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Por que racializar o pensamento e a prática da avaliação

Para decolonizar avaliações, é preciso entender as raízes avaliativas racistas como reflexo das estruturas sociais e reconhecer o potencial negro de produção de conhecimento

Por Rayane Freitas e Rogério Silva

A realidade atual se divide em duas. Uma é a efetiva, a realidade como ela é. A outra é a oficialmente sancionada, que passa por diversos filtros — entre eles, o racismo. Essa é uma das ideias abordadas pelo filósofo britânico Charles W. Mills em O contrato racial, livro que, em 2023, ganhou edição comemorativa de 25 anos no Brasil.

Essas duas realidades se mostram bem evidentes no campo da avaliação de programas sociais e políticas públicas. Parâmetros de avaliação cunhados pelo o que Mills chamou de uma “autoridade epistêmica branca” acabam mantendo, ainda nas palavras do autor, uma “alucinação consensual” — um consenso sobre essa realidade filtrada que, até mesmo para os brancos, é alienante de  sentido.

Segundo Egon Guba e Yvonna Lincoln, educadores americanos renomados em pesquisa educacional e social, a ideia de fazer uma avaliação já nasce comprometida com duas características: a verdade e a precisão. Mesmo com desvios na prática avaliativa, permanece a busca pela verdade factual e por narrativas fidedignas à realidade com a intenção de construir juízos justos.

Para que esse compromisso se mantenha, é imperativo transformar a prática avaliativa no sentido de promover um giro epistêmico, ético e político que incorpore a produção intelectual negra. A avaliação não pode continuar a reivindicar seu estatuto de ciência aplicada sem alterar seus modos de conhecer e analisar a partir de lentes negras.

Avaliações podem produzir e reproduzir racismo. O efeito produzido pela branquitude nos processos avaliativos começa a se forjar desde a constituição das equipes avaliadoras, passando pela construção de perguntas avaliativas, pela escolha de referenciais teóricos e de quem tem voz nas avaliações, desembocando nas análises, na comunicação e no uso das avaliações. A seguir, apontamos sete distorções comuns.

  1. Ignorar, quando não camuflar, desigualdades raciais, perpetuando ações desajustadas a características e necessidades das populações negras.

  2. Perpetuação de relacionamentos top-down com as populações e organizações negras, tanto por parte de agentes governamentais quanto da filantropia.

  3. Critérios de análise que tendem a resultar num recorrente e suposto baixo impacto das ações nas populações e organizações negras.

  4. Uso de métodos e desenho de processos avaliativos que não incorporam tempo e recursos para dialogar com as populações e organizações negras.

  5. Falta de transparência sobre os resultados das avaliações e das consequências destas para as populações e organizações negras.

  6. Fragilidades quanto à responsabilidade dos tomadores de decisão em temas de justiça social e racial analisados nas avaliações.

  7. Desenhos imprecisos de avaliações resultam no desinteresse e baixo engajamento das populações e organizações negras nos processo avaliativos.

 

Raízes do problema

 

Avaliações produzem conhecimento a partir de técnicas e estratégias oriundas de diferentes métodos científicos. O atual debate sobre a decolonização das avaliações ecoa a questão do epistemicídio negro, sobre o qual escrevem Sueli Carneiro e Grada Kilomba. O ocultamento das produções de pessoas negras e seu não reconhecimento como legítimas produtoras e difusoras de conhecimento é criticado por ambas as autoras, que sublinham o racismo entranhado na corrente que une erudição, ciência e poder da autoridade racial. As avaliações não fogem dessa lógica.

Decolonizar é permitir que todas as vozes possam falar com legitimidade e peso. É possibilitar que as histórias possam ser contadas a partir de outras perspectivas, como aponta a nigeriana Chimamanda Adichie no livro O perigo de uma história única. A decolonização das avaliações exige uma transformação importante: o sujeito negro deixa de ser um “objeto de pesquisa” e passa a ser um agente cocriador de realidades.

São aspectos da prática avaliativa racista incluir situações como a coleta de dados ou observação sem consentimento, a ausência de escuta e a presunção de que as perguntas não serão compreendidas. Trata-se de uma estrutura paternalista quanto às decisões, que bestializa as populações negras e que lhes nega exercícios básicos de pertencimento, análises, proposições e decisões. Em suma, nega-lhes a democracia.

