Caminhos para Belém: os desafios a uma transição energética justa
A Conferência do Clima dos Emirados Árabes colocou os combustíveis fósseis na mira de forma inédita; o financiamento para realizar o plano de descarbonização é o grande desafio a ser enfrentado até 2025
Por Cristiane Prizibisczki
O ano de 2024 nasceu sob a responsabilidade de iniciar o tão necessário processo de descarbonização da matriz energética em nível mundial, acordado por cerca de 200 países durante a 28ª Conferência do Clima da ONU (COP28), realizada entre 30 de novembro e 12 de dezembro do ano passado, nos Emirados Árabes.
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Apesar de não estabelecer um plano claro sobre como se dará a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis, tê-los colocado no centro do debate foi um ganho da COP 28, uma responsabilidade nunca antes assumida, nas 27 conferências anteriores. A partir disso, as tarefas que dominarão a agenda climática nos próximos anos são as negociações para um novo objetivo global de financiamento climático e a preparação para uma nova rodada de compromissos climáticos em cada nação.
Os avanços que podem vir da COP de 2024, a ser realizada em Baku, no Azerbaijão, serão fundamentais para o sucesso da Conferência que o Brasil vai sediar, em Belém, no ano que vem. Foi por esse motivo que a ministra brasileira do Meio Ambiente, Marina Silva, propôs o que chamou de “troica”, que seria o trabalho conjunto entre Dubai, Baku e Pará, na construção das bases de uma “transição energética justa, ordenada e equitativa”.
No caminho até Belém, haverá muitos desafios, o maior dos quais é o financiamento climático, debate postergado nos Emirados Árabes.
Um pouco de contexto
O chamado feito na COP 28 para a transição global que nos afaste de todos os combustíveis fósseis foi inédito. A queima dos combustíveis fósseis representa 87% das emissões globais de gases de efeito estufa, segundo a Agência Internacional de Energia, mas nem por isso ela recebeu a devida atenção na história das negociações climáticas globais.
Há dois anos, em Glasgow, os negociadores tiveram dificuldade em chegar a um acordo sobre a eliminação gradual do combustível fóssil mais sujo que existe, o carvão, cujas emissões estão associadas a um risco de mortalidade duas vezes maior do que as de partículas finas provenientes de outras fontes. Há três anos, os textos finais das conferências nem sequer mencionaram tais combustíveis.
Por isso, o chamado para a transição global sinaliza uma abertura por parte dos governos, talvez pressionados pelo contexto de temperaturas extremas em 2023, com os consequentes desastres climáticos registrados em todo mundo, apelos globais por respostas e a janela de ação cada vez mais estreita.
Além de reconhecer a necessidade de transicionar para energias renováveis, visando a neutralidade de carbono em todo o planeta até 2050, o Consenso dos Emirados Árabes Unidos – como ficou conhecido o documento final da cúpula – deixou explícito que esse processo deve ser justo, ordenado e equitativo.
O que o documento não define claramente é como a transição da matriz energética será feita. Dizer que o processo deve ser “justo” pressupõe a aplicação do princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas. Isto é, os países que historicamente construíram suas riquezas com base na exploração dos fósseis devem liderar esse processo. Mas isso não está explícito no papel.
O documento também trouxe o mérito de incluir os objetivos traçados pela Agência Internacional de Energia de triplicar a instalação de renováveis em nível global e dobrar a eficiência energética. No entanto, reconhece apenas genericamente a relevância das fontes de transição. Ao recomendar a promoção de tecnologias de captura e sequestro de carbono, que são custosas e, até hoje, não tiveram eficácia em grande escala comprovada, abre caminho para manter a licença de operação para termelétricas a combustíveis fósseis.
Faltam apenas seis anos para reduzir as emissões de gases estufa em 43%, no mundo inteiro, se quisermos cumprir a meta de aquecimento global em 1,5ºC, prevista no Acordo de Paris. Com as altas temperaturas registradas no último ano, o termômetro global também avançou alguns graus centígrados, e a média de aquecimento do planeta subiu para 1,3ºC, em comparação com a era pré-industrial.
Além disso, a Conferência do Clima de Dubai estabeleceu o novo pano de fundo para a COP30, que ocorrerá no Brasil. Nela, os países signatários do Acordo de Paris precisarão apresentar suas novas metas de redução de emissões, a chamada Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês), levando em conta o cenário de descarbonização.
Em resumo, temos uma meta de fazer uma transição justa e equitativa, mas sem definir claramente como ela se dará. De todas as ausências de definição no Consenso dos EAU, a mais gritante é determinar quem financiará esse processo, e como. É um tema espinhoso, que foi protelado nas COPs tanto quanto a eliminação dos combustíveis fósseis. Novamente, ele foi jogado para adiante e será o tema central da COP 29.
COP 29 – Financiamento no centro dos debates
No decorrer deste ano, será preciso aumentar os compromissos de financiamento, redirecionar o capital para a ação climática, identificar novas fontes e continuar reformando o sistema financeiro internacional.
Estamos falando de mudar a escala de bilhões, que não tem sido cumprida, para trilhões em financiamento, com uma profunda reforma nos bancos multilaterais. Colocando em números, para manter os objetivos climáticos globais ao alcance, o mundo precisa chegar a US$ 4,3 trilhões em fluxos anuais de financiamento relacionado ao clima até 2030. O cenário não é auspicioso se considerarmos que, até hoje, a meta de US$100 bilhões anuais, acordada em 2009 pelas partes, não conseguiu ser cumprida.
