Tempo, ciência e futuro

Entre pesquisas de ponta, novos cursos e parcerias com empresas, as universidades brasileiras se movem para a corrida da inteligência artificial. Para transformar saber acumulado em inovação prática, formar talentos e afirmar protagonismo estratégico na era da IA, a academia se mobiliza, sabendo que hesitar pode custar o lugar na história
Ilustração de Kelly Boesch

As universidades brasileiras estão no caminho certo em relação à inteligência artificial (IA), mas precisam  acelerar para não ficar de vez para trás. Existe muita pesquisa em IA acontecendo dentro delas, tanto em ciência pura como em aplicações da tecnologia nos mais variados campos. Os cursos de graduação em inteligência artificial que estão sendo criados pretendem suprir a carência de recursos humanos, e o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA), lançado pelo governo federal em 2024, se bem aplicado poderá ajudar o mundo acadêmico a não desperdiçar a janela de oportunidade na área.

Esse é o diagnóstico de especialistas como Fabio Cozman, que dirige o C4AI (Center for Artificial Intelligence), da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a IBM e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “O Brasil tem uma população que aceita bem inovações tecnológicas, órgãos públicos que produzem dados de qualidade, como a Fiocruz e o IBGE, e uma infraestrutura de financiamento que não é perfeita, mas também não é ruim”, diz.

Anderson Soares, coordenador científico do Centro de Excelência em Inteligência Artificial da Universidade Federal de Goiás (CEIA-UFG) e coordenador do primeiro curso de graduação em IA do país, concorda. Para ele, no entanto, apesar de o Brasil não estar mal posicionado, já poderia ter feito mais, ser mais ousado. “Era uma chance de ultrapassar concorrentes. Tentar fazer isso depois é muito mais difícil. Se tem uma coisa que a história da ciência nos ensina é que timing é tudo em corridas tecnológicas.”

Conforme levantamento realizado pela Fapesp, em 2020 o Brasil estava em 12º lugar no ranking mundial de publicações científicas sobre IA, com USP, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na liderança. “O Brasil já era bom tecnicamente”, afirma Teresa Ludermir, da UFPE, referindo-se ao pessoal que, como ela, faz o que chama de “IA raiz”: era 1990 quando concluiu o doutorado em redes neurais no Imperial College of Science, na Inglaterra, seguida por outros estudantes que se transformaram em professores e se juntaram ao núcleo de IA na universidade, o CIn.AI.

Hoje a posição do Brasil no cenário da pesquisa em IA caiu um pouco, até mesmo na formação de doutores, já que o mercado está muito aquecido, ressalta Ludermir. Mas o evento cataclísmico para a sociedade leiga que foi a divulgação do ChatGPT, no fim de novembro de 2022, serviu como um chacoalhão para governo e universidades, e a atividade que já existia de forma pulverizada nas universidades ganhou mais impulso e financiamento. Agora grupos grandes e pequenos, formados por mais de uma instituição, estão conduzindo os estudos de IA em laboratórios, centros ou grandes redes.

O leque de ocupações da professora Ludermir, que já poderia estar aposentada, serve como amostra dos trabalhos que estão sendo desenvolvidos pela academia no campo da inteligência artificial. Ela coordena dois centros na UFPE, um em pesquisa de longo prazo e outro em ciência aplicada; ajudou a elaborar o curso de graduação em IA que foi aberto na universidade neste ano; participou das reuniões que resultaram no plano do governo para IA, o PBIA; está envolvida em atividades de especialização para profissionais de outras áreas; tem um projeto de letramento digital para alunos de ensino médio; pensa em levar conhecimento em IA para a população geral e para idosos; e, ainda, guarda em stand by uma disciplina de IA que poderia ser oferecida para todos os alunos da UFPE.

Pesquisa de longo prazo

O IAIA, um dos centros coordenados por Ludermir, foi o primeiro Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) em inteligência artificial. Os INCTs são grandes redes nacionais de pesquisa, com ênfase na cooperação internacional e voltadas ao desenvolvimento de projetos de alto impacto científico e tecnológico, financiados pelo governo federal e mais recentemente com aporte extra de fundações de apoio à pesquisa estaduais, com abertura para parcerias com empresas, inclusive as big techs. Esses institutos se dedicam principalmente à pesquisa acadêmica, de forma multidisciplinar e envolvendo várias instituições. 

