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Em defesa de um altruísmo efusivo

Por Asha Curran

(Ilustração por iStock/akinbostanci)

Devido à divisão, à polarização e a outros desafios sociais e ambientais, é tentador, à medida que olhamos para o futuro, nos desesperarmos. Mas a esperança é uma força poderosa, e não só no Terceiro Setor. Por que mantemos a esperança e o otimismo apesar das dificuldades contínuas que enfrentamos hoje em dia e certamente enfrentaremos no futuro? Acredito que a resposta seja simples. As pessoas têm esperança porque elas, fundamentalmente, acreditam – precisam acreditar – que somos interligados e interdependentes, e que temos potencial para construir juntos um presente e um futuro mais promissores, seguros e significativos.

E de todos os valores que fomentam um sentido de interconectividade, nenhum é mais universal e poderoso do que a generosidade: doar como expressão de inter-relação, solidariedade e reciprocidade – não como manifestação benevolente daqueles que têm diante dos despossuídos –, como algo que está no cerne das práticas, dos relacionamentos e dos valores de alguém. Espero que como setor e comunidade global nós possamos adotar um altruísmo efusivo, fazendo disso uma prática sincera, alegre, liderada por pessoas e focada na comunidade e enraizada em nossa capacidade de cuidarmos uns dos outros.

O altruísmo efusivo – ou o que nós na GivingTuesday chamamos de generosidade radical – é a simples ideia de que o bem-estar de um vizinho ou de um estranho é tão importante quanto o dos nossos entes queridos, e que nossas atitudes cotidianas mais prosaicas podem impactar de maneira positiva as vidas dos demais, criando uma mudança de comportamento e até uma mudança sistêmica. É um movimento de muitos, não de alguns, e seu poder advém de uma visão comum que busca melhorar a vida das pessoas agora e garantir um futuro melhor para todos; envolve o desenvolvimento de práticas e normas orientadas pela generosidade, bem como a celebração das doações que ocorrem abundantemente ao redor do mundo – ainda que não da forma como estamos acostumados ou que usamos para criar narrativas no Terceiro Setor.

 

Doar envolve mais do que dinheiro

 

As doações financeiras são importantes e, todos os anos, no Dia de Doar (Giving Tuesday), testemunhamos uma enxurrada de apoio essencial para o trabalho de organizações sem fins lucrativos. Isso é especialmente relevante nos dias atuais, com as doações individuais entrando em declínio nos Estados Unidos no momento em que a necessidade do apoio financeiro é tão significativa. Contudo, a generosidade não é expressa somente pela doação de dinheiro para essas organizações, assim como a expressão do amor não é feita apenas de presentes materiais. A generosidade é um valor dotado de incontáveis manifestações: oferecer apoio, tempo, defesa, orientação, atenção, presença e competências – qualquer coisa que possa ser ofertada em prol de outrem.

Essas são as atitudes que as pessoas tomam diariamente e que fazem a diferença na vida dos demais e no bem-estar das comunidades. Mesmo coisas pequenas que tomam pouco tempo – contar para alguém que você está pensando nele, garantir que um amigo doente tenha o apoio do qual precisa, ou colocar um vaso de planta na porta da casa de um novo vizinho – são parte importante da generosidade. Esses gestos cheios de zelo não aparecem nos dados oficiais, mas produzem um efeito tangível na vida das pessoas e da comunidade às quais pertencem.

Quando olhamos para doações considerando essa estrutura mais ampla, vemos que a generosidade está prosperando. O relatório de 2021 sobre doações globais GivingTuesday Data Commons Research mostrou que as pessoas se encontram alta e consistentemente motivadas a doar, e que as doações acontecem de diversas maneiras, indo muito além das doações monetárias. Na verdade, quase todo mundo doa de alguma forma, e a grande maioria das pessoas o faz repetidamente (85% dos entrevistados em todo o mundo fizeram doações, mas apenas 5% das pessoas doaram somente dinheiro).

Ver a generosidade no reduzido contexto das doações monetárias para organizações sem fins lucrativos engana e limita nossa imaginação, e é contraproducente mesmo até para os interessados apenas em subverter as tendências das doações, uma vez que faz da doação algo transacional, hierárquico, frio e entediante, transferindo poder e agência para poucos – os “especialistas” que decidem qual doação é boa ou ruim, qual é eficaz ou não, qual é baseada em dados e não “emocional” –, e afastando-a da grande maioria, daquelas pessoas que têm raízes profundas com suas comunidades e que sabem do que elas precisam. Ademais, prejudica a agência dessas comunidades vibrantes, cada uma com seus próprios problemas e soluções, aptidões e tradições no que se refere à doação.

Assim, quando nos dizem que o número de lares que fazem doações nos Estados Unidos está diminuindo, é fácil, ainda que totalmente injusto, concluir que a generosidade das pessoas está diminuindo. No entanto, essa observação míope não poderia estar mais incorreta.

