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Cultivando uma filantropia climática justa

Como o financiamento e as políticas climáticas excluem aqueles que sofrem os piores efeitos das mudanças do clima e de que forma o investimento em pequenos agricultores pode ajudar na correção desse desvio.

Por Claire McGuinness e Matthew Forti

agricultora de Nyamagabe, em Ruanda
Dusabimana Consolee, uma agricultora de Nyamagabe, em Ruanda, onde administra um viveiro que produz dezenas de milhares de mudas de árvores para sua comunidade que luta contra o desmatamento. Foto: cortesia do One Acre Fund.

Uma potente combinação de oportunidades inexploradas e injustiça climática está colocando em uma situação difícil os pequenos agricultores do mundo todo. Esses produtores, que tradicionalmente cultivam áreas de até 20 mil metros quadrados e somam 50 milhões de pessoas apenas na África Subsaariana, enfrentam alguns dos efeitos mais agudos das mudanças climáticas. Uma vez que não há irrigação constante do solo, a maior parte das terras é cultivada com uma técnica agrícola que depende das chuvas das monções para prosperar. Isso  expõe os produtores a secas e tempestades capazes de acabar com suas plantações, o que significa comida insuficiente para o sustento de suas famílias ao longo do ano. Ainda assim, nenhum dos financiamentos que a comunidade global tem dedicado ao combate ao aquecimento global é direcionado a pequenos agricultores, que pouco aparecem em conversas políticas de alto nível sobre as prioridades climáticas. Embora quase não tenham ajudado a criar os problemas que ameaçam seus meios de subsistência, os pequenos agricultores são deixados por conta própria para enfrentá-los. 

Há três razões principais para colocar os pequenos produtores agrícolas à frente e no centro da agenda climática global. Primeiro, apoiar a adaptação climática (práticas que ajudam as pessoas a se ajustarem aos efeitos das mudanças climáticas) para pequenos proprietários é uma maneira incrivelmente eficiente de melhorar a pobreza global. Isso é ainda mais relevante em um momento em que o planeta está atrasado em vários Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), incluindo aqueles relacionados à redução da pobreza e à segurança alimentar. Uma vez que os agricultores representam até 80% das pessoas que enfrentam a fome e a pobreza, fortalecer sua resiliência a impactos que reduzem renda e o suprimento de alimentos é um dos melhores investimentos para alcançar os ODS.

Em segundo lugar, há um enorme e inexplorado potencial para a mitigação climática (esforços para reduzir ou prevenir as emissões de gases de efeito estufa), dado o escopo das terras que os pequenos proprietários administram no mundo. Algumas estimativas indicam que até 40% das terras agrícolas globais são administradas por pequenos proprietários. Estas famílias de agricultores podem desempenhar um papel significativo na mitigação das mudanças climáticas se estiverem equipadas com ferramentas para maximizar os ganhos ambientais que suas terras podem proporcionar.

Finalmente, há um imperativo moral de apoiar as pessoas que têm a menor responsabilidade e a maior vulnerabilidade diante da crise climática. Mesmo que o investimento em pequenos agricultores não tivesse a enorme oportunidade de mitigação que de fato oferece, aqueles de nós do Ocidente, que impulsionam as mudanças climáticas, ainda teríamos o dever ético de ampará-los no alívio dos desafios que criamos para eles, ajudando a obter a justiça climática. 

A experiência de Enife Matemba fornece um exemplo pungente desta necessidade de investir nos pequenos agricultores. Matemba trabalha com a organização onde atuamos, a One Acre Fund, que ajuda mais de 1,5 milhão de famílias de pequenos agricultores na África a melhorar suas colheitas, rendimentos e resiliência. O sítio de Matemba em Mulanje, no Malawi, foi atingido pelo ciclone Ana no início de 2022. A região ficou inundada por três dias, e metade de suas terras foi soterrada com areia e pedregulhos trazidos pelas fortes chuvas. O dano foi irreparável, o que a deixou sem uma fonte de renda suficiente para ela e sua família. “Depois das chuvas fortes, quando fui às minhas plantações, quase a metade já havia desaparecido. E o resto, por causa do alagamento, estava amarelando e com todas as folhas rasgadas… minha colheita foi pequena, então não recebi nada, [e] o preço do milho está muito alto agora porque as pessoas não colheram nesta área.” À medida que as mudanças climáticas continuam avançando, eventos relacionados ao clima que destroem os meios de subsistência como o ciclone Ana se tornarão mais comuns. 

agricultora Enife Matemba em sua plantação danificada pela areia
A agricultora Enife Matemba em sua plantação danificada pela areia. Foto: cortesia do One Acre Fund.

