Imprimir artigo

Uma democracia multirracial exige reparação racial

Nos Estados Unidos, medidas abrangentes são fundamentais para alcançar os mais altos ideais democráticos

Este artigo faz parte da nossa série “A busca global pela equidade”. Para conferir os demais artigos, clique aqui.

Por Nicole Carty, Aria Florant e Vikas Maturi

Arte: Raffi Marhaba, The Dream Creative

Desde a insurreição no Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, é comum ouvir, nos Estados Unidos, que a democracia do país está “sob ameaça”. No entanto, ela não esteve sempre? Seria mais preciso dizer, talvez, que ela nunca existiu. A história da nação é definida pela luta para garantir direitos e proteções para todas as pessoas, porque, desde sua fundação e até hoje, o país nunca alcançou os princípios fundamentais da democracia: igualdade política, direitos fundamentais e proteção igualitária. Por mais de 250 anos, os negros foram escravizados e tiveram negados todos os seus direitos, enquanto eram submetidos a torturas físicas e mentais. No século seguinte – salvo por um breve período de reconstrução negra – os cidadãos negros foram sujeitos à discriminação legalizada em todas as áreas do cotidiano, como voto, moradia, emprego, acomodação pública e cuidados de saúde. A população negra continua enfrentando limitações ao pleno exercício de seus direitos, desde políticas racistas de justiça criminal até a supressão de eleitores. Essas violações permitiram governos eleitos por e para poucos, ricos e brancos, que consolidaram seu poder por meio de exploração, desumanização e exclusão.

Ativistas, estudiosos e pesquisadores de diferentes gerações veem as reparações como o caminho para encerrar essa história antidemocrática. Nos Estados Unidos, a maioria das pessoas as associa exclusivamente a pagamentos feitos em dinheiro a pessoas negras. É verdade que a restituição financeira sempre fez parte da conversa. Mas, para reparar plenamente as violações dos direitos dos negros, é preciso mais: devemos criar as condições para uma verdadeira democracia multirracial. Reparar significa exigir o fim de políticas que violam os direitos e suprimem o poder político dos negros. Também exige que analisemos as maneiras como os Estados Unidos violaram princípios democráticos fundamentais e reparemos esse dano criando um sistema político em que os princípios da democracia sejam estendidos a todos.

Recentemente, mudanças econômicas e culturais abriram um leque de oportunidades. A desigualdade de riqueza enorme e crescente deu origem a duas gerações de jovens prontos para reescrever o statu quo econômico. A resposta à pandemia mostrou que o governo pode investir de forma maciça no bem-estar econômico coletivo. Por fim, o movimento de uma década por vidas negras – sem dúvida o maior desse tipo na história dos EUA – incentivou milhões de pessoas a buscar justiça pela violência estatal contra essa população. O país está pronto para reparações.

 

Reparações para as violações de princípios democráticos fundamentais

 

Acabar significativamente com uma violação de princípios democráticos envolve reparar o dano causado por ela. Reparações, nesse contexto, significam um programa federal abrangente contra os impactos da escravidão e seus legados de políticas discriminatórias.

Em princípio, é importante ter clareza acerca das violações dos princípios democráticos e das implicações da reparação racial. As reformas abaixo alinham-se com a estrutura da ONU – que articula restituição, compensação, reabilitação, satisfação e cessação de danos/garantia de não repetição como as cinco formas de reparações necessárias – e mapeiam violações democráticas. Cada uma trata de danos específicos enfrentados exclusiva ou desproporcionalmente por pessoas negras nos Estados Unidos.

  1. Igualdade política

A igualdade política é a ideia de que os cidadãos devem ter voz igual sobre as decisões governamentais. No entanto, os negros foram excluídos de processos políticos e de governo desde a fundação do país. Além disso, se a Lei de Direitos Civis e a Lei de Direitos de Voto foram fundamentais para garantir proteções de igualdade política, a decisão desastrosa do caso Shelby County x Holder abriu caminho para novos esforços para suprimir eleitores, restringir o voto e gerrymandering [manipulação do desenho do mapa eleitoral distrital a fim de garantir a eleição de mais deputados do que o partido adversário] – ações projetadas para privar, de forma desproporcional, os eleitores negros do direito ao voto. No entanto, a desigualdade política vai além da representação desigual. O racismo foi fabricado como ferramenta para proteger a distribuição existente de riqueza e poder e para o entrincheiramento de visões autoritárias. Ao longo de nossa história, a narrativa de que pessoas negras são sub-humanas, preguiçosas ou estúpidas tem sido usada para justificar políticas que exploram e desumanizam as comunidades negras, muitas das quais persistem até hoje. Entre os elementos  mais importantes para a reparação dessa violação democrática, listamos:

