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Uma bioeconomia para coevolução com a Amazônia

A biodiversidade e a riqueza cultural da floresta têm imenso potencial para o desenvolvimento econômico sustentável, mas é essencial praticá-lo de forma ética, inclusiva e respeitosa com as comunidades locais.

Por André Baniwa, Raizza Miranda, M. Carmen N. Belderrain, Paulo Nobre, Tereza C. B. Carvalho e Ismael Nobre.

A construção de uma bioeconomia na Amazônia que incorpore a cosmovisão dos povos indígenas é de suma importância para um desenvolvimento sustentável e equitativo na região. A biodiversidade e a riqueza cultural da floresta têm imenso potencial para o desenvolvimento econômico sustentável, mas é essencial praticá-lo de forma ética, inclusiva e respeitosa com as comunidades locais. Os conhecimentos ancestrais e a relação intrínseca que os povos indígenas possuem com o ambiente podem oferecer abordagens inovadoras e resilientes para enfrentar os desafios atuais.

A cosmovisão dos povos tradicionais é ligada por essência à sua relação harmoniosa e interdependente com a natureza. Suas práticas, saberes ancestrais e conexões com o meio ambiente são fundamentais para a preservação dos ecossistemas e a manutenção do equilíbrio ambiental. Ao incorporar essa visão holística na construção da bioeconomia, podemos garantir que as decisões e ações sejam tomadas considerando não apenas os aspectos econômicos, mas também os impactos sociais, ambientais e culturais.

Um dos pilares para o sucesso dessa empreitada é o empreendedorismo social. Essa abordagem busca criar soluções inovadoras para desafios socioambientais, promovendo o desenvolvimento de negócios que priorizem o bem-estar das comunidades locais e a preservação do meio ambiente. Ao envolver os povos indígenas nesse processo, suas perspectivas e conhecimentos podem contribuir significativamente para a concepção de empreendimentos mais eficazes e alinhados com os valores e necessidades locais.

É fundamental abrir espaço para o diálogo com as comunidades indígenas ao fomentar a bioeconomia local e para evitar a armadilha do colonialismo tecnológico. Historicamente, muitas iniciativas desenvolvimentistas ignoraram ou suprimiram os modos de vida e saberes tradicionais dos povos tradicionais, impondo “soluções” e práticas que não respeitavam suas culturas e valores. Isso resultou em impactos negativos relevantes e, em muitos casos, levou à degradação ambiental e à desintegração social.

 

Fazendo a transição

 

Ao transicionarmos da economia tradicional para a sustentável, vale destacar os potenciais econômicos da utilização dos recursos renováveis de base biológica, a denominada bioeconomia. Nesse modelo, há que estabelecer um mecanismo efetivo, que vá além da simples introdução de novas tecnologias. É necessário abordar a sustentabilidade de forma sistêmica, considerando os processos de transição e suas dinâmicas.

A bioeconomia emerge como uma solução para promover o desenvolvimento sustentável em contextos de alta biodiversidade, complexidade e diversidade cultural, como é o caso da Amazônia. É essencial, contudo, levar em conta uma abordagem para a geração de valor econômico que valorize as florestas em pé, os rios fluindo e os saberes tradicionais.

Na promoção do empreendedorismo local, devemos compreender adequadamente o contexto na qual a bioeconomia será desenvolvida e gerir essas organizações de forma a cumprir o propósito ao qual se destinam. A visão de mundo dos povos indígenas reconhece a interconexão com a Terra e seus elementos e ciclos. É a partir dessa cosmovisão que reconhece, inclusive, o elo com o mundo invisível e espiritual, frequentemente ignorado pela ciência, que os povos indígenas estabelecem normas e regras para o relacionamento com todos os seres.

Para promover a bioeconomia na Amazônia de maneira responsável, coerente e benéfica, é imperativo que nos indaguemos, à luz dos valores tradicionais, a respeito de três fatores cruciais – a saber, a sustentabilidade, ancestralidade e viabilidade técnica e socioeconômica.