Apesar do argumento claro para apoiá-los, os pequenos produtores são virtualmente excluídos do financiamento e das políticas climáticas globais e apenas 1,7% das centenas de bilhões de dólares alocados para o financiamento climático global vai para pequenos proprietários, segundo um estudo recente do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (FIDA). Esta falta de capital tem efeitos reais e definitivos ​​na vida dos agricultores. Um choque climático pode significar uma perda total da colheita de um agricultor, dando início a  meses de poucas refeições para as famílias e uma redução severa de renda que impossibilita até o pagamento de coisas como taxas escolares.

A magnitude do problema torna necessárias filantropia e ajuda em escala. Recompensar de maneira eficiente os agricultores pela adoção de soluções de mitigação climática baseadas na natureza – incluindo agrossilvicultura, agricultura regenerativa e mitigação baseada em sítios e famílias – pode fornecer a eles os meios para atender às suas necessidades básicas enquanto adaptam ainda mais suas terras e práticas às mudanças climáticas.

Agrossilvicultura de Pequeno Porte

Uma oportunidade de alto potencial é o plantio de árvores liderado por pequenos produtores. O One Acre Fund está desenvolvendo um programa agroflorestal escalável para levar alguns dos agricultores mais pobres do planeta a plantar um bilhão de árvores na próxima década. Isso significaria não apenas sequestrar carbono, mas também outros benefícios ambientais localizados para a saúde do solo, prevenção da erosão e biodiversidade. Até o final de 2022, teremos apoiado cumulativamente pequenos agricultores no plantio de mais de 140 milhões de árvores em nove países. 

Françoise Dusabima, uma agricultora ruandesa que perdeu várias colheitas devido a deslizamentos de terra relacionados ao clima, trabalhou com o One Acre Fund três anos atrás para plantar 22 árvores ao redor de sua terra para evitar a erosão. “Agora, quando planto, me sinto segura”, diz ela. “Sei que a cada estação vou colher alguma coisa e não estou preocupada com deslizamentos de terra levando minhas colheitas.”

agricultora Francoise Dusabima ao lado de uma de suas árvores
A agricultora Francoise Dusabima ao lado de uma de suas árvores. Foto: cortesia do One Acre Fund.

No entanto, embora seja útil fornecer aos agricultores recursos diretos para o plantio de árvores, o financiamento tradicional dos doadores não será suficiente para fornecer árvores a todos os 50 milhões de produtores rurais na África. Os mercados globais de carbono, que permitem aos emissores de carbono comprar créditos “compensados” de grupos que reduziram os níveis de carbono na atmosfera, podem ajudar a preencher essa lacuna pelo incentivo à mitigação e compensando as pessoas por práticas de combate ao carbono como o plantio de árvores. O desafio é que os mercados de carbono não foram projetados para pessoas em situação de pobreza. A maioria é pensada para grupos que possuem títulos de propriedade e administram milhares de árvores em grandes extensões de terra — essa escala e regularidade tornam as árvores fáceis de serem contadas e monitoradas com eficiência. Os pequenos agricultores, por outro lado, podem não ter um título formal de terra e plantar apenas uma ou duas dúzias de árvores por ano de forma não contígua em suas terras. Eles também podem morar em uma localidade remota que seria dispendiosa para as equipes de medição e avaliação alcançarem. De acordo com os padrões de mercado de carbono existentes, eles seriam inelegíveis ou representariam custos maiores para serem inscritos em um projeto de carbono certificado e, portanto, sem os meios para investir em sua própria resiliência. 

Para que os pequenos produtores tenham acesso aos mercados de carbono, os filantropos precisam modelar a tomada de decisões climáticas e investir em infraestrutura. Isso inclui investimentos na melhoria de serviços remotos, tecnologia de detecção, que atualmente não é sensível o suficiente para analisar com precisão as mudanças em propriedades menores que um acre (4 mil metros quadrados). A tecnologia aprimorada permitiria uma medição eficiente da sobrevivência e do crescimento das árvores em pequenas propriedades pela eliminação da necessidade de pagar pelo monitoramento in loco.

Mesmo com essas mudanças, no entanto, os créditos de compensação gerados pelos pequenos agricultores sempre serão mais custosos em comparação aos que os produtores maiores (que têm acesso a economias de escala) produzem. As corporações que podem comprar créditos precisam reconhecer que os créditos gerados pelos pequenos agricultores têm mais impacto social porque direcionam recursos para os mais vulneráveis e se sentir confortáveis em pagar um pequeno extra por eles. Além disso, registros de carbono, que definem os padrões de medição que os plantadores devem alcançar para que os mercados vendam seus créditos e com os quais devem, é claro, manter compromissos rigorosos, precisam projetar protocolos de medição que sejam realistas para os contextos dos pequenos produtores.