  • Desmonte das barreiras ao voto para os negros americanos e para todos os americanos. É preciso restabelecer as regras de pré-autorização estabelecidas na Lei de Direitos de Voto de 1965 e impedir que os estados mudem suas leis de maneiras que resultem em discriminação contra eleitores negros e garantir que restaurem o direito de voto a pessoas atual ou anteriormente encarceradas. (Cessação)

  • Garantia de que todos os votos contem igualmente, alterando processos eleitorais que beneficiam de forma antidemocrática os eleitores brancos em relação aos negros e a outros não brancos. Métodos de eleição da Câmara e do Senado precisam ser reformados, o Colégio Eleitoral reimaginado e o gerrymandering banido. (Cessação, restituição)

  1. Direitos fundamentais

De acordo com o Legal Information Institute da Universidade Cornell, os direitos fundamentais “exigem alto grau de proteção contra a invasão do governo“,. Entre eles, se incluem liberdade, autodeterminação, direito de ir e vir e de associação. Se eles não são protegidos, as democracias se tornam iliberais, com uma maioria capaz de violar as liberdades civis de uma minoria e esmagar a dissidência.

A desigualdade política impulsiona as violações de direitos fundamentais. Mesmo após a emancipação, os políticos trabalharam para reconsolidar hierarquias por meio do sistema de locação de condenados e dos “Black Codes” que permitiam aos estados do Sul prender pessoas negras por delitos triviais e, em seguida, alugar seu trabalho não remunerado para empresas privadas. Pessoas negras sujeitas a linchamentos e à destruição de suas comunidades tiveram seus recursos negados.

As prisões continuam empregando pessoas encarceradas, muitas vezes sem remuneração, o que afeta desproporcionalmente as pessoas negras. A brutalidade policial e os assassinatos são os exemplos mais visíveis do controle do Estado sobre a vida da população negra, mas os serviços de saúde dos EUA discriminam mulheres negras a todo momento. Eles negam sua dor, esterilizam seus corpos e fornecem a elas cuidados abaixo do padrão, o que levou a uma taxa de mortalidade materna negra três vezes maior, na comparação com mulheres brancas. As razões sistêmicas pelas quais negras – em especial as pobres – suportam o peso de tal política remontam à escravidão. Para a reparação racial desse aspecto, listamos as medidas fundamentais a seguir:

  • Fim da servidão involuntária, do confinamento solitário e do encarceramento em massa. Reparação dos danos causados por essas instituições, o que exige que, em nível estadual e federal, sejam eliminadas exceções que permitam que a escravidão seja usada como punição por um crime. Reformulação da abordagem do sistema jurídico penal em relação à punição e aprofundamento do compromisso com práticas de justiça restaurativa. (Cessação, restituição, reabilitação)

  • Devolução de terras roubadas de antepassados de negros e indígenas. (Compensação, restituição)

  • Transformação dos sistemas atuais de policiamento no sentido de práticas restaurativas baseadas na responsabilização da comunidade e mais investimento em formas não policiais de interrupção e prevenção da violência. (Restituição, reabilitação)

  • Documentação dos danos da violência sancionada pelo Estado contra pessoas negras e construção de mecanismos de responsabilização para a não repetição. Isso pode também se referir a monumentos, museus e outros memoriais dedicados à educação pública sobre como e por que esses danos ocorreram, algo semelhante à memória cultural do Holocausto na Alemanha. (Cessação, satisfação)