A sustentabilidade com base nos valores ancestrais carrega em si uma visão indissociável da origem, sendo percebida de uma forma muito mais ampla e sistêmica, fruto dos entendimentos e aprendizados milenares por meio da interação com a natureza. Como escreveu Ailton Krenak, “a presença dos outros seres não apenas se soma à paisagem do lugar que habito, como modifica o mundo. Essa potência de se perceber pertencendo a um todo e podendo modificar o mundo poderia ser uma boa ideia de educação”.

Para que as organizações consigam entabular uma relação de benefício mútuo com o meio ambiente é necessário  que se restabeleçam como parte integrante da natureza. Esta visão verdadeiramente sistêmica dos povos indígenas deveria estar no centro de qualquer programa, possibilitando benefício mútuo entre a natureza e os seres humanos para uma sustentabilidade duradoura. Pois, como escreve Krenak, nas narrativas de mundo onde só o humano age, essa centralidade silencia todas as outras presenças”.

A noção de ancestralidade, a vivência a partir do sentimento de pertencer a uma realidade maior, é compartilhada pelos povos indígenas de geração em geração. No entanto, faz-se necessário torná-la visível dentro do contexto social. Os valores culturais tradicionais e sabedorias ancestrais são cada vez mais influenciados pelo mundo globalizante.

Autores indígenas abordam a necessidade da reconstrução e o fortalecimento dos vínculos com a ancestralidade. O conhecimento ancestral é base para futuros caminhos que visam inovações e oportunidades, possibilitando criar valores econômicos existentes e potenciais valores futuros.

A viabilidade do desenvolvimento de potencialidades econômicas locais depende de incorporar o conceito de auto-organização na estrutura dos empreendimentos sociais. Esse processo se baseia na ideia de que as iniciativas impulsionadas pelo empreendedorismo social estão inseridas em sistemas maiores, nos quais atores independentes interagem uns com os outros, experimentando, explorando, aprendendo e adaptando-se ao ambiente em constante mudança.

O futuro desses empreendimentos sociais será determinado pela capacidade de lidar com as tensões organizacionais da criação de valor social, ambiental e a geração de lucro – enquanto competem com empresas dominantes que buscam apenas a maximização do lucro. As estratégias para lidar com essas tensões surgem dos próprios conhecimentos ancestrais como fonte de inovação apoiada pela tecnologia e amparada por um conhecimento de herança milenar que fornecerá uma vantagem competitiva rara e difícil de imitar.

Nesse quadro, a interculturalidade desempenha um papel fundamental, ao reconhecer a diversidade cultural e valorizar as contribuições únicas de cada cultura, abrindo caminho para troca de experiências enriquecedoras e espaço para construção de uma sociedade mais inclusiva, plural e harmoniosa.

 

Iniciativas baseadas na cosmovisão indígena

 

A seguir, destacamos iniciativas vigentes na Amazônia que integram a cosmovisão indígena, respeitando práticas ritualísticas ancestrais.

O projeto Arte Baniwa, da Organização Indígena da Bacia do Içana (Oibi), alcançou importante marco ao se tornar a primeira iniciativa indígena a estabelecer relações empresariais em âmbito nacional. Esse projeto teve repercussões significativas na promoção e valorização da tradição milenar da cestaria de arumã.

Além do aspecto econômico, houve uma valorização do saber tradicional, que estava em risco de desaparecimento. Os resultados positivos animaram os idosos detentores do conhecimento a repassá-lo aos mais jovens, garantindo a preservação desse conhecimento.

A valorização da cestaria não apenas envolve as comunidades locais, mas também a sociedade em geral, pois quem compra os produtos contribui para a preservação dessa prática no contexto mais amplo. Além disso, o projeto elevou a autoestima das comunidades baniwas, permitindo um diálogo sobre o desenvolvimento sustentável da região do rio Negro, valorizando os potenciais naturais de forma responsável.

