Combater as mudanças climáticas enfrentando o trabalho escravo
As mudanças climáticas e a escravidão formam um ciclo vicioso. A ação coletiva por um futuro livre e habitável é uma oportunidade de combater ambas ao mesmo tempo
Por Ginny Baumann

“Se a gente quiser sobreviver, vai ter que trabalhar pra eles.” Pedro (nome fictício) é morador de uma comunidade ribeirinha no Amazonas e fala sobre organizações criminosas que vêm transformando a floresta em pastos áridos para o gado. Há alguns anos, a comunidade de Pedro conseguia se sustentar com a coleta de produtos florestais, pesca e caça; hoje, eles enfrentam forças letais, tanto locais quanto globais. Os madeireiros avançam, abrindo estradas pelas florestas próximas, enquanto o aquecimento global esquenta os rios, desregula as estações e transforma a floresta em lenha seca e cinzas. Sem outro meio de subsistência, Pedro pode acabar sendo levado ao trabalho escravo, empunhando a motosserra contra a própria floresta da qual depende a sobrevivência de sua comunidade.
Diversos estudos já estabeleceram a interseção entre as mudanças climáticas e a escravidão contemporânea. A pobreza, a exclusão social e a ausência de direitos trabalhistas há muito são fatores que impulsionam o tráfico de pessoas e o trabalho forçado. No entanto, os danos ecológicos causados pela crise climática não só intensificam essas vulnerabilidades como também empurram trabalhadores desesperados a causar ainda mais destruição. Vemos isso nos trabalhadores em regime de servidão em olarias do Sul da Ásia, que queimam combustíveis altamente poluentes para transformar solo fértil em tijolos; nas crianças traficadas para pescar ilegalmente nas áreas protegidas do manguezal Sundarbans, em Bangladesh; e nos jovens mineradores explorados na República Democrática do Congo. Em todo o mundo, à medida que trabalhadores como Pedro são levados ao limite da sobrevivência, cada vez mais pelos efeitos das mudanças climáticas, eles correm o risco de serem aliciados para o trabalho escravo em setores que, na verdade, aceleram ainda mais a degradação do clima.
Esse ciclo vicioso revela um ponto de intervenção. Como as mudanças climáticas muitas vezes são tratadas como se as árvores simplesmente se dirigissem sozinhas para os serralheiros, financiadores que atuam contra o aquecimento global raramente consideram o trabalho escravo como parte do problema. No entanto, “uma árvore não cai sozinha”, como diz a Rede Transdisciplinar da Amazônia (Reta), organização parceira do Freedom Fund que atua na Amazônia brasileira. Uma forma poderosa de desacelerar ou interromper o desmatamento é fortalecer as comunidades cujos trabalhadores têm poucas alternativas.
As iniciativas climáticas internacionais precisam urgentemente apoiar comunidades que muitas vezes estão localizadas nos lugares certos e cujas denúncias, ações e processos de libertação podem ajudar a preservar alguns dos estoques de carbono mais vitais do planeta. A Amazônia brasileira é um exemplo perfeito. No interior da floresta, trabalhadores vivem em acampamentos improvisados, enfrentando jornadas de 12 horas sem qualquer proteção. Como explicou um trabalhador chamado João: “Eu uso roupa comum, camisa de manga comprida, calça comprida e bota. Conheço gente que sofreu acidente grave. Às vezes é golpe de facão, às vezes é picada de cobra. Tudo pode acontecer, porque a gente anda na mata fechada.”
Há gerações, essas comunidades ribeirinhas desenvolveram técnicas para manejar produtos da floresta, como castanha-do-pará e açaí, culturas que exigem florestas saudáveis e intactas. No entanto, à medida que o calor escaldante associado às mudanças climáticas leva à perda de colheitas, à morte em massa de peixes nos rios superaquecidos, a incêndios florestais e à escassez de água potável, trabalhadores vulneráveis são forçados a buscar outras formas de sobreviver. Conter o avanço das derrubadas e das fazendas de gado tornou-se uma questão de vida ou morte para essas comunidades. Nos últimos cinco anos, foram construídos 1.500 quilômetros de ramais ilegais a partir da rodovia principal que cruza a floresta no sul do estado do Amazonas, em busca de madeiras valiosas e de áreas para a criação de gado. Como explicou Valdino Mota, membro de uma das 400 famílias que perderam suas terras: “Nosso castanhal acabou. Onde a gente andava, tinha água e encontrava bicho de todo tipo. Hoje a gente nem acha mais caça para matar, para comer.”