  1. Igualdade de proteção e Estado de Direito

Estado de Direito significa igualdade de proteção: o governo deve ser imparcial, e o Estado não pode fazer distinções entre indivíduos. No entanto, o direito de participar da democracia foi, por muito tempo, limitado a homens brancos e ricos, que usaram a lei explicitamente para discriminar pessoas negras. Mesmo depois da emancipação, pessoas negras receberam tratamento desigual em locais de acomodação pública, tiveram acesso a serviços públicos de baixa qualidade e frequentaram escolas menos financiadas. Ao mesmo tempo, investimentos maciços em trabalhadores americanos – como o New Deal ou o G.I. Bill – foram em grande parte restritos a pessoas brancas. A recusa de crédito e empréstimos por parte governos e bancos criou bairros negros segregados e sem acesso a instrumentos financeiros de construção de riqueza. Tais bairros foram visados de maneira desproporcional durante a “renovação urbana“, que os entregou a incorporadoras privadas. Enquanto isso, a política contra as drogas criminalizou fortemente substâncias que são mais prevalentes em comunidades negras. Os elementos críticos da reparação racial incluem:

  • Investimentos significativos na construção de riquezas, além de pagamentos diretos, a fim de remediar o roubo sistemático de trilhões de dólares. Tais investimentos serviriam como um passo importante para que o Estado cumprisse sua obrigação de reparar violações de proteção igualitária. Eles incluem não só destinação de recursos diretamente a famílias negras, mas também apoio à casa própria e construção de valor imobiliário, aumento do financiamento para instituições educacionais e apoio para cuidados de saúde e cura de pessoas negras. Políticas de reparação para o encarceramento nipo-americano, o apartheid sul-africano e o genocídio cultural canadense nas escolas residenciais indígenas oferecem modelos e lições para pagamentos de reparações. (Compensação, reabilitação)

  • Garantia de benefícios aos descendentes de pessoas negras excluídas de programas sociais do governo, como o G.I. Bill e a legislação considerada “universal”, mas que excluía pessoas negras e suas famílias. (Compensação)

 

O papel do setor social

 

Embora essas reformas não sejam abrangentes – o país precisará desenvolver muitos outros componentes financeiros e não financeiros ao longo do tempo –, são importantes pontos de partida. Para que elas avancem, é necessário que as narrativas mudem de forma significativa e duradoura e que haja organização das bases, defesa de políticas e infraestrutura de movimento. É preciso ainda que mais pessoas saibam claramente como essa agenda vai melhorar a vida delas e a de quem importa a elas. Elas devem ser preparadas para tomar medidas coletivas que pressionem políticos a agir. Por fim, devem-se construir, testar e repetir alternativas ao statu quo no sentido de desenhar políticas públicas que, em última análise, reparem a democracia.

Os esforços até o momento obtiveram enorme sucesso. Políticos e manifestantes em todo o país derrubaram monumentos aos confederados. A servidão involuntária acabou em diversos estados. O apoio a pagamentos em dinheiro a pessoas negras – um componente das reparações – aumentou 15% nos últimos 25 anos. Ainda assim, será necessária a dedicação de milhões de pessoas para fazer e manter a mudança. Financiadores, organizações sem fins lucrativos e formuladores de políticas têm papéis distintos a desempenhar.

  1. Financiadores devem investir no ecossistema de reparações como parte de seu trabalho para garantir a democracia. Organizações de todo o país estão avançando nessa frente. A Equity and Transformation está implementando um esforço pioneiro em reparações da guerra às drogas, o Black Veterans Project pressiona pela reparação da discriminação contra veteranos negros e, ainda, os contadores de histórias da Color Farm Media e da Kinfolk estão trabalhando para elevar os exemplos de líderes negros que lutam por justiça e reparação.

  2. Organizações que trabalham por democracia e por reparações podem se vincular de forma programática e narrativa. As que lutam por democracia devem considerar se suas prioridades políticas estão de fato combatendo políticas contra os negros. Grupos como o Rockefeller Brothers Fund reconheceram que narrativas discriminatórias estão entre as ferramentas mais eficazes para minar a democracia e que o trabalho para fortalecê-la deve se assentar em um quadro reparador.

    Ao mesmo tempo, as organizações de reparação devem elevar a democracia como uma área de oportunidade narrativa. Grupos como o Get Free conectam um ao outro, incentivando que o compromisso das pessoas com a criação de uma democracia multirracial se dirija para a construção de uma coalizão mais ampla por reparações. Ao tentarem definir sua visão e seus objetivos políticos, organizações de reparação devem reconhecer a importância da reforma da democracia para alcançar e sustentar a liberdade dos negros.