Certo ar de esperança soprou dos anúncios na COP28, com bilhões de dólares prometidos para reforçar a resiliência e apoiar a ação climática em países em desenvolvimento. Mas está longe de ser suficiente, avaliaram diferentes organizações ao final da cúpula.
Além da resistência dos países ricos em abrir o bolso, os pobres sofrem com camadas extras de dificuldade. Como bem colocou a ministra de Meio Ambiente da Colômbia, Susana Muhamad, durante a COP28, mesmo que países pobres queiram abandonar os combustíveis fósseis, as condições hoje existentes no sistema bancário internacional não são favoráveis a eles: países ricos pegam empréstimos a juros de 5%, já os pobres amargam taxas de 30%.
“Além disso, quando o meu presidente declara que vai parar de exportar carvão, na mesma hora o peso desvaloriza e a gente recebe uma ligação das agências de rating dizendo que nossa nota vai cair e nosso crédito vai ficar mais caro no mercado internacional”, disse ela no evento.
Isto é, falar em “transição dos combustíveis fósseis” para países em desenvolvimento demanda uma forte garantia de que haja meios robustos de implementação.
Tais meios serão essenciais para países como o Suriname, por exemplo, que está começando a explorar petróleo agora. Essas nações precisam de apoio para implementar a mudança, precisam ver o dinheiro na mesa e necessitam conhecer os planos que as nações que mais causaram o problema têm para elas.
Belém, 2025: a conferência das NDCs
A inflexão das emissões globais somente acontecerá com a implementação de ações para reduzir o consumo de combustíveis fósseis, anunciadas nas metas nacionais de mitigação de emissões que cada país deve apresentar, em suas NDCs. No jogo atual, a lição de casa de cada país é livre e autodeterminada, ficando de fora da equação a contribuição histórica das nações para o aquecimento planetário.
Segundo recente análise da organização Climate Action Tracker, se considerados os compromissos climáticos assumidos pelas partes até o momento, cujo prazo é até 2030, o aumento da temperatura do planeta chegará a 2,5ºC até o final do século, podendo atingir 3ºC.
Esse quadro tem que começar a mudar até a COP29, em Baku, à medida que os governos iniciem a apresentação de suas metas para o novo ciclo previsto no Acordo de Paris, que vai até 2035. Tais metas deverão ser submetidas à ONU, o mais tardar, em 2025, quando a Conferência será realizada em solo brasileiro.
Nesse contexto, o Brasil tem uma responsabilidade extra. Foi dele a proposta de incluir que a transição energética tenha início pelas nações ricas, o que pressupõe a adoção de mecanismos novos na dinâmica climática internacional.
A chamada “transição justa, ordenada e equitativa”, como a proposta brasileira foi traduzida, deve recolocar a desigualdade do consumo energético no centro das discussões. O caminho para a COP30 envolve tanto a estruturação de políticas domésticas bottom-up, equacionando o acesso à energia e a processos inclusivos no planejamento energético local, quanto top-down, com ações concretas para a redução da demanda de combustíveis fósseis para a indústria, transportes e geração de eletricidade, especialmente nos países de maior consumo.
Nesse processo, e devido às suas capacidades e características energéticas, o Brasil poderá liderar pelo exemplo. É preciso celebrar tanto o compromisso de desmatamento zero, reassumido pelo atual Governo Lula na COP28 – as mudanças no uso do solo, incluindo desmatamento e agropecuária, respondem por 75% das emissões brasileiras – como o crescimento doméstico da geração de energia elétrica a partir de fontes renováveis.
Nesse quadro, torna-se difícil de compreender a intenção brasileira de entrar no clube dos lobistas do petróleo, o grupo expandido da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep+), anunciada durante a Conferência em Dubai, e a realização do leilão de blocos de petróleo pela Agência Nacional de Petróleo (ANP), apenas algumas horas após o encerramento da cúpula. Desses anúncios mina uma atitude contraditória, vinda do país que se pretende lançar como líder global no processo de transição energética. Para que e por quem será usado esse petróleo que o Brasil pretende continuar produzindo?
Ademais, antes que possa sediar uma COP calcada na missão de manter o 1,5ºC, o Brasil tem que se mostrar capaz de dirimir as disparidades de consumo dentro de seu próprio território, incluindo a região que será palco da 30ª Conferência do Clima.
A Amazônia é um dos maiores exemplos de regiões destinadas à exploração de recursos naturais para exportação, ao mesmo tempo que a população residente tem baixa renda e condições precárias de acesso a infraestruturas fundamentais. Na Amazônia Legal, cerca de 1 milhão de pessoas ainda vivem sem acesso à energia elétrica.
O resultado da COP28, realizada em Dubai em dezembro passado, foi forte em sinais, mas fraco na substância. Isso significa que o governo brasileiro precisa assumir a liderança se, junto com o Azerbaijão, quiser de fato concretizar o que chamou de “troica”.
A transição para um futuro inteligente em termos climáticos corre o risco de ter sido apenas uma miragem no deserto, se as nações não conseguirem transpor os desafios que ainda se apresentam. O caminho a ser percorrido nestes próximos dois anos vai dizer se seremos bem-sucedidos nesse processo ou não.
A AUTORA
Cristiane Prizibisczki é jornalista especializada em comunicação socioambiental. Graduada em jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina-PR, é former fellow da Universidade de Cambridge-Reino Unido, onde desenvolveu pesquisa sobre a comunicação das mudanças climáticas. Escreve para ((o))eco.