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Por que é tão difícil mudar uma narrativa?

Organizações sem fins lucrativos e financiadores podem exagerar quando se trata de apontar suas próprias falhas. A verdade é que estão atuando em um campo psicologicamente desigual.

Por Brett Davidson

Teoria de Justificação do Sistema
Foto: iStock/IPGGutenbergUKLtd

Em dezembro de 2014, um grupo de ativistas da saúde, formado por pessoas de todo o mundo, simulou um parque de diversões na frente de um hospital em Barcelona, na Espanha. Eles protestavam contra o preço inflacionado do Sovaldi, na época um novo remédio para hepatite C, vendido pela farmacêutica Gilead. Uma das atrações consistia numa espécie de roda da fortuna que os participantes giravam para determinar o preço que pagariam por seus remédios. A roda parava sempre no preço mais alto, US$ 84 mil, o valor de mercado para somente um ciclo de tratamento com Sovaldi.

O protesto, como descrito no novo livro The Art of Activism, de Steve Duncombe e Steve Lambert (do qual participo e que ajudei a financiar como parte do meu então trabalho no Programa de Saúde Pública da Open Society Foundation), foi apenas um capítulo de uma campanha de décadas promovida por ativistas de diferentes partes do globo para reduzir o preço de remédios essenciais e garantir que as pessoas não só tenham acesso a eles mas que possam pagar por eles. Anos depois, muitos desses ativistas juntariam forças uma vez mais para lutar pela igualdade mundial no acesso às vacinas contra Covid-19, como parte da campanha Free the Vaccine, em parceria com o movimento The People’s Vaccine.

Para além de campanhas voltadas para fármacos específicos, um objetivo mais amplo do movimento é “mudar a narrativa” sobre esses medicamentos como um todo, fazer a sociedade os considerar um bem público em vez de um bem privado – e, assim, alterar seu sistema de desenvolvimento, comercialização e distribuição

Ao longo dos últimos anos, a mudança narrativa emergiu como um campo, conforme organizações sem fins lucrativos e fundações com experiência em apoiar os direitos humanos perceberam que muitas de suas vitórias políticas, conquistadas a duras penas, estavam sendo revertidas ou nunca foram implementadas na prática. Todo um ecossistema de organizações, como o Frameworks Institute, Narrative Initiative e ReFrame, desenvolveu-se com base na percepção de que para conquistar uma mudança duradoura e sistêmica não é suficiente alterar algumas políticas públicas. É preciso mudar o sistema subjacente de histórias que ajuda as pessoas a compreenderem o mundo.

Isso é evidente no caso das vacinas para Covid-19. Nos Estados Unidos, embora o governo do presidente Joe Biden tenha feito um apelo pelo fim das proteções à propriedade intelectual, o que possibilitaria aos países do Sul Global produzirem vacinas de Covid-19 por conta própria, o consenso internacional sobre esse assunto mostrou-se ilusório. Grupos como o Health Justice Initiative, na África do Sul, I-MAK e Médicos sem Fronteiras continuam a protestar contra um sistema global de propriedade intelectual que prioriza lucros em detrimento de vidas. Contudo, até que ponto as coisas poderiam ser diferentes se a narrativa sobre medicamentos os apresentasse como bens públicos? Podemos ter uma ideia disso recorrendo a Jonas Salk, criador da primeira vacina contra a poliomielite. Perguntado a respeito de quem seria o proprietário da patente, a resposta de Salk ficou célebre: “Bem, eu diria que o povo. Não há patente. É possível patentear o sol?”.

A mudança narrativa, entretanto, é difícil. Apesar de a maior parte dos americanos considerar os medicamentos excessivamente caros, apesar das novas variantes de Covid-19 terem maior probabilidade de surgir caso a maioria das pessoas não se vacine, apesar do dinheiro dos contribuintes financiar grande parte das pesquisas que produzem novos medicamentos – incluídas as vacinas contra Covid-19 –, ainda nos recusamos, como sociedade, a tratar os medicamentos como bens públicos essenciais. Outra área que ilustra esse fato é a da imigração, na qual narrativas impulsionadas por um sentimento de ameaça e insegurança parecem ser dominantes – e, como mostra o Migration Policy Institute, “as narrativas mais recorrentes estão com frequência entrelaçadas a sentimentos de ameaça à segurança econômica, física ou cultural, ainda que essas percepções não sejam bem fundamentadas por dados”.