O nome oficial da rede coordenada por Ludermir é Instituto Nacional de Inteligência Artificial, mas a sigla é IAIA – pronuncia-se “Iaiá”, seguindo o peculiar apreço de pesquisadores em tecnologia por siglas simpáticas; basta trocar o “nacional”, que já está no “N” do INCT, por “avançado” para formar a palavra que designava as meninas, moças e senhoras de antigamente, talvez uma alusão à escassez de mulheres no mundo da tecnologia. A UFPE tem também, aliás, o PRAIA – Centro de Pesquisa Realmente Aplicada em Inteligência Artificial. 

Criado em 2022, o IAIA atua em paralelo com outros centros de pesquisa aplicada, ocupando-se da parte acadêmica e conceitural, e focando na questão da IA responsável, ou seja, como os algoritmos lidam com os princípios de imparcialidade, transparência e explicabilidade. Funciona em parceria com mais de 25 universidades e, segundo a professora, foi estabelecido contendo “todos os grandes ícones da IA” no país.

Os INCTs concentram-se também na formação de mestres e doutores, que são essenciais não só para a pesquisa, mas igualmente para a docência nos novos cursos de graduação de inteligência artificial que estão surgindo. Somando todas as áreas, o Brasil tem hoje 243 INCTs e, na última chamada de propostas, cujo resultado foi divulgado em junho de 2025, ao menos 30 dos projetos aprovados eram ligados a iniciativas de inteligência artificial.

Pesquisa aplicada

Teresa Ludermir coordena também o Centro de Excelência em Inteligência Artificial para Segurança Cibernética, que é um Centro de Pesquisa Aplicada (CPA) financiado pela Fapesp junto com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). São 11 CPAs dedicados à inteligência artificial espalhados pelo Brasil. Eles diferem dos INCTs porque, embora também sejam interdisciplinares e envolvam mais de uma instituição, trabalham com a aplicação prática da IA em um setor específico e contam com a participação direta de empresas, que investem 50% dos recursos totais. O CPA de segurança cibernética (apelidado como Cibele) é conduzido por duas empresas de segurança em conjunto com a Embraer. 

O primeiro CPA em inteligência artificial do país é o C4AI, coordenado pela USP em parceria com a IBM. Foi criado em 2020 com o propósito de facilitar a comunicação entre os mais de cem grupos de pesquisa em IA que já existiam na universidade paulista, conforme explica Fabio Cozman, diretor do centro. Por ter sido pioneiro, anterior à definição do modelo, acabou ficando mais amplo que os posteriores, com espaço até para a ciência básica.

A colaboração com a IBM se dá na esfera da pesquisa, de um modo mais indireto do que as iniciativas da Embrapii, a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial, que promove a associação de empresas com grupos de pesquisa para o desenvolvimento de protótipos, tentando reproduzir na área da tecnologia o sucesso da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

Entre os focos do C4AI estão o processamento de língua natural para o português e o fortalecimento das línguas indígenas brasileiras com IA. “Isso só dá para fazer aqui no Brasil. Se não fizermos, ninguém vai fazer”, diz Cozman. Nessa área, de acordo com ele, o advento dos grandes modelos de linguagem pós-ChatGPT deixaram tudo “de cabeça para baixo”. “Existe bastante espaço ainda. Temos investido em coleta de dados e processamento, anotação, filtragem de dados falados, para por exemplo fazer transcritores de texto funcionarem melhor em português. É algo que pode beneficiar empresas nacionais, porque essas ferramentas erram mais em português que em inglês.” Segundo Cozman, não se trata de só ficar buscando modelos de linguagem maiores. Um dos projetos do grupo é criar ferramentas que avaliem grandes modelos levando em conta o contexto cultural local.

