Saúde

Liderança para um amanhã saudável

A liderança em saúde pública precisa de novas competências para orientar as mudanças necessárias à melhoria do bem-estar humano

Por Claire Chaumont e Tim McDonald

Liderança na saúde pública
Ilustração de Carolina Gamon

E m uma esquina de Londres está a bomba d’água da Broad Street que, segundo hipótese levantada pelo médico John Snow em 1854, seria a fonte de um surto de cólera que devastava a cidade. Sem que Snow pudesse imaginar, sua tese deu origem ao campo moderno da epidemiologia.

Hoje, a epidemiologia é um pilar da educação em saúde pública, grande responsável pelo sucesso extraordinário da área na prevenção e no combate a doenças. No entanto, as competências tradicionais ensinadas nas escolas de saúde pública, como bioestatística e administração de serviços de saúde, são limitadas para enfrentar ameaças como novos patógenos, o impacto das mudanças climáticas na saúde e a influência das grandes corporações globais. Assim como no tempo de Snow, é necessário que os líderes em saúde pública ampliem seu leque de habilidades.

Nos dias atuais, os líderes lidam com um triplo fardo: o aumento de doenças não transmissíveis, o surgimento de novas doenças infecciosas e a amplificação dos problemas de saúde pública relacionados às mudanças climáticas. Esses fatores, em conjunto, tornam mais complexos o desenho e a reforma dos sistemas de saúde.

É preciso também enfrentar um desafio intersetorial: alinhar forças sociais para melhorar o bem-estar humano. Embora os determinantes sociais da saúde – como educação, habitação e políticas macroeconômicas – sempre tenham desempenhado um papel significativo na saúde individual e populacional, nossa compreensão a respeito deles se expandiu nas últimas décadas. A pandemia de covid-19, em particular, revelou como emprego, educação, habitação, cuidado infantil, comércio global e economia influenciam a saúde e são por ela influenciados. Hoje, a saúde deve ser entendida como parte de um nexo mais amplo de bem-estar e segurança humana.

O desafio intersetorial, por sua vez, envolve questões de governança. Uma rede cada vez maior de agentes afeta os sistemas que moldam a saúde pública. Em Estados democráticos, governos precisam colaborar com atores não governamentais para implementar políticas de saúde. No nível internacional, Estados soberanos devem cooperar cooperar entre si para resolver problemas de saúde domésticos. Essas questões tornam-se ainda mais complicadas em uma era de desinformação impulsionada pela internet, em que a confiança nas instituições está em declínio, a credibilidade da ciência é questionada e as redes sociais e o surgimento de novas tecnologias, incluindo a inteligência artificial, obscurecem nossa compreensão da verdade.

Com base nos treinamentos que realizamos para líderes em saúde pública, em nossa pesquisa sobre sistemas de saúde e na experiência de liderança, acreditamos que a educação e a prática em saúde pública devem ser reformadas para ajudar seus líderes a responderem a uma era cada vez mais complexa.

 

Mudanças de mentalidade para a saúde pública

A saúde pública é tipicamente definida por seu nível de análise. Diferente da medicina, que foca no indivíduo, a saúde pública se interessa pela população. No entanto, o campo da saúde pública, pelo menos nos Estados Unidos, continua dominado por médicos treinados para pensar no nível individual, em vez de no populacional. Por exemplo, nos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, todos os diretores, com exceção de um, receberam sua formação inicial em medicina. Embora tragam experiências e perspectivas diversas, a origem comum de sua formação pode levar a um foco excessivo em fatores de risco biomédicos e de estilo de vida, em detrimento dos determinantes sociais mais amplos da saúde e das doenças. 

Além disso, profissionais de saúde pública com frequência enfrentam dificuldades em lidar com o papel da política na formulação de diretrizes públicas. Enquanto outros atores de políticas públicas consideram parte de seu trabalho envolver-se em processos com uma carga política, profissionais de saúde pública em geral relutam em fazê-lo, temendo que isso comprometa sua legitimidade científica. Essa tensão cria uma armadilha: concentrar-se apenas na ciência pode minar o impacto da saúde pública em problemas vitais, enquanto envolver-se na política pode comprometer sua credibilidade científica.

Para lidar com essas questões, o campo da saúde pública deve adotar três mudanças de mentalidade. A primeira é um deslocamento em direção a análises multidisciplinares e multiníveis, para compreender melhor a natureza complexa e intersetorial dos desafios na área. A segunda é ampliar sua perspectiva de um desenho de políticas fragmentado para um desenho de sistemas mais amplo, abrangendo os setores governamental, sem fins lucrativos e privado. A terceira mudança é uma maior ênfase na implementação de políticas, incluindo como identificar colaboradores potenciais e apoiar partes interessadas que possam ser afetadas de forma negativa pelas mudanças.

Novas competências

Para promover essas mudanças de perspectiva, educadores em saúde pública devem incutir em seus estudantes um conjunto ampliado de competências. Além disso, instituições e governos precisam fornecer as estruturas de governança e os incentivos adequados para que profissionais de saúde pública exerçam essas competências.

