. Em outro recente estudo revelador, Handa et al forneceram, de maneira incondicionada, US$ 12 por mês para famílias da Zâmbia durante três anos, pagos em parcelas a cada duas semanas. Embora tenha sido um estudo complexo, o artigo é altamente inteligível: o resultado é que as famílias se mostraram comprovadamente em melhor situação. E esse fluxo estável e confiável de dinheiro teve um multiplicador de 1,67 (o que significa que cada dólar distribuído gerou mais 67 centavos de renda). E a surpresa é que uma transferência do tipo renda básica universal (RBU) como esta pode ter mais impacto do que uma TGUI de valor fixo de quase duas vezes o valor total (ou tanto quanto outros programas de erradicação de pobreza muito mais caros).

Isso é realmente importante, e talvez haja algo mágico sobre o fluxo constante e confiável de dinheiro que pode ser mais do que um divisor de águas. Um aumento sustentado no consumo pode impulsionar uma segunda ordem de mudanças com efeitos duradouros? Não sei, mas é impossível não ter a preocupação de que tudo volte ao ponto de partida quando a torneira do dinheiro é fechada. Claramente, os três anos da modesta RBU de Handa fizeram muito bem e é difícil argumentar que não vale a pena fazer este tipo de transferência, desde que 1) você possa encontrar alguém para pagar por isso e 2) não esteja desviando dinheiro de algo com impacto mais sustentado (dado o histórico de alguns, digamos, grandes financiadores internacionais,  uma RBU modesta pode ser uma boa diversificação).

Mas isso é desenvolvimento? Pode mudar a trajetória de longo prazo de uma família – ou de uma região?

Tendo passado muito tempo tentando entender qual seria o melhor uso para o dinheiro de nossa fundação, continuo convencido de que ele serve para a mitigação da pobreza, não para o desenvolvimento. Não me importaria nem um pouco se eu viesse a estar errado. Tenho dado murro em ponta de faca durante anos tentando descobrir a solução para economias rurais estagnadas em lugares como o oeste do Quênia e a Zâmbia rural. E é pouco provável que eu tenha uma resposta melhor.

Mas, embora eu não acredite, pelo menos até o momento, financiadores como a Mulago devem ainda prestar muita atenção em estudos sobre distribuição de recursos monetários. Temos que estar dispostos a transferir renda se a verba, qualquer que seja o formato, acabar tendo mais impacto do que os tipos de solução que financiamos atualmente – embora, na verdade, eu espere que os investimentos da Mulago tenham um desempenho muito melhor. Mas, mesmo quando aprendemos sobre o potencial do dinheiro – e esses estudos estão se proliferando rapidamente –, é hora de os proponentes descobrirem de onde o recurso deveria vir, em escala. Enquanto exploro essas questões, ainda tenho que ler uma discussão substantiva sobre esta matéria, especialmente no contexto de governos falidos na África. Você tem de ter um pagador em escala: muitas coisas são levadas longe demais antes que alguém descubra quem ele será. Não deixe que isso seja mais um problema.

 

O AUTOR

 

Kevin Starr (@mulagostarr) dirige a Mulago Foundation e o Rainer Arnhold Fellows Program.



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