Aprendemos muitas lições sobre o que inspira comportamentos generosos e como eles são predominantes, e valendo-se disso identifiquei diversas ações primordiais capazes de promover o altruísmo efusivo, prática que vai nos ajudar a criar um futuro imbuído de nossa humanidade compartilhada e da crença de que a generosidade é essencial para a condição humana.

 

Os requisitos do altruísmo efetivo

 

Agência. A possibilidade de um futuro próspero e humano depende de as pessoas terem poder para promover mudanças em sua própria vida e comunidades. Isso significa que não podemos deixar nas mãos de alguns poucos decisões que envolvam as necessidades dos demais. Tampouco podemos olhar para a generosidade como uma interação simplista e binária entre aqueles que têm e aqueles que necessitam, uma visão distorcida que priva milhões de pessoas da possibilidade de serem doadoras, reduzindo-as a sujeitos anônimos nos projetos de outrem. Somente quando as pessoas têm controle sobre como, quando e onde empregam seus ativos – monetários ou não – elas podem usar suas profundas raízes locais, seu conhecimento e sua aptidão para criar soluções; podem passar a ter sua própria voz e perceber sua capacidade de liderar e promover mudanças; e podem se orgulhar do potencial ilimitado de seu engajamento cívico. O altruísmo efusivo coloca o poder da filantropia na mão do maior número de pessoas possível.

Celebração. Embora a quantidade de sofrimento e demanda seja genuinamente avassaladora, uma doação não precisa ser solene. Quanto mais alegre for, mais inspiradora, coletiva e envolvente ela pode ser, e mais pessoas vão se sentir encorajadas a fazer parte daquilo e a doar o que puderem. Diante do sofrimento e da necessidade do mundo, o que há para ser celebrado? Nossa capacidade de juntos fazermos a diferença. Um dos motivos para chamarmos esse tipo de doação de altruísmo efusivo é o fato de vermos a doação como uma celebração – de cada um de nós, de resiliência e de possibilidade – irrestrita.

Coletividade. Embora seja essencial que indivíduos tenham agência, o que torna a generosidade algo poderoso e até mágico, em certo sentido, é o fato de a fazermos em conjunto. Sistemas distribuídos e interligados de pessoas refletem alguns dos sistemas mais funcionais, belos e misteriosos da natureza – fungos, colônias de formigas, a tapeçaria extraordinária das raízes das árvores e o murmúrio dos estorninhos. Em cada um desses sistemas, há algo a respeito do todo que é maior do que a soma das partes. Os cientistas chamam isso de “emergência”: a ideia de que alguma coisa acontece entre as partes de um sistema que, por sua vez, é peça crucial daquilo que o todo realiza. Pessoas trabalhando coletivamente em virtude de sua própria generosidade para melhorar o presente e o futuro é parte essencial do altruísmo efusivo.

Imaginação compartilhada. Movimentos sociais baseiam-se em uma paisagem imaginativa na qual seus participantes vivem juntos, evocando um mundo que ainda não existe e trabalhando para construí-lo de maneira coletiva. Em seu livro Radical Imagination, Max Haiven e Alex Khasnabish escrevem que “a imaginação radical (…) tem a ver com transformar nossa vida e nossos relacionamentos sociais, transformar aquilo e aqueles que julgamos valiosos, nos transformar. Fazemos isso construindo estruturas e instituições sociais alternativas em nossa própria vida… A imaginação radical existe apenas em práticas coletivas”. A imaginação compartilhada e o altruísmo efusivo são inextricáveis. Ambos dependem do coletivo, imaginam um mundo melhor graças à humanidade, à responsabilidade e à agência comuns, e olham para o passado, o presente e o futuro não como períodos desconexos no tempo, mas como profundamente interligados.

A forma como cada um de nós expressa nossa generosidade não é algo para ser julgado ou comparado. Toda expressão de generosidade é uma manifestação do instinto humano que busca ser parte de algo maior do que si mesmo, de contribuir para o bem. Todos nós, tanto dentro quanto fora do Terceiro Setor, devemos começar a olhar para a generosidade de uma maneira diferente e holística, algo sempre abundante que surge de muitas formas e é tão fundamental para a condição humana quanto o amor, a amizade ou qualquer um de nossos bens mais preciosos. Temos a oportunidade de reescrever a história da generosidade e de ajudar mais e mais pessoas a se verem desempenhando um papel essencial no fortalecimento de suas comunidades e fazendo parte do bem social.

O mundo que queremos ver amanhã, em dez e até em cem anos, está sendo construído agora por todos nós nos bilhões de pequenas atitudes que tomamos todos os dias. Vamos nos lembrar de que um futuro melhor, mais seguro e mais justo depende não apenas de cada um de nós, mas de cada um de nós juntos. Que essa seja nossa principal fonte de esperança e otimismo para o presente e para o futuro.

 

A AUTORA

Asha Curran é CEO da GivingTuesday. Além disso, é presidente do conselho do Guardian.org, membro do Center on Philanthropy and Civil Society da Stanford University e professora da Social Innovation and Change Initiative da Harvard Kennedy School. De 2019 a 2022, foi indicada para a The Nonprofit Times’ Top Fifty Power and Influence list.



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