Governo

Como ONGs podem auxiliar governos a testar e aplicar soluções

Diante da queda da ajuda internacional, novos modelos de parceria entre ONGs e governos serão fundamentais para ampliar e sustentar reformas na área da saúde em países de baixa e média renda

Por Jennifer Schechter, Emily Bensen e N’Toumbi Tiguida Sissoko 

Uma jovem mãe no centro de saúde de Kpétab, distrito de Dankpen, Togo. A parceria entre ONGs e governos aumentou o acesso ao atendimento de saúde materna gratuito no país. (Foto cortesia da Integrate Health)
Uma jovem mãe no centro de saúde de Kpétab, distrito de Dankpen, Togo. (Foto cortesia da Integrate Health)

No fim de 2020, o Ministério da Saúde do Togo fez um apelo por ajuda. O gabinete da Presidência havia dado uma orientação clara ao ministério: encontrar uma forma de tornar gratuita a atenção à saúde materna. Nossa ONG, a Integrate Health (IH), atua no desenvolvimento de abordagens inovadoras de atenção primária à saúde no Togo desde 2004 e, ao longo do tempo, construímos uma relação de colaboração sólida com o ministério.

Aquela era uma grande oportunidade e a nossa equipe se mobilizou rapidamente. Em poucos meses, desenvolvemos diferentes pacotes de serviços, com modelagens de custo e impacto para demonstrar os prós e contras de cada opção. Após uma apresentação feita pela IH, o ministério tomou sua decisão final. WEZOU, que significa “sopro de vida” na língua cabié, foi oficialmente lançado em 2021 e, pela primeira vez, um pacote essencial de intervenções na saúde materna passou a ser gratuito para mulheres em todo o Togo, totalmente financiado pelo governo togolês. Esse exemplo demonstra como o governo pode estabelecer uma visão ambiciosa e, ao mesmo tempo, aproveitar o trabalho das ONGs como parceiras de aprendizado para promover mudanças positivas em larga escala.

Este artigo vai além da história de sucesso e propõe um modelo convincente de como ONGs podem atuar como parceiras de aprendizado dos governos, e não apenas como executoras. Ao testar inovações, decompor modelos complexos em componentes ampliáveis e fornecer dados sobre custos e impactos, ONGs como a IH ajudam os governos a tomar decisões em contextos de recursos limitados. À medida que a ajuda internacional diminui, esse modelo de parceria pode ser a chave para reformas sustentáveis lideradas pelo setor público na área da saúde.

 

Por que os governos precisam de parceiros de aprendizado?

Enquanto o papel das ONGs é mostrar o que é possível, o papel do governo é decidir o que é viável. Cabe ao governo a responsabilidade pela oferta nacional de serviços de saúde e é ele quem presta contas à população. Embora todos os governos possuam planos nacionais ambiciosos, com metas específicas de redução da mortalidade, países de baixa e média renda enfrentam sérias limitações de recursos. Essas restrições orçamentárias, de pessoal e de infraestrutura tornam especialmente difícil para os governos assumirem o risco de testar novas ideias e abordagens. Com o apoio de recursos filantrópicos, as ONGs podem assumir esse risco, desenvolvendo inovações úteis para o setor público e desempenhando um papel essencial na adaptação e implementação por parte do governo. Na Integrate Health, percebemos cedo que isso só funciona se a ONG for vista como uma parceira confiável e trabalhamos muito para conquistar esse reconhecimento.

O recente e devastador colapso da ajuda internacional torna ainda mais crítica a alocação eficiente de recursos pelos governos e mais valioso o papel das ONGs como parceiras de aprendizado. A formulação de políticas públicas, como lembra Ken Opalo, professor de política comparada da Universidade de Georgetown, é essencialmente o ato de ponderar escolhas e compensações. Isso abre uma oportunidade para as ONGs, especialmente aquelas pequenas, ágeis e empreendedoras, assumirem o risco de testar novas inovações e abordagens em conjunto com os governos. ONGs que se posicionam como parceiras de aprendizado podem acompanhar os governos oferecendo dados sobre custos e impactos, fundamentais para avaliar as trocas envolvidas e tomar decisões bem-informadas.

Togo, assim como outros países da África Ocidental, recebeu significativamente menos ajuda dos Estados Unidos, o que o torna um estudo de caso especialmente relevante e inspirador para o momento atual.

 

Demonstrando a viabilidade do projeto

Atuando no Togo desde 2004, a IH desenvolveu, testou e replicou o Programa de Atenção Primária Integrada (IPCP, na sigla em inglês). Com foco claro em ampliá-lo, começamos identificando nosso objetivo final: o governo. A partir daí, desenhamos e executamos uma estratégia de expansão eficaz, iniciando com um programa-piloto, passando para a replicação e, por fim, entrando no que chamamos de Grande Transformação (ou Le Grand Changement, como dizem nossos colegas da África Ocidental).