Através desses resultados práticos, a Oibi se fortaleceu, estabelecendo uma nova forma de interlocução com a sociedade, o governo e seus parceiros de trabalho. A mudança de perspectiva mostrou que a valorização das tradições e a sustentabilidade são complementares, incentivando o envolvimento ativo das comunidades no desenvolvimento positivo da região.

Outro exemplo é a iniciativa Amazônia 4.0, que propõe uma abordagem única e inovadora, ao integrar conhecimento tradicional, transmitido ao longo de gerações, e a utilização de tecnologias avançadas. No centro desse projeto está o respeito e a valorização das culturas e modos de vida das comunidades tradicionais. Por meio de um diálogo ativo com as comunidades, a Amazônia 4.0 busca ouvir suas vozes, reconhecer seus saberes ancestrais e integrá-los ao processo de desenvolvimento sustentável.

Dentro da iniciativa, os Laboratórios Criativos da Amazônia (LCAs), por exemplo, se valem de recursos como energia solar e de tecnologias digitais, incluindo o blockchain e a impressão 3D e indústria 4.0, para agregar valor à matéria-prima local e transformá-la em produtos de maior valor econômico.

Os projetos da Amazônia 4.0 comprometem-se com a produção sustentável em todas as etapas da cadeia produtiva, visando a conservação integral do bioma amazônico, entendido como um sistema vivo, diversificado e que precisa ser preservado, livre de desmatamento.

Entre outros empreendimentos têm como objetivo promover a valorização do conhecimento ancestral, destaca-se o Chocolate De Mendes, que une tradição, cultura dos povos da floresta e integridade socioambiental. Além disso, projetos como o Tucum e o Maniò funcionam como marketplaces para produtos indígenas, estimulando a autonomia e a geração de renda nas comunidades tradicionais.

Paralelamente, destacam-se também iniciativas que buscam desenvolver processos participativos para criar soluções sustentáveis, através do diálogo com povos e comunidades, como é o caso do Instituto Terroá, Nutex, Jackson Peixer e Projeto Saúde & Alegria.

A coevolução requer uma compreensão profunda dos ecossistemas e da interação dos seres humanos com eles. Pois, como Schwaninger e Groesser afirmam, é possível transformar significativamente um sistema ou até mesmo criar um novo sistema; no entanto, se as mudanças de paradigma não forem orientadas adequadamente por um processo de reflexão e autorreferência, elas podem resultar na involução do planeta.

A cosmovisão dos povos indígenas compreende a sustentabilidade como a interdependência entre seres que partilham do mesmo nicho socioeconômico e ambiental. Isso inclui a fauna, a flora, as águas, a terra, o ar e, bem entendido, a sociedade humana, repactuando seu papel de parte integrante na natureza, em relação simbiótica com ela.

 

NOTAS

1. Cf. Bugge MM, Hansen T, Klitkou A. “What is the bioeconomy? A review of the literature”. Sustain. 2016;8. doi:10.3390/su8070691

2. Cf. Dietz T, Börner J, Förster JJ, von Braun J. “Governance of the bioeconomy: A global comparative study of national bioeconomy strategies”. Sustain. 2018;10. doi:10.3390/su10093190 e  Gottinger A, Ladu L, Quitzow R. “Studying the transition towards a circular bioeconomy—a systematic literature review on transition studies and existing barriers”. Sustain. 2020;12: 1–27.  doi:10.3390/su12218990

3.  Cf. “Bioeconomia: o que é e como se aplica à Amazônia”. Disponível em https://www.wribrasil.org.br/noticias/bioeconomia-o-que-significa-e-como-se-aplica-amazonia. Acessado em 9.ago.23

4. A esse respeito, veja-se, por exemplo, entrevista da curadora Sandra Benites a Fernanda Simon em “Como a cosmovisão indígena pode contribuir na construção de uma sociedade mais sustentável”. Disponível em https://vogue.globo.com/Vogue-Negocios/noticia/2022/02/cosmovisao-indigena.html. Acessado em 9.ago.23