Quando notamos que o crédito não é atribuído e que não há devolutiva a quem é considerado apenas fonte de informação, reconhecemos como as avaliações perpetuam o statu quo da pessoa negra enquanto “sujeito-objeto”. Essa redução do sujeito a objeto tem uma evidente conotação racista. O cientista social Rodney William expõe essa relação em seu livro Apropriação cultural (2019). Ele afirma que “o cuidado com a pesquisa, a compreensão dos significados, o estabelecimento de trocas, a busca de consentimento, nada disso tem importância. Numa estrutura racista, o que é do negro pertence ao senhor, que pode dispor como bem quiser”.

Para decolonizar avaliações, é preciso reconhecer as raízes avaliativas racistas como um reflexo das estruturas sociais, e reconhecer a população negra em sua plena capacidade criadora, crítica, autônoma e conhecedora de sua realidade. É preciso não somente que as pessoas negras tenham espaço para falar, mas assegurar que sejam ouvidas e que participem dos processos avaliativos em toda a sua extensão.

Recomendações para superar práticas racistas nas avaliações 

O caminho para avaliações mais justas tem bases teóricas robustas e passa por recomendações práticas. Em 18 anos de atuação no campo social, realizamos, na Pacto Organizações Regenerativas, o monitoramento, avaliação e aprendizagem (MEL, no acrônimo em inglês) de programas, projetos e políticas públicas. Essa experiência nos levou a encontrar novos referenciais e a adotar uma posição antirracista no cotidiano.

A seguir, compartilhamos as práticas antirracistas operadas a partir das nossas experiências em MEL — elas apoiam todas as etapas de uma avaliação. Disponibilizamos, ainda, nossas diretrizes para equidade racial.

 

Nas equipes avaliadoras

 

  • Investir constantemente no letramento racial;

  • Garantir que pessoas negras estejam presentes na equipe em funções de liderança e operacionais, com paridade racial e de gênero;

  • Combater hábitos da supremacia branca nas organizações, como o pensamento binário, a adoração à palavra escrita, “só um jeito certo” e a invalidação de outras formas de pensar que não as pautadas pela objetividade. O Instituto Marielle Franco tem uma publicação que lista 15 deles e seus antídotos;

  • Trazer as questões raciais para o próprio ambiente de trabalho, analisando os processos internos, o que ajudará nos processos externos;

  • Avaliar como o racismo, o poder e o privilégio operam dentro da própria equipe avaliativa e em relação às comunidades/território e financiadores;

  • Garantir remunerações justas e igualitárias para funções de mesmo nível na equipe avaliadora, independentemente da raça e gênero.

 

Definição de referenciais teóricos e perguntas avaliativas

Audiências

 

  • Buscar paridade racial, social e de gênero entre os grupos a serem ouvidos, podendo existir ainda outras interseções a considerar, como região, religião, idade, deficiência física, transtornos mentais etc.

  • Adotar uma postura de aprendizado na interação com o público das audiências, em vez de apresentar diretivas, modos e formas inflexíveis para conduzir o processo avaliativo;

  • Permitir e incentivar a participação ativa do público-alvo, garantindo que tenha espaço seguro de fala e que suas narrativas não sejam descredenciadas.

Indicadores e critérios de avaliação

 

  • Trabalhar junto a representantes dos territórios, comunidades ou grupos para que os critérios avaliativos (ou seja, aquilo que define o que é e não é bom, o que tem ou não tem valor, o que vale ou não vale a pena) sejam construídos coletivamente].

 

Coleta e análise de dados

 

  • Reconhecer o saber local como fator indispensável ao processo avaliativo, admitindo como válidas as evidências trazidas pelas pessoas/comunidades envolvidas;

  • Incorporar critérios de raça/cor e gênero em roteiros, formulários e demais instrumentos de coleta de dados facilita a leitura desagregada dessas informações, permitindo uma análise e interpretação das estatísticas organizadas por categorias raciais e de gênero, as quais destacam as disparidades sociais específicas de cada grupo.

  • Buscar a validação das narrativas construídas junto às pessoas escutadas;

  • Não coletar dados, se apropriar deles ou compartilhá-los sem o devido consentimento;

  • Respeitar e registrar as singularidades, considerando que as pessoas negras são diversas em suas trajetórias e possuem opiniões e perspectivas diferentes entre si.