Construímos esse modelo como um pacote, combinando as intervenções mais eficazes e baseadas em evidências, de modo a superar grandes barreiras e tornar o atendimento de qualidade acessível a mulheres e crianças em comunidades rurais e remotas. Realizamos pesquisas para demonstrar o custo e o impacto dessa abordagem integrada na redução da mortalidade. Publicamos resultados que apontam uma redução de 30% na mortalidade infantil (menores de 5 anos) a um custo de US$ 9  [aproximadamente R$ 50] por habitante. Como organização de pequeno porte, precisávamos gerar evidências rigorosas para comprovar a eficácia da intervenção e garantir financiamento. No entanto, foi somente após as fases do programa-piloto e de replicação do IPCP que o aprendizado real sobre como dar escala de fato teve início.

 

Reformulando o problema

Resultados impressionantes alcançados por uma ONG pequena, ágil e inovadora são, sem dúvida, animadores, e não devem ser ignorados, pois representam conquistas reais na vida das pessoas. No entanto, o verdadeiro desafio é apoiar os governos a obter os mesmos resultados em escala nacional. Atuando como parceiras de aprendizado, as ONGs podem ajudar os governos a acessar de forma rápida e prática as informações necessárias para priorizar intervenções de alto impacto e investir de acordo com essas prioridades. Essa é a maneira mais eficiente e rápida de apoiar os governos na oferta de serviços de saúde de qualidade em larga escala.

Para isso, precisamos ajudá-los a entender: 1) o que deve ser priorizado, 2) quanto custa cada ação e 3) como fazê-las funcionar no sistema próprio de cada governo. O exemplo da reforma da saúde materna no Togo mostra como isso foi possível.

 

  1. Fragmentar a solução para poder ampliá-la

Frequentemente, as intervenções promovidas por ONGs são complexas ou multifacetadas. Elas precisam ser assim para maximizar sua efetividade para o usuário final (o beneficiário ou paciente). No nosso caso, o IPCP é um pacote integrado, um conjunto de intervenções baseadas em evidências, propositalmente desenhado para enfrentar todas as principais barreiras ao acesso à saúde. Essa abordagem abrangente é essencial para melhorar o atendimento. Afinal, um profissional capacitado sem insumos não consegue prestar um cuidado eficaz. O pacote integrado é o que os pacientes precisam. É o que faz mais sentido no nível da prestação de serviços e foi o que tivemos que testar e replicar para construir uma base de evidências que nos permitisse captar recursos.

Mas, quando olhamos para a expansão do projeto, percebemos que precisávamos de uma unidade menor que ajudasse o governo a escolher entre suas múltiplas prioridades concorrentes. Não era viável implementar, de uma só vez, uma nova política de agentes comunitários de saúde, a eliminação de taxas de atendimento e uma nova abordagem de mentoria. Mas era possível fazê-las separadamente, como de fato ocorreu com a remoção das taxas para cuidados maternos. Ajudamos o governo a realizar essa mudança, e esse processo nos ensinou que era preciso fragmentar os componentes e fazê-los ganhar escala em paralelo. Embora a prestação de serviços coordenada seja indispensável na ponta, aprendemos que precisávamos separar nossas evidências detalhadas e os planos de implementação por componente-chave do modelo, para então colaborar com os atores corretos e correspondentes à medida que essas inovações fossem levadas ao nível nacional.

  1. Precificar: calcular o custo unitário e modelar o impacto em escala

Depois, foi necessário analisar os custos de forma separada, para que pudéssemos apoiar o governo na modelagem de diferentes cenários de custo e impacto. Retomando o exemplo da eliminação das taxas para atendimento materno, nossa equipe desenvolveu três opções e delineou claramente os custos projetados e os impactos esperados de cada uma. Com esses cenários em mãos, o governo pôde visualizar diretamente os prós e contras envolvidos. O pacote mais enxuto incluía quatro consultas pré-natais e um conjunto limitado de exames laboratoriais, com custo anual estimado de US$ 5 milhões [cerca de R$ 28 milhões]. O pacote mais robusto previa oito consultas pré-natais e todos os exames recomendados, incluindo ultrassonografia, com custo anual estimado superior a US$ 11 milhões [cerca de R$ 61 milhões]. Essas informações ajudaram o governo a tomar decisões estratégicas de investimento. Com recursos limitados, o governo contava conosco para fornecer os dados necessários para decidir como alocar esses recursos da melhor maneira possível. Ao final, ele optou por adotar inicialmente um pacote menor, que poderia ser financiado inteiramente com recursos domésticos, sem depender de doadores internacionais.