O programa do Freedom Fund no Brasil busca fazer a ponte entre os campos da luta contra a escravidão e da ação climática. Nossos parceiros, liderados pelas comunidades locais, ajudam as pessoas a evitarem a exploração ao mesmo tempo em que promovem a adaptação climática e utilizam saberes tradicionais para restaurar a biodiversidade e as florestas viáveis.
O que é necessário para que as comunidades exerçam poder contra o trabalho escravo e o desmatamento?
Em locais remotos onde atividades criminosas avançam sobre reservas de carbono, organizações de base desempenham um papel vital. Como explicou o Auditor Fiscal do Trabalho Magno Pimenta Riga, “considerando a ausência do Estado em amplas áreas da Amazônia, o papel das organizações locais na investigação de indícios e casos de escravização é fundamental”:
“É na identificação de casos de superexploração enquanto eles estão de fato acontecendo que a ação comunitária se torna mais urgente, para que haja fiscalização efetiva contra quem pratica esses comportamentos e, a partir disso, outras políticas públicas possam ser acionadas, as condições que levam a esses crimes se tornem mais conhecidas e, então, transformadas.”
No estado do Amazonas, o Freedom Fund está aprendendo como apoiar as comunidades na denúncia da destruição da floresta e do trabalho escravo:
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As comunidades precisam confiar em uma organização local. Os moradores precisam ter acesso a agentes de campo, pessoas cujos nomes e rostos já lhes são familiares e que os ajudaram em outras crises. Ter essa confiança na organização permite que os membros da comunidade denunciem as atividades que estão ocorrendo, mesmo diante da presença de políticos e autoridades locais poderosas.
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Diante do aliciamento para o trabalho escravo em indústrias que também causam devastação climática, os trabalhadores precisam desenvolver seu próprio entendimento sobre o que é a escravidão e como evitá-la e resistir a ela protegendo, assim, a si mesmos e ao meio ambiente do qual dependem.
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Contar com apoio adicional para garantir meios de vida, como o processamento de seus produtos sustentáveis e o acesso a mercados mais justos, fortalece essa resistência e a capacidade das comunidades de denunciar violações.
Concentrar esforços na redistribuição de poder dessa forma contribuirá para o sucesso de novos programas de adaptação climática. À medida que as lacunas e falhas na execução desses programas se tornam mais visíveis, o movimento de adaptação liderada localmente tem crescido como uma ampla coalizão de organizações que busca garantir que uma proporção maior do financiamento climático seja controlada localmente, promovendo abordagens participativas. No entanto, dentro desse importante marco, se quisermos combinar a adaptação climática com a prevenção à escravidão (e com a interrupção das redes ilegais altamente emissoras de carbono às quais os trabalhadores são submetidos), então precisaremos de um conjunto de habilidades e relações que vá além da simples localização das ações, em direção a uma transferência mais efetiva de poder em favor dos grupos mais desfavorecidos dentro dessas comunidades.
A boa notícia é que essas abordagens já estão no centro das práticas eficazes de combate à escravidão. Muitas ONGs de enfrentamento à escravidão vêm aperfeiçoando essas estratégias há décadas. Em regiões e comunidades onde grupos dominantes capturam os recursos destinados ao desenvolvimento, pessoas marginalizadas, como trabalhadores sem terra, dalits, povos indígenas, grupos étnicos discriminados e/ou mulheres, têm poucos caminhos para alcançar influência real. Se essas pessoas quiserem romper relações de exploração ou acessar seus direitos básicos, precisarão construir poder coletivo. E, para acessar recursos de adaptação climática, esse mesmo poder coletivo será essencial.
Como essas estratégias contra o trabalho escravo se traduzem na prática?