 

Comunicação de resultados e uso das avaliações

 

  • Priorizar a apresentação de conclusões da avaliação por pessoas negras envolvidas no estudo;

  • Não reproduzir narrativas reducionistas com cenários de miséria e precariedade e apostar em narrativas que iluminem os potenciais e resistência das pessoas negras;

  • Entregar de forma transparente os dados às comunidades, territórios, ou pessoas que participaram da avaliação;

  • Avaliar como o racismo opera nas soluções e intervenções advindas do processo avaliativo;

  • Evitar a escrita como forma exclusiva para comunicar os resultados. A oralidade é um modo ancestral e eficaz de comunicar para a diversidade de públicos interessados nos resultados de uma avaliação;

  • Zelar para que os achados da avaliação não pertençam apenas aos grupos financiadores ou que concentram o poder institucional, mas que estejam ao alcance dos grupos subalternizados.

 

Combate à cegueira causada pelo colonialismo

 

Práticas avaliativas comprometidas com o antirracismo têm papel crucial na mitigação de avaliações superficiais, muitas vezes moldadas pela falta de visão que o colonialismo impõe. Adotar uma abordagem antirracista nas avaliações permite confrontar vieses implícitos e explícitos que podem influenciar análises, construindo práticas decoloniais.

Por exemplo, analisar o desempenho das escolas brasileiras por meio do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) sem levar em conta a cor dos estudantes impede o enfoque adequado das ações e dos investimentos públicos. Considerar o critério racial permite que os formuladores de políticas identifiquem onde os recursos são mais necessários para promover a equidade educacional, direcionando-os estrategicamente. Possibilita, ainda, a criação de currículos que valorizem a diversidade racial e cultural, além do desenvolvimento de programas de capacitação para educadores sobre inclusão e questões raciais, reforçando o compromisso do sistema educacional com a justiça social.

O mesmo ocorre no debate sobre a taxa de mortalidade materna no Brasil: se as análises não forem racializadas, a mortalidade negra é imperceptível e, consequentemente, não haverá promoção de ações que tornem o acesso e os efeitos dos serviços mais equânimes. A insuficiência na coleta e análise de dados por raça/cor nos serviços de saúde produz planejamentos que não atendem à realidade vivida por esse grupo. Em suma, qualquer programa que não adote uma metodologia racializada para a análise de dados sobre seus beneficiários perde a capacidade de compreender a distribuição heterogênea dos resultados entre grupos raciais — eis um importante obstáculo para a evolução do programa.

Isso envolve um denso trabalho de conscientização a respeito da influência colonial nas instituições acadêmicas, nas organizações de pesquisa e na própria sociedade — inclusive na comunidade avaliativa, com suas instituições, profissionais e ativistas. As práticas avaliativas antirracistas buscam desmantelar essas estruturas de poder, promovendo a inclusão de perspectivas diversas.

Ao fazer isso, elas contribuem para a criação de avaliações mais plurais, contextualizadas e sensíveis às realidades e desafios enfrentados pelas populações historicamente minorizadas. Essa abordagem promove a equidade e a justiça na avaliação e fortalece a integridade e a validade da ciência, ao garantir que resultados e impactos sejam avaliados de modo mais democrático e comprometido com as reais transformações sociais.

OS AUTORES

Rayane Freitas (ela/dela) (@nutri.rayanefreitas) é uma mulher negra, 31 anos, doutora e mestre em ciências (PPGNUT/Unifesp), associada da Pacto Organizações Regenerativas, onde atua como pesquisadora em Monitoramento e Avaliação no terceiro setor nas áreas educacional, socioambiental, racial, saúde e setor público. É coordenadora, autora, consultora e palestrante em iniciativas no campo das relações étnico-raciais e saúde da população negra. Membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e batuqueira no Quiloa Maracatu, manifestação cultural de resistência afro-brasileira.

Rogerio Silva (ele/dele) (https://rogeriorsilva.medium.com/) é um homem branco, 51 anos, doutor em saúde pública pela FSP/USP e psicanalista pelo CEP/SP. É sócio da Pacto Organizações Regenerativas. Estudou facilitação de processos no CDRA/África do Sul e avaliação de programas na Western Michigan University/EUA. Tem longa experiência em consultoria e gestão em estratégia, avaliação e cultura organizacional, tendo atuado em dezenas de organizações públicas e privadas. Fundou e dirigiu o Instituto Fonte e a Move Social; foi gestor no Programa saúde da família (Qualis – Fundação Zerbini), quadro do Ministério da Saúde e editor-chefe da Revista Brasileira de Avaliação, da qual é membro do conselho editorial. É autor de diversos artigos em temas de desenvolvimento organizacional.



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