Como pioneiro, o C4AI originou vários grupos de pesquisa que se transformaram em CPAs ou INCTs em outras áreas, como a saúde e a agricultura. O financiamento de empresas privadas é muito importante para que o processo funcione. Cozman dá o exemplo de uma refinaria de petróleo: “Não há uma refinaria dentro da universidade. Ela fica na empresa. Na universidade as pessoas estão  estudando a geologia, novos processos, olhando para o futuro”. Com a IA ocorre o mesmo. “Estamos tentando desenvolver coisas para o próximo passo, ferramentas que melhorem o estado da arte atual”, explica. E isso vai beneficiar as empresas lá na frente.

Parceria direta com empresas

O conceito das unidades Embrapii é juntar centros de pesquisa a empresas, oferecendo parte do financiamento para que a inovação aconteça. Atualmente existem no Brasil 92 unidades Embrapii, sendo 45 delas diretamente ligadas a universidades, e uma parte significativa do trabalho universitário em IA acontece nesse ambiente, porque há grande interesse por parte das companhias e de startups, o que garante que haja dinheiro. O modelo de financiamento é mais ágil, já que não depende de editais. Há uma negociação direta entre a empresa e a unidade Embrapii, e os custos são divididos entre a Embrapii, a empresa, a unidade e, no caso de empresas menores, o Sebrae. 

A UFPE também trabalha com o modelo Embrapii, naquele caso em uma área mais voltada a tecnologias e sistemas de veículos e transporte.

Anisio Lacerda, PhD em inteligência artificial e coordenador de dois projetos da unidade Embrapii do Departamento de Ciência da Computação (DCC) da UFMG na área da saúde, explica que todo projeto Embrapii é coordenado na unidade. O projeto fica sob encargo de um professor, que coordena uma equipe de alunos, pessoas técnicas, eventualmente gente de fora da universidade, como consultores, advogados etc. O objetivo é entregar um protótipo, que no caso de software acaba sendo muito próximo de um produto final. Os alunos, da graduação até o pós-doutorado, recebem remuneração, mas nem toda pesquisa resulta em publicação, por questões de confidencialidade. A vantagem para a universidade é que pesquisadores e professores ganham experiência em um ambiente mais próximo ao do mercado. “As empresas são beneficiadas, e ao mesmo tempo há a formação de um recurso humano altamente capacitado com um problema real, não só de dentro da universidade”, diz Lacerda.

Um dos projetos em que Lacerda trabalha é relacionado a uma doença rara, o tumor estromal gastrintestinal, conhecido pela sigla em inglês GIST. Como é um câncer que afeta poucas pessoas, o que limita a possibilidade de fazer testes e estudos, a ideia é, pelo mapeamento genético, criar uma população sintética de gêmeos digitais dos doentes, com características próprias dos habitantes do Brasil. De acordo com o professor, se o experimento tiver sucesso há o potencial de acelerar o processo como um todo, para fazer intervenções nessa população virtual em busca de tratamentos, por exemplo. 

A vantagem dos projetos Embrapii é que pesquisadores e professores ganham experiência em um ambiente mais próximo ao do mercado. As empresas são beneficiadas, e ao mesmo tempo há a formação de um recurso humano altamente capacitado com um problema real, não só de dentro da universidade

Segundo Lacerda, isso significa ter a capacidade, a princípio, de criar uma droga personalizada para cada pessoa. “Com o gêmeo digital dela, será possível testar o remédio nesse ambiente sintético em vez de submeter o doente ao medicamento” sem saber se vai dar certo, afirma. O projeto é uma parceria entre o DCC-UFMG e a startup Aequalis, formada por médicos. Pelo fato de ser uma empresa pequena, o Sebrae paga até 70% da parte que caberia à startup investir. Com isso, o desenvolvimento pode sair com 90% de desconto.

Ele destaca que a Embrapii tem um papel relevante na formação de mão de obra especializada em IA, que é o papel da universidade, mas acredita que ainda há muito espaço para crescer. “Esse é o caminho, porque a inteligência artificial é uma tecnologia de conhecimento muito profundo, e é muito difícil as empresas por si sós conseguirem assumir o risco da pesquisa e desenvolvimento.”

O Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) prevê que até 2026 seja estruturada uma Rede Embrapii de Competência em IA, com 25 unidades e centros de competência, e a ampliação de 15 para 35 no número de unidades Embrapii habilitadas para projetos em IA.