Podemos encontrar diversas razões para o ritmo lento de mudança ou até mesmo retrocessos nessas e em outras áreas. Uma delas é a disparidade de recursos e de capacidade de comunicação: no caso dos medicamentos, as vozes de pequenos grupos de ativistas mal financiados são facilmente abafadas por corporações farmacêuticas com seus exércitos de lobistas e um imenso orçamento de marketing. Há, ainda, outras explicações: as organizações sociais trabalham muito focadas em problemas em vez de olharem para o panorama geral; financiadores, por sua vez, não investem na mudança narrativa ou focam excessivamente no curto prazo.

Tudo isso é válido, mas organizações sem fins lucrativos e financiadores podem se exceder na hora de apontar o dedo para suas próprias falhas. A realidade é que eles atuam em um setor que é, inerentemente, desigual. Uma proposta formulada dentro do campo da psicologia social e política chamado “teoria da justificação do sistema” ajuda a explicar os motivos disso.

Desenvolvida em 1994 pelos professores de psicologia John Jost e Mahzarin Banaji,  a teoria foi corroborada por inúmeras pesquisas ao longo dos últimos 28 anos. Como Jost descreve em seu livro A Theory of System Justification, de 2020, os seres humanos são motivados a defender e justificar sistemas ainda que estes trabalhem contra eles. Segundo ele, “as pessoas apresentam tendências de justificar o sistema para defender e racionalizar os acordos sociais, econômicos e políticos existentes – às vezes, até à custa do interesse pessoal e coletivo”.

Devido à justificação do sistema, as pessoas tendem a ver a ordem corrente não apenas como as coisas são, mas como algo natural ou ainda como as coisas devem ser. Isso as torna mais propensas a aceitar situações sociais e políticas indesejáveis; além disso, reduz o apoio e a motivação para atividades que desafiam a norma, até mesmo entre grupos que são prejudicados pelo sistema. Um estudo de 2016, por exemplo, revela que em vez de ver a ordem social como a fonte de seus problemas, muitas mulheres de baixa renda de minorias raciais e étnicas atribuíam a pobreza ao vício em drogas e álcool e a “falhas de caráter dos pobres”. A justificação do sistema contribui para nos sentirmos melhor a respeito de como as coisas são, ainda que esse cenário nos faça mal. Além disso, reduz o apoio a atividades de protesto que desafiam o sistema.

Claro que, apesar disso, algumas pessoas se dispõem a desafiar a ordem existente por meio de protestos e outras atividades. A justificação do sistema também ajuda a explicar por que isso é tão difícil e estressante e por que pode ameaçar a segurança desses indivíduos e muitas de suas relações sociais.

No caso dos produtos farmacêuticos, a justificação permite entender por que, embora a maior parte dos americanos apoie a intervenção do Estado para limitar os preços dos remédios, apelos por mudanças mais fundamentais no sistema de propriedade intelectual, que efetivamente confere às corporações farmacêuticas poder de monopólio, são vistos muitas vezes como radicais e irrealistas. Tais exigências de fato parecem ser, para muitos, mais ultrajantes do que as doenças e as mortes que uma reforma sistêmica poderia evitar.

A justificação do sistema também traz uma explicação sobre o atual ceticismo de determinados grupos em relação às mudanças climáticas provocadas pelo ser humano, ainda que as provas disso sejam categóricas.

Assim, dada a nossa tendência de justificar sistemas existentes e resistir a mudanças, de que maneira organizações sem fins lucrativos, ativistas e financiadores que trabalham para mudar narrativas muito arraigadas superam essa inércia?

Em primeiro lugar, devem encontrar formas de desmascarar o status quo, visibilizando as narrativas justificadoras e as dinâmicas de poder desiguais que essas perpetuam. Narrativas estão sempre ligadas ao poder – e um primeiro passo importante é expor o que é de fato poder. Como aponta o Frameworks Institute na publicação The Features of Narratives, as narrativas dominantes, aquelas que fazem a ordem social vigente parecer natural e justa, incorporam a perspectiva e os interesses dos poderosos apresentando-os de maneira neutra, sem uma perspectiva particular. “Elas parecem surgir do nada.” Um exemplo é a narrativa da meritocracia. Aparentemente, essa é uma ideia neutra – qualquer um pode ter sucesso se trabalhar arduamente –, mas, na verdade, ela ajuda a justificar a posição daqueles que já são ricos e poderosos como merecedores dessas posições, enquanto culpa os pobres e marginalizados por sua situação desvantajosa. Um dos principais passos da mudança narrativa é retirar essa máscara de naturalidade e neutralidade.

