Doação democrática
A Wealth Shared promove uma abordagem baseada em confiança que capacita um coletivo a decidir sobre doações de forma democrática
Por Sarah Murray

Em junho de 2023, um grupo de pessoas que não se conhecia se reuniu em um centro comunitário em Liverpool, Inglaterra, para fazer algo que nunca tinham feito antes: doar o dinheiro de alguém. A quantia – 100 mil libras esterlinas, ou US$ 123 mil – era a herança do economista David Clarke, de 34 anos. Sua decisão de deixar que outras pessoas definam para onde vai seu dinheiro representa uma forma mais democrática de doar.
“É melhor se pessoas de diferentes perfis puderem participar das decisões sobre como o dinheiro será usado”, diz ele. “Isso leva a uma melhor tomada de decisão porque mitiga pontos cegos e preconceitos individuais.”
Wealth Shared, o projeto de Clarke, está documentado em um site de mesmo nome. Ele se inspirou nas Assembleias de Cidadãos do Reino Unido – grupos de pessoas escolhidas aleatoriamente que debatem questões e fazem recomendações a formuladores de políticas públicas. No início de junho, depois de consultar especialistas sobre o projeto, ele enviou 600 convites para uma seleção aleatória de residências no código postal L8 de Liverpool, uma área racialmente diversa há muito afetada pelo desemprego e pela estagnação econômica. O convite dava as boas-vindas a qualquer pessoa com mais de 16 anos que quisesse participar de quatro sessões que aconteceriam algumas semanas depois.
Das 38 pessoas que responderam, Clarke selecionou 12 aleatoriamente. Cada participante recebeu 200 libras (US$ 257) como compensação. Lideradas pela facilitadora Emily McChrystal, as sessões tiveram discussões sobre várias causas, avaliações de organizações sem fins lucrativos e debates sobre a possibilidade de impor condições ao uso do dinheiro.
Glynis Jackson, agente de apoio educacional e uma das participantes, gostou da decisão de Clarke de conceder seu poder de doação a moradores do L8. Para ela, o processo foi algo novo e desafiador, mas também gratificante. “Muitas pessoas ficaram emocionadas”, diz Jackson. Ela defendeu doar todo o dinheiro a uma única organização, pois acreditava que dividi-lo deixaria quantias insuficientes para fazer uma diferença significativa para os destinatários.
No fim, concordou com a decisão do grupo de dividir o dinheiro igualmente entre quatro organizações locais que combatem a privação econômica de diferentes maneiras: a rede de escolas Dingle, Granby e Toxteth Collaborative; a instituição de caridade Team Oasis; o Fundo de Desenvolvimento Granby Toxteth; e o centro comunitário Florrie, onde as sessões foram realizadas.
Clarke ficou impressionado com o compromisso do grupo com o processo. “Todos contribuíram significativamente e as discussões foram muito ricas”, diz ele.
Embora os beneficiários não fossem obrigados a relatar como gastaram o dinheiro, o processo de doação inspirou transparência entre os destinatários. “Eu queria que ele soubesse que o dinheiro foi gasto com sabedoria”, diz Laurence Fenlon, diretor de operações do Florrie, que usou os fundos para reabastecer o banco de alimentos.
Clarke não está sozinho na tentativa de mudar o equilíbrio de poder da filantropia. Em 2024, a herdeira austro-alemã Marlene Engelhorn, de 32 anos, deu a 50 pessoas a responsabilidade de escolher como distribuir 25 milhões de euros (US$ 27,5 milhões) de sua herança. Em um processo semelhante ao de Clarke, ela enviou um questionário para um grupo escolhido aleatoriamente de 10 mil pessoas na Áustria. Dos que completaram o questionário, ela selecionou 50 por diversidade demográfica. O grupo concedeu o dinheiro a 77 organizações focadas em temas vários, desde pobreza e falta de moradia até saúde e proteção ambiental.
O modelo de doação de Clarke representa o uso crescente de uma abordagem baseada na confiança para democratizar a filantropia. Embora não vá fazer mais doações, já que o valor inicial era a soma de sua herança, ele criou o site Wealth Shared para inspirar outras pessoas a doar da mesma forma. O site, que começou com um blog fornecendo atualizações sobre as discussões, se tornou um hub que hospeda a cobertura da imprensa e um relatório descrevendo o processo e seu resultado.
“[O site] está usando o projeto para incentivar o debate sobre a distribuição de riqueza e a ideia de delegar decisões financeiras a um grupo mais diversificado,” ele diz. “Espero que isso tenha plantado uma semente na mente de muitas pessoas.”
A AUTORA
Sarah Murray é jornalista, autora, palestrante e escritora especializada em negócios, sociedade e meio ambiente para o Financial Times e outras publicações.
*Artigo publicado originalmente na edição 11 da SSIR Brasil; leia aqui a edição completa
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