Assim como Teresa Ludermir, Anisio Lacerda está envolvido em mais de uma frente de pesquisa, demonstrando como as várias esferas se entrelaçam dentro e fora das instituições. O DCC da UFMG, por exemplo, abriga também o CI-IA-Saúde, um Centro de Pesquisa Aplicada em parceria com a Unimed, do qual Lacerda faz parte junto com 180 pesquisadores de sete instituições, incluindo a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Universidade Federal do Amazonas (UFAM).


Iniciativas do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial voltadas à universidade

Valores relativos ao período de 2024 a 2028

  • Criação de 4 INCTs (Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia) interdisciplinares em estudos avançados em IA – R$ 100 milhões
  • Fomento à pesquisa e desenvolvimento em IA, com editais e iniciativas de financiamento para projetos multidisciplinares, via Capes e CNPq – R$ 553 milhões
  • Abertura de pelo menos 5 mil vagas de graduação em cursos de IA em três anos, e disponibilização de 100% das vagas de cursos em IA e ciências de dados no Fies – R$ 183 milhões
  • Bolsas de IA para graduação e pós-graduação, para reter talentos e reduzir a lacuna entre academia e indústria, via Capes e CNPq – R$ 194 milhões
  • Bolsas de doutorado em IA no exterior, para a ampliação de parcerias internacionais nas pesquisas sobre IA, via Capes e CNPq – R$ 152 milhões

Novos cursos de graduação

Foi aproveitando uma das ações mais significativas do PBIA para a universidade, a previsão da criação nos próximos três anos de pelo menos 5 mil vagas de graduação em cursos de inteligência artificial, que a UFPE da professora Teresa Ludermir tirou do papel, em 2025, o plano de inaugurar o curso de IA no CIn da universidade. Documentos estabelecendo diretrizes de um curso desse tipo já tinham sido escritos com a ajuda da professora Ludermir para a Sociedade Brasileira de Computação e para a Academia Brasileira de Ciências. O PBIA foi o empurrão que faltava, e o curso de bacharelado em IA foi rapidamente estruturado para o início do ano letivo. 

As disciplinas opcionais serão ofertadas para alunos de outros cursos, como ciência da computação e sistemas de informação, e nos primeiros anos há uma carga horária em comum entre eles, o que permite certa mobilidade. Ludermir explica que fazer IA pressupõe saber um pouco de computação, de física, de cálculo. Segundo ela, os três últimos semestres foram pensados para ter apenas disciplinas eletivas, flexíveis, porque daqui a dois anos e meio, quando a turma atual chegar lá, as matérias podem ser totalmente novas.

O curso de graduação pioneiro em IA é o da Universidade Federal de Goiás (UFG), que já tem duas turmas formadas, com um nível baixíssimo de abandono: menos de 5%, o que representa uma taxa recorde de permanência se comparada a qualquer curso da área de ciências exatas. “Foi uma grande surpresa positiva termos conseguido atacar o flagelo da evasão”, diz Anderson Soares, o coordenador do curso. 

Soares atribui o sucesso a três estratégias. A primeira é oferecer uma carga horária reduzida no primeiro semestre, para ajudar na adaptação dos alunos vindos do ensino médio. A segunda é que as matérias mais “pesadas”, como cálculo 1, são ministradas um pouco mais adiante no curso, pois o foco inicial é engajar os estudantes envolvendo-os na resolução de problemas reais, no espírito do empreendedorismo. E a terceira estratégia é o pagamento de bolsas aos alunos, em valores acima dos padrões de bolsas tradicionais de iniciação científica, pela participação em projetos com a Embrapii.

O Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) pretende aumentar em 50%, em cinco anos, o número de formandos em carreiras de STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática). Hoje no Brasil apenas 15% dos gradu­andos estão nessas carreiras

Os professores, uma vez que também estão envolvidos com os projetos da unidade Embrapii, têm um conhecimento que ultrapassa o ambiente de laboratório, ressalta Soares. “E aí eles podem dizer para os alunos: ‘Olha, gente, a empresa sempre vai dizer que tem todos os dados, mas isso nunca é verdade. É a maior mentira que vocês vão ouvir na carreira de vocês’”. 