Como tornar visíveis as narrativas justificadoras e os relacionamentos desiguais de poder que elas ocultam? Segundo Sara Cobb, que trabalha com narrativas no campo da resolução de conflitos, uma forma de fazer isso é propor questionamentos inteligentes que levam a contradições. Essas contradições provocam incômodos e, então, a expõem falhas na narrativa dominante de modo que a “naturalidade” das coisas começa a se desfazer. Cobb afirma fazer isso de uma maneira lúdica, valendo-se de ironia. Talvez seja por isso que comédia e arte podem ser tão impactantes, já que nos fazem perceber o absurdo em nossa realidade cotidiana ou ver o mundo com outros olhos. O parque de diversões improvisado na frente de um hospital foi uma tentativa de promover exatamente isso: ajudar as pessoas a ver o quão ridículo é o modo como atualmente lidamos com a questão dos medicamentos.

A ideia de expor contradições também pode ser uma das razões para o sucesso da prática chamada “investigação aprofundada” [deep canvassing], na qual ativistas mantêm longas conversas com pessoas e fazem perguntas para que elas possam enxergar e explorar as contradições de seus próprios pontos de vista. Estudos demonstraram, por exemplo, que a prática ajudou a mudar as atitudes de muita gente em relação a questões como imigração e pessoas transgêneras, e que essas mudanças perduraram por vários meses.

Além de desnaturalizar a narrativa dominante atual, é importante apresentar os sistemas sociais alternativos como visíveis e reais. Uma vez que novas formas de compreender o mundo e fazer parte dele ganham poder sensorial, visceral e emocional, elas começam a parecer possíveis e até mesmo necessárias. Assim como muitos de nós achamos difícil ver possibilidades em uma casa em ruínas sem o apoio de arquitetos e designers treinados, também precisamos, muitas vezes, de ajuda para vislumbrar alternativas viáveis para o atual cenário social. É por isso que especialistas em narrativas como Thomas Coombes têm estimulado organizações de direitos humanos a se concentrar mais em mensagens de esperança.

Nesse sentido, a cultura popular é fundamental: filmes, programas de televisão, jogos e afins podem nos transportar, em grande escala, para mundos alternativos e ajudar a ampliar nosso senso de possibilidade. Doadores estão reconhecendo isso cada vez mais e ajudando a fomentar e financiar iniciativas como Pop Culture Collaborative, nos Estados Unidos, e PopChange, no Reino Unido. Bridgit Antoinette Evans, diretora executiva da Pop Culture Collaborative destaca, em uma publicação recente – From Stories to Systems –, a importância da imersão narrativa. Com o uso da metáfora dos oceanos narrativos, ela afirma: “Temos de alcançar uma profundidade de imersão narrativa tal que as pessoas experimentem um modo de vida ficcional como possível e passem a expressar primeiro o anseio, depois, o desejo e, por fim, a exigência de que essa ficção se torne realidade”. A imersão narrativa é alcançada, segundo Evans, por meio do impacto cumulativo de um grande volume de histórias e experiências que carregam o mesmo conjunto de ideias em seu cerne.

Como costuma ocorrer em grandes eventos disruptivos, a pandemia da Covid-19 expôs uma série de problemas e contradições da narrativa dominante que contribuíram para justificar nossos atuais sistemas desiguais e injustos. Existe, hoje em dia, por exemplo, um interesse muito maior nas ideias e questões que aqueles ativistas pró-saúde levantaram em Barcelona em 2014 (para além de pequenos círculos de especialistas políticos). Porém, a oportunidade é fugaz. Também é muito comum que, terminada a crise, desigualdades e desequilíbrios de poder tornem-se ainda mais enraizados – em parte, devido à falta de imaginação.

No entanto, muitos movimentos e organizações têm uma visão que estão prontos para compartilhar – a de um mundo no qual haja um sistema de saúde universal e todos possam pagar pelos remédios que precisam; um mundo no qual imigrantes sejam vistos como uma riqueza e não como uma ameaça; um mundo no qual pessoas LGBTQI+ levem vidas duradouras, seguras e plenas e sejam capazes de contribuir integralmente com suas comunidades; um mundo que se una para enfrentar a urgente crise climática. Agora é a hora de o terceiro setor investir mais do que nunca na produção e na distribuição de uma variedade de histórias e experiências que ajudarão milhões de nós a vislumbrarmos sistemas melhores e mais justos e a fazê-los parecer reais.

O AUTOR

Brett Davidson (@brettdav) é consultor e trabalha com fundações e organizações sem fins lucrativos promovendo storytelling, narrativas e mudança social. Entre outras coisas, é narrative lead do International Resource for Impact and Storytelling (IRIS). Anteriormente, foi diretor de mídia e narrativas do Programa de Saúde Pública da Open Society Foundation.

 



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