Os processos utilizados por organizações antiescravidão incluem apoiar grupos a:
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Levantar informações locais sobre os problemas que enfrentam em seu cotidiano. Isso pode trazer novas perspectivas, e o que descobrem juntos pode ser bem diferente do que lhes foi ensinado pela sociedade.
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Definir o que fazer caso enfrentem ameaças ou violência.
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Realizar pequenas ações coletivas, ganhando confiança de que a mudança é possível e aprendendo como ela acontece. Também são apoiados a se conectar com outros grupos ou sindicatos que estão fazendo o mesmo.
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Assumir o controle de suas próprias decisões e apoiar lideranças comunitárias a ganharem experiência.
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Aprender o vocabulário das leis e políticas que afetam seus direitos e garantias, para que possam dialogar com quem toma decisões.
Esse trabalho depende da construção de confiança e de um entendimento profundo das relações e dos riscos presentes no contexto. Ao se organizarem dessa forma, algumas das comunidades mais exploradas conseguem tornar políticas públicas e sistemas de proteção social muito mais inclusivos e eficazes.
Esse tipo de abordagem também é essencial para a adaptação às mudanças climáticas. Em áreas onde grupos antiescravidão atuam há anos, os esforços por justiça climática podem ser construídos de forma muito mais eficaz e rápida. Por exemplo, no sudeste do Nepal, em comunidades que estão se libertando do sistema de servidão por dívida conhecido como Harawa-Charawa, a adaptação climática equitativa é urgentemente necessária para fortalecer seu movimento de liberdade: esse sistema intergeracional manteve comunidades dalits presas ao trabalho agrícola com pouca ou nenhuma remuneração, enfrentando humilhações constantes baseadas em sua casta, afetando cerca de 70 mil domicílios na região. Desde 2014, com o apoio do Freedom Fund, organizações de base atuam com centenas de grupos comunitários, possibilitando ações coletivas, alternativas econômicas, grupos de poupança, empoderamento feminino e acesso à educação para crianças, e, acima de tudo, transformando a percepção sobre o que seria inevitável. Desse processo, surgiu o Fórum de Direitos dos Harawa-Charawa Libertos, que passou a atuar junto ao movimento unificado das redes de ex-trabalhadores em regime de servidão no Nepal, reivindicando que o governo coletasse evidências do trabalho forçado, o que culminou na Declaração de Emancipação das Famílias Harawa-Charawa (2022), bem como no desenvolvimento de diretrizes para sua reintegração, com foco em terra, moradia e educação.
Essa luta profundamente enraizada corre agora o risco de ser sufocada pelos impactos das mudanças climáticas na região. As famílias Harawa-Charawa vivem em áreas altamente suscetíveis a enchentes, onde a imprevisibilidade das chuvas leva à perda da pouca renda que poderiam obter. Esses fatores obrigam as famílias a contrair mais dívidas, forçando-as a colocar seus filhos no trabalho forçado ou a permitir que sejam traficados para a Índia. Da mesma forma, problemas de saúde são agravados pela má qualidade da água, escassez de alimentos, exaustão por calor, ondas de frio e poluição do ar, sendo a necessidade de recursos para cuidados médicos uma das principais razões pelas quais continuam presas à servidão por dívida.
As ações de adaptação eficaz para enfrentar esses desafios podem se apoiar nos anos de trabalho já realizados pelas organizações locais de combate à escravidão. As comunidades Harawa-Charawa estão agora prontas para participar a partir de uma posição de força organizativa. Os grupos locais que trabalham com essas comunidades já propuseram caminhos para essa atuação, em aliança com especialistas em adaptação climática.
O movimento contra as mudanças climáticas e os esforços globais contra a escravidão precisam urgentemente um do outro. Podemos avançar mais rápido, com mais consistência e de forma mais justa rumo à transição correta se trabalharmos juntos.
A AUTORA
Ginny Baumann é gerente sênior de programas do Freedom Fund, atualmente apoiando a preparação de estratégias programáticas lideradas por comunidades e parceiros, e ajudando os programas da organização a responder de forma eficaz às mudanças climáticas.
*Artigo publicado originalmente no site da Stanford Social Innovation Review com o título What the Anti-Slavery Movement Can Offer for a Livable Climate.
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