Por outro lado, é preciso evitar formar o que ele chama de “espremedores de modelo”. “A pessoa sabe fazer todas as otimizações de uma técnica de IA, mas acha que o dado cai do céu e não sabe identificar problemas em outros campos finalísticos.”

Além da UFG e da UFPE, cursos de graduação em IA já foram criados na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), na Universidade Federal do Paraná (UFPR), na de Santa Maria (UFSM), além da Universidade Estadual de Londrina (UEL), da Universidade de Brasília (UnB), com início em 2026, e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), entre outras instituições.

“O PBIA vem justamente para acelerar e fortalecer a tendência, criando um ambiente mais favorável para a expansão de vagas e novos cursos”, afirma Hugo Valadares, diretor do Departamento de Ciência, Tecnologia e Inovação Digital da Secretaria de Ciência e Tecnologia para Transformação Digital do MCTI. De acordo com Valadares, o ministério vai apoiar, além das federais, as universidades estaduais e privadas, com editais, chamadas públicas e apoio técnico, sempre priorizando qualidade. O objetivo é levar formação em IA a mais regiões e perfis de estudantes, democratizando o acesso a essa área estratégica. 

O PBIA pretende aumentar em 50%, no prazo de cinco anos, o número de formandos em carreiras de STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática, na sigla em inglês). Atualmente, no Brasil, apenas 15% dos graduandos estão nessas carreiras. Apesar de ousado, Valadares considera o objetivo totalmente possível. Ele explica que o aumento do número de formandos será decorrência do investimento na ampliação de vagas, na criação de programas de bolsas e apoio à permanência dos estudantes, modernização dos currículos e a aproximação dos cursos ao mercado, com incentivos a projetos práticos. O plano não detalha de que forma ocorrerão esses incentivos, como também não explica como pretende cumprir a meta de fazer com que, nos mesmos cinco anos, 85% da população brasileira adulta “tenha conhecimento básico sobre IA, seus benefícios e riscos”. 


IA NA UNIVERSIDADE BRASILEIRA

  • Novos cursos de graduação em IA
  • Laboratórios
  • Centros interdisciplinares
  • Centros de pesquisa aplicada
  • Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia
  • Projetos Embrapii

Papéis da universidade em relação à IA

  • Produtora de conhecimento: pesquisa de longo prazo
  • Consultora e parceira de empresas, startups e órgãos de política pública: ciência aplicada
  • Observadora: análise dos impactos da ia na sociedade
  • Formadora de profissionais em IA: para ensino, pesquisa acadêmica e mercado
  • Formadora de profissionais de outras áreas em ia: especialização e extensão
  • Divulgadora científica: levar letramento digital à sociedade
  • Usuária: ia em processos administrativos e no ensino
  • “Vítima”: a chegada dos modelos de linguagem colocou de cabeça para baixo os sistemas de avaliação de alunos em todas as áreas, e é preciso encontrar soluções

Letramento digital em IA

Levar conhecimento sobre IA para a sociedade como um todo é visto pelos pesquisadores como uma responsabilidade automática da universidade. Teresa Ludermir considera esse ponto essencial, e não se incomoda em assumir mais esse papel. Para a professora, o que faz sentido para a universidade é estruturar e liderar a formação de divulgadores que coloquem a mão na massa para levar conhecimento sobre IA para a população não só para que as pessoas possam conhecer e usar a IA, mas também para se protegerem de seus efeitos deletérios e potencial de enganação. Com o benefício adicional de atrair futuros profissionais para carreiras científicas. “Mas ainda não vimos nenhuma chamada em relação a ações de letramento”, ressalva, referindo-se às metas do PBIA. 

“Outro dia o reitor da UFPE brincou comigo: ‘Quando é mesmo que você vai sugerir uma disciplina de IA para a universidade toda?’. Eu disse: ‘É só dar o sinal verde’”, conta ela, sem se intimidar com mais essa iniciativa, que é semelhante a uma disciplina virtual que está sendo oferecida pelo Colégio Brasileiro de Altos Estudos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com a UFMG, a UnB e o Fórum Brasileiro de Estudos Avançados (Fobreav), e a outros projetos ainda incipientes.