5. In Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

6. Espinosa A., Guzmán D. “Self-governance and symbiosis: A systemic approach to socio ecological systems resilience”. 2015; 1–17. Disponível em https://www.academia.edu/74635436/Self_governance_and_symbiosis_a_systemic_approach_to_Socio_Ecological_Systems_resilience. Acessado em 9.ago.23

7. Espinosa A., Duque C. “Complexity management and multi-scale governance: A case study in an Amazonian indigenous association”. Eur J Oper Res. 2017;268: 1006–1020. doi:10.1016/j.ejor.2017.07.049

8. Op. cit. p.

9. Munduruku D. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990). São Paulo: Edições Paulinas, 2012.

10. Baniwa A. F. Bem viver e viver bem: segundo o povo baniwa no noroeste amazônico brasileiro. Curitiba: UFPR, 2019.

11. Tapsell P, Woods C. “Social entrepreneurship and innovation: Self-organization in an indigenous context”. Entrep Reg Dev. 2010;22: 535–556. doi:10.1080/08985626.2010.488403

12.  Vázquez-Maguirre M., Portales L. “Profits and purpose: Organizational tensions in indigenous social enterprises”. Intang Cap. 2018;14: 604–618. doi:10.3926/ic.1208

13.  Kusumastuti R, Silalahi M, Asmara AY, Hardiyati R, Juwono V. Finding the context indigenous innovation in village enterprise knowledge structure: a topic modeling. J Innov Entrep. 2022;11. doi:10.1186/s13731-022-00220-9

14. Widjojo H, Gunawan S. “Indigenous Tradition: An Overlooked Encompassing-Factor in Social Entrepreneurship”. J Soc Entrep. 2020;11: 88–110. doi:10.1080/19420676.2019.1579752

15. Schwaninger M., Groesser S.N. “Operational closure and self-reference: On the logic of organizational change”. Syst Res Behav Sci. 2012;29: 342–367. doi:10.1002/sres.2111

16. Espinosa A., Duque C. Op cit.

17. Espinosa A., Guzmán D. Op.cit.

 

OS AUTORES

André Baniwa, é uma destacada liderança do povo Baniwa, com formação em Gestão Ambiental e Agrozootecnia. Atua como consultor em questões indígenas, defendendo e promovendo os direitos das comunidades indígenas. Seu trabalho engloba empreendedorismo, economia indígena, educação intercultural, gestão territorial, associativismo, sustentabilidade, patrimônio cultural e qualidade de vida das populações indígenas.

Raizza Miranda, mestranda em ambas as universidades ITA e Unifesp, dedica-se à pesquisa com perspectiva sistêmica, visando entender as interdependências entre partes e os impactos das decisões em todo o sistema.

M. Carmen N. Belderrain é Professora Titular do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), marcada por suas contribuições significativas nas áreas de Métodos de Estruturação de Problemas, Métodos Multicritérios de Apoio à Decisão, Dinâmica de Sistemas. Com um profundo compromisso em capacitar e disseminar o pensamento sistêmico como uma abordagem fundamental para abordar os complexos desafios da sociedade contemporânea.

Paulo Nobre é pesquisador no INPE, Coordenador do Modelo Brasileiro do Sistema Terrestre – BESM e do Projeto PIRATA. Sua experiência abrange a área de Geociência, com ênfase em Meteorologia e Oceanografia. Recebeu os títulos de Hidrógrafo Honorário e Amigo da Marinha, concedidos pela Marinha do Brasil.

Tereza C. B. Carvalho é professora da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (EPUSP) e professora visitante na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. É fundadora e coordenadora geral do LASSU (Laboratório de Sustentabilidade), e o CEDIR-USP (Centro de Descarte e Reuso de Resíduos de Informática). Recebeu diversos prêmios referentes à Inovação Tecnológica e Sustentabilidade.

Ismael Nobre é diretor executivo do Instituto Amazônia 4.0. Lidera o desenvolvimento de uma estrutura de bioeconomia inclusiva baseada em florestas em pé, comunidades locais capacitadas e impulsionadores de tecnologia.  



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