Como preservar ativos digitais antes do fechamento de ONGs
Em tempos difíceis, quando muitas organizações sem fins lucrativos serão forçadas a encerrar as suas atividades, líderes e financiadores devem agir para preservar dados e outros ativos intangíveis antes do fechamento de ONGs
Por Jim Fruchterman e Steve Francis

O que acontece quando um programa ou toda uma organização sem fins lucrativos precisa encerrar suas atividades? As comunidades atendidas, e muitas vezes a sociedade como um todo, saem perdendo com o fechamento de ONGs. Mas e se fosse possível mitigar parte desses prejuízos compartilhando os ativos de propriedade intelectual da iniciativa encerrada para obter um benefício de longo prazo? Organizações que se encontram nessas circunstâncias difíceis devem considerar seriamente um destino responsável para seus ativos intangíveis.
Neste momento de disrupção sem precedentes, o setor sem fins lucrativos está repensando tudo: a linguagem para descrever seu trabalho, fontes de financiamento, parcerias e até mesmo sua existência futura. Programas e até mesmo organizações inteiras serão fechadas ou fundidas. Decisões difíceis estão sendo tomadas. Quem assumirá o papel de testemunha e arquivista para preservar o conhecimento dessas organizações, seus escritos, mídias, softwares e dados, para aqueles que continuarão esse trabalho, agora ou no futuro?
Acreditamos que líderes neste momento difícil devem considerar um modelo que estamos chamando de “Exit to Open” (“Encerramento com abertura”, em tradução livre) e conceitos correlatos de transição para salvaguardar para o futuro os ativos decorrentes do fechamento de ONGs.
Enriquecer o comum
Como evitar a tragédia do trabalho perdido? A sociedade possui instituições que atuam como guardiãs do conhecimento — universidades, museus, bibliotecas — mas preservar o legado do nosso trabalho de impacto social está fora de seu escopo. Além disso, essas instituições geralmente determinam o que é importante com base em uma retrospectiva significativa, o que significa que pouca coisa é capturada no momento em que ocorre. Com frequência, elas apenas arquivam “o que sobrou” anos ou décadas depois. Esse modelo tradicional funciona pior ainda na era digital.
O modelo “Exit to Open” explora três elementos:
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Estamos em uma era em que o custo da preservação digital é baixo; armazenar alguns bytes a mais por muito tempo é barato.
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É muito mais eficaz para a própria equipe da organização isolar e arquivar conteúdo crítico do que esperar que alguém de fora com pouco conhecimento o faça depois.
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Esses recursos são mais úteis quando existe uma pessoa capaz de interpretá-los. Um processo deliberado de arquivamento permite a identificação desses possíveis interpretadores.
Felizmente, já temos modelos modernos para demonstrar o primeiro desses três elementos: o arquivamento digital gratuito e online. O Internet Archive provavelmente já tem várias cópias do site de uma organização. Para ativos de software, temos repositórios de código aberto como o GitHub, que armazenam códigos-fonte gratuitamente. Infelizmente, o conteúdo mais importante e valioso de um programa raramente está disponível no site da organização, e a grande maioria dos softwares utilizados no setor social não é de código aberto e não está disponível em repositórios públicos. No caso dos dados, não temos hoje um modelo para a guarda de conjuntos de dados voltados ao bem social, sejam eles abertos ou sensíveis, que precisam permanecer privados. A comunidade acadêmica possui um histórico respeitável de hospedagem de dados científicos a longo prazo, mas ainda não existe infraestrutura equivalente para organizações sem fins lucrativos. Seria recomendável adotar um marco de governança de dados responsável, como o Better Deal for Data. Também seria uma boa prática permitir que stakeholders tenham um período para baixar seus dados antes que sejam apagados ou transferidos, como a startup de genética 23andme está fazendo neste momento.