  3. Formuladores de políticas também podem promover soluções na interseção entre reparações e democracia, além de explicitarem seu apoio à política de reparações. Políticos podem se comprometer a estudar os danos causados pelas práticas vigentes e aprovar outras que identifiquem e remediem esses danos. Em Evanston, Illinois, o vereador Robin Rue Simmons liderou o desenvolvimento de uma das primeiras políticas de reparação financiadas pelo município, a qual destina pagamentos de moradia restaurativa da ordem de US$ 25 mil para habitantes negros (ou seus descendentes) prejudicados por políticas habitacionais discriminatórias. O trabalho político na escala estadual e municipal é essencial a fim de construir a onda de apoio necessária para aprovar uma política federal abrangente de reparações.

 

Reparações são para todos nós

 

Por séculos, coalizões multirraciais lideradas por negros lutaram pela verdadeira democracia, pois aqueles com poder salvaguardaram seu status por meio da desumanização, abuso e exclusão antidemocráticos de pessoas negras. A luta para abolir a escravidão e a era da Reconstrução resultaram na 13ª, 14ª e 15ª Emendas, garantindo uma vasta gama de proteções que, em última análise, asseguraram os direitos constitucionais à privacidade, ao casamento e (por um tempo) ao aborto. O Movimento dos Direitos Civis e as subsequentes Leis dos Direitos Civis e dos Direitos de Voto ajudaram a criar um país novo em que muito mais direitos são garantidos a muito mais pessoas. Da mesma forma, o movimento por reparações pode facilitar uma transformação social maior, que proteja nossas liberdades e que permita que mais pessoas tenham saúde, riqueza e alegria.

A verdadeira democracia multirracial não é possível sem reparações. Histórias do colonialismo, imperialismo, exploração e escravidão são globais; outras nações que aspiram a princípios democráticos devem considerar o tipo de reparação necessária para lidar com danos do Estado. Além disso, ainda que  muitas vezes envolvam comunidades indígenas, tribais ou afrodescendentes, as reparações também se aplicam além das fronteiras nacionais. Grupos e indivíduos em todo o Caribe, América do Sul, Sul da Ásia e África estão pedindo ao Reino Unido, França, Espanha e outras potências imperiais que façam reparações pelos séculos de políticas extrativistas e prejudiciais.

Fazer reparações é o projeto desta geração porque garantir a democracia será o desafio definidor do nosso tempo. Mais do que uma oportunidade de reparar as injustiças impostas aos negros, elas buscam igualdade econômica e social. Só assim poderemos ter um país íntegro, comprometido com reparação contínua e pronto para praticar formas mais plenas e imagináveis de democracia.

 

OS AUTORES

Nicole Carty (ela/dela) é diretora executiva da Get Free, movimento liderado por jovens focado em reparar danos do passado, remover barreiras contínuas à igualdade e garantir um futuro onde a liberdade é para todos. É estrategista de movimentos, organizadora digital, ativista e formadora nascida e criada em Atlanta, Geórgia, e há mais de uma década estuda e apoia movimentos para promover justiça racial, de gênero e econômica.

Aria Florant é cofundadora e CEO da Liberation Ventures, que atua por reparações federais e abrangentes para a população negra americana. Antes, foi pesquisadora, consultora de gestão, organizadora, professora e atuou em organizações sem fins lucrativos. Seu trabalho tem por objetivo a missão singular de construir um mundo onde cada um seja seu próprio dono. Está enraizada em um ethos feminista negro, ama um bom cabernet e tem seu lar em Colorado e East Palo Alto.

Vikas Maturi é chefe de gabinete da Liberation Ventures, com ação na área de esforços estratégicos de doação, pesquisa e capacitação de campo. É organizador comunitário na Bay Area, com foco na proteção de inquilinos e acessibilidade habitacional. Assessorou o desenvolvimento de estratégias filantrópicas e sem fins lucrativos.

Confira o artigo no idioma original aqui.



Newsletter

Newsletter

Pular para o conteúdo