Responsabilidade social | Os líderes devem assumir sua responsabilidade social cada vez maior e comprometer-se a enfrentar influências na saúde pública além de seu escopo imediato. Por exemplo, defender políticas voltadas à saúde animal pode ser decisivo no combate à resistência microbiana humana, já que a maior parte do uso de antibióticos ocorre em animais, não em humanos. Ao expandir sua esfera de atuação, os líderes podem gerar um impacto mais amplo no longo prazo. 

Visão intersetorial | Líderes em saúde pública precisam cada vez mais olhar além de seu escopo formal de responsabilidade para identificar interconexões entre sistemas. Essa habilidade requer conhecimento de como outros setores operam, do papel que desempenham na promoção da saúde pública e de como persuadir líderes desses setores a agir em prol de interesses compartilhados. Quantos líderes em saúde pública hoje, por exemplo, compreendem os princípios-chave do urbanismo, da agricultura, do comércio ou de big data – essenciais para formular políticas que tratem da poluição do ar, combatam a obesidade ou enfrentem a resistência a vacinas?

Sabedoria sistêmica | A liderança intersetorial exige uma compreensão de como os sistemas funcionam para alinhá-los aos objetivos de políticas públicas. Modelos de governança podem ser projetados para incentivar essa sabedoria. O caso das mortes no trânsito, por exemplo, é um problema que requer contribuições de múltiplos setores, como saúde, transporte, urbanismo e segurança pública. Para quebrar barreiras entre os diversos setores, alguns países adotaram um modelo de “par entre iguais”, no qual um ministério ou agência é encarregado de facilitar a colaboração com outras instituições. Uma visão sistêmica mostra como cada setor afeta as preocupações centrais de outros: como a educação e a habitação estável apoiam a saúde pública e como a saúde, por sua vez, permite que as pessoas aprendam, trabalhem e mantenham sua moradia.

Conforto com a incerteza | Epidemias recentes, como zika, mpox e covid-19, mostraram que decisões importantes muitas vezes precisam ser tomadas em condições de incerteza. Líderes em saúde pública enfrentam questões como: implementar vacinas ou esperar por dados adicionais de segurança; recomendar o uso de máscaras ao público ou mantê-las apenas para profissionais de saúde; e testar toda a população para identificar infecção ou apenas os mais vulneráveis. Com frequência, essas decisões difíceis são tomadas com evidências científicas limitadas. 

Uma abordagem promissora é o uso de ferramentas analíticas baseadas no conceito de incerteza profunda. Essas ferramentas buscam desenvolver políticas sólidas e adaptáveis, garantindo que possam funcionar bem independentemente de como o futuro se desenrole. Alternativas como planejamento baseado em capacidades, modelagem exploratória expansiva e tomada de decisão robusta – que prepara para uma ampla gama de futuros possíveis em vez de otimizar para um conjunto estreito de possibilidades – são fundamentais em uma era de constantes surpresas.

Domínio da gestão de mudança | É importante que líderes em saúde pública identifiquem os atores mais relevantes e pessoas em posição de autoridade para tomar ações necessárias, e como persuadi-las a avançar com políticas de interesse comum. O aumento do investimento em serviços de saúde, por exemplo, pode levar a uma maior participação na economia, alinhando os interesses de líderes médicos e econômicos. Outra habilidade essencial para líderes é ajudar a gerenciar perdas. Considere o caso do consumo de álcool: reduzi-lo melhora a saúde das pessoas, mas também pode afetar pequenos produtores e distribuidores de bebidas alcoólicas, com o potencial para desestabilizar economias locais.

Foco na implementação | Por fim, líderes em saúde pública precisam manter sua motivação desde a concepção de políticas até o impacto, enfrentando inclusive a monotonia da implementação. Ferramentas voltadas para métodos de execução, como o Manual de implementação da Organização Mundial da Saúde ou a Adaptação Iterativa Orientada por Problemas (PDIA, na sigla em inglês) da Harvard Kennedy School, oferecem abordagens sistemáticas para lidar com questões complexas.

Essas competências podem ser desenvolvidas tanto em líderes emergentes como em líderes experientes em saúde pública. Exemplos estão surgindo ao redor do mundo. Na Europa, a Sciana Network foca no pensamento sistêmico e no trabalho interdisciplinar. Nos EUA, a Escola de Saúde Pública Harvard T. H. Chan tem um currículo de doutorado em saúde pública que se concentra na liderança. Na América Latina, centros focados na implementação de políticas de saúde foram abertos na Argentina e no México.

A epidemiologia é importante, mas mudar corações e mentes também é essencial para a saúde pública. Afinal, John Snow não apenas mostrou às autoridades a origem do surto de cólera – ele também teve de convencer os líderes e a população a mudarem sua perspectiva sobre os fatores que impulsionavam a epidemia. Os líderes em saúde pública do futuro devem olhar para além de suas áreas de especialização, engajar-se uns com os outros e assumir riscos para enfrentar desafios complexos, mas vitais, a fim de fazer o mundo avançar. 

 

OS AUTORES

Claire Chaumont é consultora independente baseada na Califórnia, especializada em políticas de saúde pública, liderança e governança. 

Tim McDonald é pesquisador associado de políticas no Rand, onde é co-coordenador da iniciativa Systems Transitions Applied Research (Star).

 

Leia também: Soluções naturais para a pobreza menstrual

Mantenedores Institucionais

Apoio institucional