O segundo elemento exige um investimento modesto de tempo da equipe da organização. Em alguns casos, esse tempo pode estar previsto como parte do financiamento existente durante o encerramento do programa ou instituição. Em outros casos, será necessário o apoio de financiadores. A boa notícia é que temos visto vários financiadores dispostos a apoiar essas transições organizacionais. Os financiadores, especialmente as fundações, têm investido recursos significativos na criação de ativos sem fins lucrativos, e podem estar dispostos a fazer um pequeno investimento para garantir que esses ativos continuem disponíveis para servir aos interesses de toda uma área e da sociedade.
O elemento humano é o mais difícil de planejar. No entanto, nossa experiência mostra que membros de equipes sem fins lucrativos geralmente têm muito orgulho de suas realizações e ficam profundamente decepcionados quando seus programas acabam, especialmente de forma inesperada. Reconhecer sua criatividade com atribuição parece um pequeno gesto de valorização, ao mesmo tempo em que preserva um caminho para seu conhecimento caso ele seja necessário no futuro. Acreditamos que a maioria estaria disposta a apoiar a reutilização dos ativos que ajudaram a criar.
Chamada à ação
Queremos incentivar dois grupos a adotar medidas do tipo “Exit to Open” antes do fechamento de ONGs: líderes de organizações sem fins lucrativos e financiadores.
Líderes de organizações envolvidas no encerramento de programas podem agir agora. Nos dias e semanas difíceis que antecedem o fechamento, pense em como abrir o máximo possível do conhecimento acumulado por sua organização, seguindo as ideias deste artigo. Isso pode ser tão simples quanto publicar o máximo de conteúdo possível em seu site e alterar o aviso de direitos autorais no rodapé das páginas para uma licença Creative Commons que permita a reutilização e adaptação do material por terceiros. Faça um pagamento antecipado para manter o site no ar pelo maior tempo possível, idealmente por pelo menos um ano. Se você tiver código-fonte de software, publique-o em um repositório aberto como o GitHub e adicione uma licença de código aberto.
Financiadores devem considerar apoiar a transição desses ativos para o benefício público. Isso inclui:
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Incentivar ativamente organizações em crise a incluir esse processo em seus planos de encerramento;
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Financiar organizações em fechamento por um tempo adicional para que possam implementar a estratégia “Exit to Open”;
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Financiar arquivistas digitais para criar um manual de boas práticas com base em sua expertise;
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Apoiar arquivos digitais como o Internet Archive, entre outros, que provavelmente aceitarão esse conteúdo e o manterão acessível ao público.
O manual
Para tornar o processo de encerramento responsável o mais simples possível, um manual deve ser criado, idealmente com a ajuda de arquivistas digitais profissionais (o que os autores deste artigo não são). Esses arquivos precisam ser fáceis e baratos de criar, tanto quanto possível.
O manual deve conter instruções passo a passo, incluindo:
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Materiais educativos voltados a tomadores de decisão (membros do conselho e gestores);
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Resoluções padronizadas e termos de cessão de direitos autorais (se necessário);
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Quando aplicável, garantias para os membros do conselho de que nenhuma nova responsabilidade legal recairá sobre a organização ou seus associados. A transição não pode vir com eventuais sanções;
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Aplicar licenças abertas bem compreendidas por organizações sem fins lucrativos, como as Creative Commons ou de código aberto, são um passo simples a ser tomado;
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Diretrizes para arquivar ou transferir diferentes tipos de informação:
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documentos;
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mídia (vídeos, áudios, etc.);
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repositórios de software;
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bancos de dados;
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marcas registradas e patentes.
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Vale destacar que o Internet Archive considera a preservação de conteúdo digital como parte central de sua missão. O Archive já se dispôs a apoiar o conceito de “Exit to Open” aceitando todo o conteúdo relevante (na verdade, qualquer pessoa pode fazer upload de conteúdo para o Archive com uma conta gratuita). Além disso, se organizações suficientes aderirem a essa proposta, o Archive pode considerar criar uma coleção especial para esse material em sua plataforma.
O manual precisa ser o mais direto possível, pois o trabalho será feito sob pressão de tempo e recursos, por pessoas que provavelmente estarão perdendo seus empregos com o fechamento de ONGs.