Agricultura Regenerativa

Uma segunda atraente oportunidade de financiamento climático que está pronta para investimentos filantrópicos em escala é a agricultura regenerativa. Este é um conjunto emergente de práticas como a proteção do solo com cobertura vegetal, a introdução de nova matéria orgânica e a rotação de culturas que podem rejuvenescer solos esgotados, reduzir o uso de produtos químicos e sequestrar carbono. Esta abordagem é uma mudança dos métodos tradicionais de cultivo e, portanto, requer investimentos em treinamento e mudança de comportamento.

No entanto, embora o uso desses métodos ao longo do tempo torne os campos mais produtivos e lucrativos, a transição para práticas regenerativas geralmente coincide com alguns anos de colheitas menores que os pequenos agricultores não têm meios para absorver. Novamente, aqui, doações, empréstimos concedidos, financiamento baseado em resultados e outros tipos de filantropia podem ser catalisadores. Ao subsidiar perdas iniciais, os doadores podem apoiar os pequenos produtores durante a transição para a agricultura regenerativa e ajudar a colocar milhões de hectares de terra sob gestão mais sustentável. Organizações como  a Root Capital, a Farm Africa, e outras, também estão liderando o caminho da implantação de projetos inovadores que usam abordagens regenerativas, como minimizar a perturbação do solo, cultivar plantas de cobertura e introduzir matéria orgânica no solo.

Mitigação Agrícola e Doméstica

Nos últimos anos, houve uma explosão dos Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA): incentivos financeiros para promover medidas de mitigação que, de outra forma, poderiam não gerar benefícios econômicos suficientes. No caso dos pequenos agricultores, essas soluções incluem pagar a eles para renunciar ao uso de recursos naturais próximos, como florestas ou turfeiras (ecossistema que compõe uma área úmida com acúmulo de turfa, um material orgânico de origem vegetal), adotar recursos hídricos mais sustentáveis ou utilizar aparelhos como fogões e fontes solares que substituam combustíveis fósseis como lenha e querosene.

Um exemplo recente de uma iniciativa bem-sucedida desse tipo é o programa PAS do governo da Costa Rica, de 1997, que pagou proprietários de terras para reflorestar e proteger as árvores existentes. Ao longo de oito anos, esta iniciativa financiada pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) aumentou a cobertura florestal da Costa Rica em quase 17%. 

Esses tipos de atos de mitigação climática em pequenas propriedades  repetidos 50 milhões de vezes na África claramente são uma promessa significativa para a gestão ambiental, mas os veículos de financiamento relacionados em geral não possuem os princípios de design, soluções tecnológicas e força de vontade dos financiadores necessários para incluir e recompensar adequadamente os pequenos produtores. Por exemplo, como é o caso dos mercados de carbono, pode ser um desafio monitorar o compliance do programa em milhões de pequenas propriedades remotas. Mais uma vez, os filantropos climáticos têm a chave para superar as falhas do mercado, investindo em soluções tecnológicas e programáticas para resolver esses problemas. Ao direcionar recursos para essas iniciativas de alto potencial, a filantropia pode replicar histórias de sucesso como a da Costa Rica em todo o mundo. 

A Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2022 (COP27, que aconteceu entre 6 e 18 de novembro de 2022 em Sharm El Sheikh, no Egito) marcou uma ocasião para filantropos e líderes da área social interessados ​​em mudanças climáticas considerarem como seu trabalho poderia apoiar melhor os mais vulneráveis ​​ao clima. Pela primeira vez, pavilhões oficiais focados em sistemas alimentares fizeram parte do evento. Este é um passo encorajador na direção certa, mas precisamos de um compromisso muito maior para encontrar maneiras de trazer os pequenos agricultores para a solução climática global. A justiça climática deve estar no centro de todo o trabalho climático, não na periferia, e embora venha com desafios, também apresenta enormes oportunidades. 

 

OS AUTORES

Claire McGuinness é analista sênior de estratégia e parcerias do One Acre Fund, onde apoia a direção estratégica e as oportunidades de colaboração em áreas de resiliência e mitigação climática, transformação digital e medição e avaliação. Anteriormente, McGuinness foi consultora independente de estratégia e avaliação para filantropias globais e gerente de projetos estratégicos na VisionSpring.

Matthew Forti é diretor administrativo do One Acre Fund, onde lidera os trabalhos da organização na África e ajuda a supervisionar as medições e avaliações. Anteriormente, Forti foi gerente do Bridgespan Group, empresa de consultoria para líderes e organizações orientadas por missões que apoiam o projeto de sistemas de medição de desempenho para aprendizado e aprimoramento contínuos.



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