E não basta à universidade capitanear os esforços de divulgação científica da IA. Cabe a ela também, na prática, participar dos debates e das análises do impacto que essa tecnologia está tendo na sociedade. O C4AI, coordenado por Fabio Cozman, da USP, atua nessa área como parceiro do Observatório Brasileiro de Inteligência Artificial, criado em 2024 a partir do PBIA. “Procuramos coletar dados, levantar políticas públicas, examinar  questões controversas como o uso de imagens em serviços públicos, de que forma isso é regulado e controlado, além de analisar decisões judiciais ligadas à IA”, afirma ele.

IA como ferramenta de educação

Os especialistas reconhecem, no entanto, que possivelmente o aspecto no qual a universidade brasileira esteja mais defasada diz respeito ao uso da IA no ensino, para melhorar processos e contribuir para o aprendizado. “Existe uma preocupação muito grande, mas também tem muita gente testando coisas. Dá para corrigir provas automaticamente? Dá para fazer assistência ao aluno? Ainda não há uma receita finalizada”, diz Cozman. A USP, inclusive, é parceira do Jameel World Education Lab (J-Wel) do MIT, que vem refletindo sobre essas questões. 

Anderson Soares é sincero em relação ao impacto no ensino da chegada dos grandes modelos de linguagem. “A educação está lascada, em todos os níveis. Muito pouca coisa mudou na educação ao longo dos últimos séculos, e pela primeira vimos que realmente precisa mudar.”

A grande dificuldade é como avaliar os alunos, reitera Anisio Lacerda, da UFMG. “Eles têm acesso a ferramentas que podem, entre aspas, fazer o trabalho para eles. Mas ao mesmo tempo não podemos isolá-los da tecnologia. É uma grande tecnologia, é útil e tem de ser usada. Esse é o desafio que estamos discutindo todo dia.”

O modelo de avaliação para disciplinas de computação sempre foi pedir para o aluno gerar um trabalho prático, um código grande, até para ele ter a sensação de que realmente fez um programa, reflete Lacerda. “Mas um LLM consegue codificar, então o trabalho perde o sentido. Ao mesmo tempo, no entanto, o aluno tem de saber identificar o que está errado em um código gerado por um modelo de linguagem. É um desafio.”

Entre os testes do uso da IA na universidade está uma tecnologia que prediz quais alunos têm mais chances de desistir de um curso de graduação – tecnologia que foi desenvolvida pela UFG para o Ministério da Educação (MEC). “Consigo gerar uma lista hoje, dizendo: tais alunos vão abandonar o curso daqui a seis meses. Mas isso sozinho não resolve nada”, diz Soares. A tecnologia tem de estar aliada a processos, por exemplo, colocar monitores para procurar proativamente esses alunos, para tentar mudar a situação, explica.

O próprio PBIA cita algumas ações imediatas de aplicação da IA na educação, a ser realizadas pelo Núcleo de Excelência de Tecnologias Sociais (NEES) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), entre elas um programa de combate à evasão na educação básica.

“Com o apoio do PBIA, as universidades podem se consolidar como centros de referência em IA, não só formando profissionais, mas também criando soluções tecnológicas alinhadas às necessidades do Brasil. Elas podem conectar pesquisa, mercado e sociedade, ajudando o país a avançar de forma soberana, inclusiva e competitiva”, acrescenta Hugo Valadares, do MCTI. Mas o sucesso do plano depende da concretização de projetos voltados para a infraestrutura, como compra de equipamentos e a democratização do acesso à tecnologia.

De acordo com Teresa Ludermir, o PBIA é um esforço importante, mas diante das demandas orçamentárias e dos cortes impostos pelo Congresso  pode não haver recursos novos para o programa. Para ela, existe ao menos a priorização das iniciativas em IA, o que já é positivo, mas é preciso fazer com que o plano saia do papel – ou da tela. 

Fabio Cozman acredita que é preferível ter um plano do que não ter. Segundo ele, o PBIA foi elaborado por pessoas competentes que estão tentando, de fato, fazer a coisa certa, acompanhando o que existe de melhor no mundo. Ainda assim, “falta muito, e não adianta também querer milagres.” 

Leia também: Quando a tecnologia ensina, quem aprende?

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