  1. Testar: usar ciclos de aprendizado contínuo para avaliar estratégias de implementação

Por fim, com os componentes separados e seus custos definidos, é possível testar diferentes estratégias de implementação para cada um deles. Isso nos permite aplicar ciclos de aprendizado contínuo e fornecer informações frequentes aos nossos parceiros governamentais. No caso da gratuidade do atendimento materno, depois que o governo lançou o pacote inicial e registrou 200 mil mulheres nos primeiros nove meses, seguimos advogando pela inclusão dos próximos componentes mais importantes. Calculamos os custos e ampliamos um programa de ambulâncias rurais para garantir que as mulheres cheguem a tempo aos serviços de saúde essenciais, e também um programa de ultrassonografia, para identificar precocemente gestações de risco, ambos em parceria com o Ministério da Saúde do Togo.

O projeto-piloto de ultrassonografia obstétrica mostrou que o exame pode ser realizado com eficácia por parteiras, tornando-o viável e custo-efetivo em contextos como o do Togo, onde há escassez crítica de profissionais especializados, como radiologistas e obstetras. Dois anos após o lançamento do pacote inicial, o governo anunciou a inclusão da ultrassonografia como parte do programa. Esse é um exemplo ideal de como desejamos que nossos esforços de aprendizado contínuo sirvam diretamente à tomada de decisões e à formulação de políticas públicas.

 

Conclusão

Na Integrate Health, reformulamos nossa maneira de pensar: passamos de uma lógica de ampliar via governo para atuar como um laboratório de aprendizado a serviço do governo. Como ONG, utilizamos recursos filantrópicos para assumir o risco de testar inovações e, a partir desses testes, oferecemos ao governo dados sobre custo e impacto para que ele possa tomar decisões bem-informadas e alocar seus recursos limitados da forma mais eficaz. Esse aprendizado alimenta a implementação e o financiamento de políticas públicas nacionais, assegurando a ampliação real. Mas deixa de alimentar a ilusão de que qualquer governo esteja simplesmente esperando para “adotar e ampliar” a intervenção de uma ONG.

Atualmente, estamos trabalhando para gerar aprendizados e dados igualmente valiosos sobre custo e impacto de outros componentes da nossa abordagem integrada, incluindo agentes comunitários de saúde profissionais, mentoria clínica e a ampliação da isenção de taxas. À medida que essas políticas forem sendo gradualmente adotadas e implementadas em escala, comunidades de todo o país passarão a se beneficiar da abordagem integrada completa. Essa é uma forma radicalmente diferente de atuar em apoio aos governos e esperamos que outros sigam esse exemplo. Com o futuro do financiamento do governo dos Estados Unidos e de outras fontes bilaterais em risco, nossa expectativa é que os governos liderem o processo, e estamos prontos para apoiá-los. Que a reforma da saúde materna no Togo sirva de exemplo de visão e liderança governamental impulsionadas pelo apoio estratégico de uma ONG atuando como parceira de aprendizado. O resultado são centenas de milhares de mulheres com acesso ampliado ao atendimento de saúde, contribuindo para a redução da mortalidade materna. Esse resultado concreto e mensurável em quantidade de vidas salvas é o objetivo comum ao qual todos aspiramos.

AS AUTORAS

Jennifer Schechter cofundou a Integrate Health em 2004, ao lado de uma comunidade de pessoas vivendo com HIV/AIDS, e atualmente é sua diretora-executiva. Desde então, liderou a expansão da organização em Togo e Guiné, em parceria com os governos locais. Schechter recebeu o Rainer Arnhold Fellowship da Fundação Mulago, o Prêmio Sargent Shriver da Associação Nacional dos Corpos da Paz dos EUA e foi reconhecida como uma das 50 maiores agentes de impacto da Escola de Saúde Pública da Universidade de Washington.

Emily Bensen atua há mais de uma década na construção de sistemas de saúde mais equitativos com a Integrate Health, iniciando com a coordenação da transição do foco exclusivo em HIV para atenção primária no Togo, em 2014, até liderar a expansão para um segundo país, a Guiné, em 2023. Em seus cinco anos como diretora de parcerias, triplicou a receita anual da organização por meio do fortalecimento de alianças estratégicas com foco em saúde para todos.

A Dra. N’Toumbi Tiguida Sissoko é diretora sênior de programas da Integrate Health e uma liderança experiente em atenção primária e saúde sexual e reprodutiva. Trabalhou oito anos na Save the Children e nove anos na MSI Reproductive Choices, onde atuou como diretora nacional da organização no Burkina Faso e depois no Mali.

*Artigo publicado originalmente no site da Stanford Social Innovation Review com o título How NGOs Can Act as Learning Labs for Government.

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