Antes do fechamento de ONGs, foco na abertura
Defendemos a liberação dos ativos de propriedade intelectual de programas sem fins lucrativos encerrados sob as licenças mais generosas e abertas disponíveis. Quando um projeto está sendo encerrado, não faz sentido manter as coisas sob controle privado. Não há mais vantagem competitiva em manter algo fechado se a organização não vai mais competir por financiamento ou reputação.
Para materiais protegidos por direitos autorais como documentos, imagens, vídeos e apresentações, ou para bancos de dados que possam ser tornados públicos de forma responsável (como dados científicos), isso pode significar escolher uma licença Creative Commons como a CC-BY 4.0, que exige apenas a atribuição ao criador original. É possível inclusive usar a licença CC0, que declara o material em domínio público, oferecendo o máximo de abertura. No caso de softwares, existem licenças de código aberto como GPL ou Apache, que permitem a terceiros utilizar e aprimorar os programas.
É importante lembrar que disponibilizar algo sob uma licença aberta significa torná-lo acessível a qualquer pessoa no planeta. Aberto significa realmente aberto, e isso implica que os materiais liberados estarão disponíveis para outras organizações sem fins lucrativos, governos e até mesmo empresas. Esse modelo tem valor especial quando uma organização e seu trabalho estão sendo reprimidos (como tem ocorrido em um número crescente de países). A abertura torna possível continuar o trabalho no exílio, ou em diferentes localidades do globo.
O compartilhamento máximo aumenta a probabilidade de que esses ativos decorrentes do fechamento de ONGs beneficiem outras pessoas.
E se a abertura não for uma boa opção?
Nem todos os ativos de propriedade intelectual fazem sentido para a abertura. Dados confidenciais sobre clientes provavelmente devem ser cuidadosamente excluídos no encerramento de um programa, para evitar que caiam em mãos erradas. Em alguns casos raros, pode fazer sentido transferir o banco de dados para outra organização confiável com missão semelhante. Já vimos isso acontecer no campo dos direitos humanos, com registros de violações de direitos.
Outro exemplo é a marca registrada, que não faz muito sentido como ativo aberto, já que sua função é indicar quem é o responsável por um produto ou serviço. Pode fazer mais sentido abandonar a marca, a menos que outra organização confiável possa utilizá-la em benefício da sociedade.
Agradecimentos
Gostaríamos de expressar nossa gratidão às pessoas que nos inspiraram, especialmente do mundo das startups com fins lucrativos. O conceito de “Exit to Community” (Saída para a Comunidade, em tradução livre) foi popularizado por Nathan Schneider em 2019. Além disso, discutimos inicialmente a ideia de “Exit to Open” com colegas do setor de agricultura, com apoio ativo do 11th Hour Project. Mas foi durante conversas com a comunidade de beneficiários da Fundação Skoll, nos preparativos para o Skoll World Forum 2025, que o interesse no contexto do setor sem fins lucrativos se cristalizou.
Conclusão
Estamos vivendo tempos desafiadores. Com o fechamento de ONGs, um enorme volume de conhecimento será perdido, e recriar boa parte dele custará caro. Com a capacidade digital atual, é possível salvar grande parte desse conhecimento, indexá-lo e usá-lo para orientar programas futuros. As abordagens que delineamos aqui podem apoiar a transição de atividades sem fins lucrativos para outras organizações, empresas ou consultorias individuais que queiram continuar elementos dos programas encerrados. Já conseguimos imaginar um encerramento com abertura resultando em uma “Saída para a IA”, na qual a informação do programa encerrado é incorporada a conjuntos de dados para treinar futuras ferramentas de IA, tornando o conhecimento mais utilizável e acessível.
Abrir o conhecimento de programas e organizações sem fins lucrativos encerradas está em sintonia com o melhor da tradição do setor: beneficiar toda a sociedade.
OS AUTORES
Jim Fruchterman é fundador e CEO da Tech Matters.
Steve Francis é diretor de projetos da Terraso na Tech Matters.
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